sábado, 8 de agosto de 2020

É proibido não buscar a felicidade

100 mil mortos

No limiar dos 100 mil óbitos da covid-19 e dos 3 milhões de casos da pandemia, que deve ser transposto no sábado, o Brasil vive a sua pior guerra, no sentido literal ou figurado, desde sua independência. A hecatombe atual guarda semelhança com episódios já muito distantes no tempo, como a gripe espanhola e a onda de fome que assolou o Nordeste na seca de 1877.

Um observatório para se contemplar a desgraça é o portal da transparência do registro civil, uma iniciativa dos cartórios. Segundo o portal, houve em 2020, no período entre 16 de março e 6 de agosto, um total de 507.097 óbitos por causas naturais. No mesmo período, em 2019, foram 474.287.

A razão evidente é a covid-19 e a Síndrome Respiratória Aguda Grave, responsáveis por uma em cada cinco mortes registradas no período - cerca de 90% da soma de 98.985 casos correspondem à doença provocada pelo coronavírus (88.298).

Ainda que quase a metade desta cifra seja compensada pela queda do número de anotações de causas mortis que podem ser atribuídas ao vírus, como septicemia e pneumonia - elas somaram 165 mil no período em 2019 e agora somam 119 mil- há alguma defasagem nos dados, o que sugere que a situação presente é algo mais grave do que aparece. Pela lei, o falecimento de uma pessoa precisa ser comunicado às autoridades em 24 horas e a lavratura do atestado de óbito deve ser feita em cinco dias. O envio do dado para a central nacional deve ser feito em mais oito dias. Com a pandemia, alguns Estados dilataram este prazo em até dois meses. Ou seja, esta fotografia é piso, e não teto. É incontroverso que está morrendo mais gente este ano do que em 2019.


A catástrofe no Brasil, à qual o mundo se curva em números absolutos, não é a pior do continente em termos proporcionais. É uma observação que pode refletir alguma condição excepcional do brasileiro ou apenas a debilidade dos nossos registros estatísticos, uma vez que é impossível atribuir o fenômeno à gerência governamental que está sendo feita em relação à crise. De acordo com o jornal chileno “La Tercera”, entre 1º de maio e 29 de julho uma em cada três mortes no Chile estava relacionada à covid-19, sendo que na região metropolitana de Santiago esta cifra subia à metade. Em magnitude de mortes, no entanto, os dois países se equivalem. A população chilena é dez vezes menor que a brasileira. Multiplicado por este fator, o número de óbitos lá é semelhante ao daqui.

Desde o início da crise, do ponto de vista político, o presidente Bolsonaro abdicou do papel de liderança no enfrentamento do vírus e busca transferir a fatura. A crise caiu no colo dos governadores a quem se cobra a responsabilidade pelas consequências econômicas das quarentenas e a quem se transforma as políticas emergenciais de compras para a saúde em casos de polícia, de maneira justificada ou não. O caso do secretário de Doria é mais um, é banal. Nesse contexto, Bolsonaro é apenas uma pessoa que sai atrás de uma ema com uma caixinha de cloroquina.

A pandemia deixará cicatrizes no Brasil, mas está sendo driblada pelo bolsonarismo. O presidente não está em situação absolutamente segura, pode perder a reeleição de 2022, pode até se inviabilizar no Congresso, mas nada disso deverá ter relação com a macabra contabilidade cotidiana da peste que assola o mundo.

“Com a pandemia, o futuro saiu do circuito. Ninguém está olhando para frente”, observou em conversa com esta coluna o ex-deputado federal Saulo Queiroz, fundador do PSDB e do PSD, antigo hierarca do DEM, o que se convencionava chamar antigamente de uma velha raposa felpuda.

Queiroz refere-se a um problema para o qual o mundo partidário deve acordar no próximo ano. As coligações proporcionais estarão proibidas em 2022. O universo político está polarizada. É um erro tomar pelo valor presente o estrondoso fracasso dos organizadores do Aliança Pelo Brasil em coletar assinaturas para a criação da nova sigla. A hora decisiva será em 2021, em que os acólitos do presidente serão impulsionados pelo projeto de poder claro que significa a continuidade bolsonarista.

Do outro lado, o PT tem uma longa história de sobrevivência no isolamento, ganhando ou perdendo eleições. No meio do caminho estarão siglas como DEM, PSDB, Cidadania, PDT, PSB que, ou se aglutinam em torno de candidaturas viáveis, ou perecerão. Na janela partidária do começo de 2022, deputados de partido sem projeto de poder irão medir quem passa na peneira do voto sem coligação. Quantos deputados poderá eleger o DEM, concorrendo sem parceria? E o PCdoB? O furacão que passará pela janela partidária não será trivial.

No meio do vendaval o futuro presidente da Câmara, a ser eleito em fevereiro, será um ativo estratégico. O biênio final de uma legislatura costuma ser mais tenso que o inicial por se misturar com a sucessão no Palácio do Planalto.

Não é por acaso que a sucessão de Rodrigo Maia está em muito antecipada ao normal. “Já é o assunto do dia nos corredores”, diz um dos pretendentes ao cargo, o deputado Marcelo Ramos (PL-AM), para quem há o risco importante da disputa travar a agenda da Casa.

“A Câmara hoje está dividida em três terços: Bolsonaro, Rodrigo Maia e oposição. Impeachment está fora de cogitação e quem se une a um bloco derrota o outro”, diz Ramos. Como somente Maia pode se combinar tanto a um bloco como a outro, ele tende naturalmente a fazer seu sucessor.

Ramos não crê que um tema polêmico como a reforma tributária seja concluido na Câmara ainda antes da eleição de novembro, sobretudo se estiver vinculado com a nova proposta do governo de renda básica. Ainda assim, não subestima a capacidade de Maia de ditar o processo.

Sem candidato natural à presidência, os partidos de centro poderão ter no comando da Câmara dos Deputados uma reserva de poder, que poderá ser muito útil, inclusive, para mudar as regras da eleição de 2022. Há quem pense que a formação de uma nova sigla poderia aprumar o caminho. Queiroz tem pronta a minuta de uma consulta ao Supremo Tribunal Federal sobre a constitucionalidade da norma que impediu que um novo partido possa receber uma fatia do fundo partidário equivalente ao total de deputados que ele consiga atrair.

A construção de uma tragédia

Há cerca de um mês e meio, este jornal lamentava nesta página o fato de o País ter atingido a marca de 50 mil mortes por covid-19 (ver editorial Lições de uma tragédia, publicado em 21/6/2020). Pior do que a dor causada por tantas perdas de vidas, histórias e possibilidades, um prejuízo incalculável para o Brasil, era a constatação, já àquela altura, de que um novo marco lúgubre era questão de tempo, só não se sabia quanto. Pois agora passamos das 100 mil mortes ocasionadas pelo novo coronavírus e, mais uma vez, nada assegura que outras 50 mil vidas, ou mais, não serão perdidas em um futuro próximo.

Não se trata de um exercício de futurologia macabra, mas sim da constatação de um fato: os graves desdobramentos da pandemia no Brasil são frutos de uma metódica construção por ações e omissões. Não há como imaginar que melhores resultados hão de vir à frente quando comportamentos que os ensejariam não se mostram presentes, tanto no governo como na sociedade.

Construiu-se essa tragédia porque desde a eclosão da pandemia no País o presidente Jair Bolsonaro adotou um comportamento aviltante diante da maior dor sofrida pelos brasileiros em mais de um século. Por tudo o que se viu e ouviu, infortúnio maior não houve para a Nação do que ter na Presidência um líder tão incapaz e indiferente em momento tão grave da história nacional. Não se sabe se Jair Bolsonaro um dia sofrerá sanções políticas ou jurídicas por seu descaso. Mas ele deveria temer pelo que pode vir a sofrer se acaso experimentar um despertar de consciência adiante.

Construiu-se essa tragédia porque a todo tempo Bolsonaro se mostrou preocupado exclusivamente com seus interesses particulares, em especial seu inoportuno projeto de reeleição, pondo-se a afrontar as orientações das autoridades sanitárias por temer que reveses econômicos ocasionados por medidas protetivas, como o isolamento social, pudessem afetar a sua popularidade. Ao presidente da República cabia coordenar os esforços nacionais para o enfrentamento da crise.

Construiu-se essa tragédia porque o governo não soube aproveitar a janela de cerca de um mês para aprender com a experiência de outros países que já enfrentavam a covid-19 e, assim, preparar o Brasil para o que estava por vir. O Brasil é referência em planejamento e ação diante de emergências epidemiológicas, como H1N1, dengue e zica vírus, mas não se coordenou de pronto todo esse cabedal de conhecimento para preparar o SUS para lidar com a nova emergência.

Construiu-se essa tragédia porque, pelo mau exemplo dado pelo chefe do Executivo, milhões de brasileiros se sentiram seguros para furar a quarentena e provocar aglomerações porque, acreditando nele, não acreditaram na gravidade da doença ou confiaram no curandeirismo presidencial. O que dizer de um presidente que demitiu dois ministros da Saúde em meio à pandemia apenas porque ambos tiveram a ousadia de contrariar suas perigosas posições por prescrições com argumentos baseados na melhor ciência? O que dizer de um presidente que anda com uma caixa de cloroquina a tiracolo – medicamento ineficaz contra a covid-19 – ofertando-a até para uma ema como a panaceia de todos os males? Jair Bolsonaro pôde contar com o apoio do STF e do Congresso Nacional para adotar as melhores medidas de combate à pandemia, mas não o fez por cálculo político, frieza ou birra. Ou tudo isso junto.

Construiu-se essa tragédia porque muitos governadores e prefeitos sucumbiram às pressões de toda sorte para reabrir o comércio e espaços públicos antes que houvesse segurança para isso. Uns por negarem a gravidade da pandemia, como o presidente. Outros pelo receio das implicações eleitorais da manutenção das restrições.

Por fim, construiu-se essa tragédia porque falta a muitos cidadãos um espírito de coletividade, o reconhecimento do passado formador comum e a comunhão de aspirações ao futuro. Com tristeza, viu-se que não raras vezes a fruição imediata de alguns se sobrepôs ao recolhimento exigido para o bem de todos. Aí está o resultado.

A marcha dos mortos

Queria começar dizendo do meu horror por estar escrevendo esse texto sobre os 100.000 mortos enquanto algumas centenas deles estão vivos e lutando pela vida. Todos nós já sabemos que chegaremos aos 100.000 mortos. E este é o horror. E ultrapassaremos os 100.000 mortos, e este é o horror. E não sabemos em quantos milhares de mortos chegaremos, porque não há nenhum controle no Brasil sobre a disseminação da covid-19. Eu ainda sentiria horror se estivesse lidando apenas com a fatalidade de um vírus. Mas tenho convicção de que não é disso que se trata.

 Uma convicção baseada em fatos, como deve ter uma jornalista que emite sua opinião. Uma convicção fundada em acompanhamento do Diário Oficial da União e da comunicação do Governo. Meu horror é infinitamente maior justamente porque testemunhamos um genocídio praticado por Jair Bolsonaro e todos os funcionários ― fardados ou não, peito estrelado ou não ― que têm poder de decisão. 

Meu horror é por escrever sabendo que chegaremos aos 100.000 mortos e perceber que não encontramos força para barrar o genocídio e ainda não encontramos gente suficiente ― no Brasil e no mundo ― para se somar à luta para barrar um crime contra a humanidade. Eu peço perdão aos mortos por nossa fraqueza como povo. Eu peço perdão em nome dos juristas e dos intelectuais que preferem não, porque, afinal, Bolsonaro seria só incompetente ― e não um matador deliberado e sistemático. 

Quase 100.000 vítimas do Governo Bolsonaro e somos covardes ao ponto de normalizar um crime contra a humanidade que é feito em nosso nome

Alguns ainda fazem bochecho com a palavra “banalização”, denunciando que se estaria vulgarizando o termo, sem perceber que são eles que banalizam mais de 1.000 mortes por dia. Eu peço perdão em nome da parcela dos jornalistas que prefere ser “imparcial” diante de um massacre, como se a suposta imparcialidade fosse justificativa para sua omissão como ser humano. Eu peço perdão em nome daqueles que aprovam Bolsonaro porque recebem 600 reais por mês do Governo, porque conheço muitas pessoas em situação de pobreza que exigem seus direitos de serem assistidas pelo Estado numa situação de emergência, mas não compactuam com a morte do outro. Eu peço perdão em nome daqueles que acreditam ser suficiente colocar seu nome em abaixo-assinado enquanto os mortos se enfileiram. Eu peço perdão por essa porção das elites intelectuais voluntariamente pueril em política e destituída de coragem pessoal para assumir seu papel histórico de barrar o extermínio. Eu peço perdão por por essa parcela pusilânime da população que, com as mais variadas desculpas, delega ao outro a tarefa de enfrentar o mais difícil. Eu peço perdão em meu próprio nome por não ser capaz de fazer o mínimo suficiente. 

Todos os dias eu acordo e durmo pensando qual é o papel de uma jornalista, de uma cidadã, de uma pessoa humana quando testemunha um genocídio e me horrorizo porque já não sei o que fazer, porque há pelo menos quatro petições no Tribunal Penal Internacional mas, diante da magnitude da destruição, ainda é pequeno o movimento de mobilização em torno das denúncias. Ainda são muito poucos usando seu espaço para dar nome ao horror. E então, mais uma vez, eu peço perdão para o que não tem perdão. 



Eu peço perdão a você, grande Aritana, cacique do Xingu, por sua voz de tantas línguas ter sido silenciada porque Bolsonaro deixou a floresta aberta aos agentes do vírus, muitos deles atendendo pelo nome de grileiros e garimpeiros ― e fez isso com o apoio dos generais de sua corte, herdeiros de uma ditadura que matou mais de 8 mil indígenas ― impunemente. Eu peço perdão porque tantos brancos acham que negar medidas emergenciais e até mesmo água potável aos indígenas na pandemia, como o Governo fez, é “incompetência” ou “fracasso da política de enfrentamento à covid-19”. 

Eu peço perdão a você, seu Bié, Manoel da Cruz Coelho da Silva, quilombola de Frechal, no Maranhão, porque gente demais acha que morrer mais pretos que brancos é “normal”. Eu peço perdão a você, Tia Uia, Clarivaldina Oliveira da Costa, quilombola da Rasa, no Rio de Janeiro, porque depois de tantos séculos de luta para existir num país fundado sobre os corpos dos escravos, você morreu por racismo. Eu peço perdão a você, Carlilo Floriano Rodrigues, que criou sete filhos com tanto carinho, e caminhou com coragem mesmo sem uma perna. Eu peço perdão a você, Alayde Antônia Rossignolli Abate, que não se desgrudava de seu cachorro de nome Paçoca. Eu peço perdão a você, Roosevelt Guimarães Soares, que enquanto viveu acordava as três horas da madrugada para vender melancia na feira. Eu peço perdão a você, Delcides Maria Oliveira, que na infância enganou a fome com colheradas de café mas não conseguiu vencer a indiferença do Governo diante dos mortos pela covid-19. Eu peço perdão a você, adolescente Yanomami morto aos 15 anos e enterrado em terra estranha como se coisa fosse. 

Eu peço perdão a todos os 100.000, cada um com seu nome, sua história, seus desejos, suas fraquezas, seus sonhos e seus amores. Seus gestos que o crime imobilizou. Peço perdão aos Inumeráveis que foram convertidos em estatística e aos Vagalumes que tiveram sua luz apagada pela indiferença de Bolsonaro diante de suas vidas. “E daí?”, disse o genocida, quando eram 5 mil mortos pela “gripezinha”. Eu peço perdão pela vida interrompida pela fome de morte daquele que disse, na última quinta-feira, diante da proximidade dos 100.000 brasileiros mortos: “Vamos tocar a vida e buscar uma maneira de se safar desse problema”. 

Eu peço perdão porque Bolsonaro só pode ser presidente porque há milhões iguais a ele, com a mesma indiferença pela vida do outro, andando sem máscara para que você morra sem ar. Eu peço perdão por aqueles que foram enterrados em covas sem nome. Eu peço perdão por aqueles que foram enterrados em caixas de papel porque faltou caixão. Eu peço perdão por aqueles que sofreram a indignidade de começarem a se decompor em casa porque não havia serviço público para buscar seus corpos, submetendo suas pessoas queridas à tortura de sentir aversão pelo cheiro de quem amavam. Eu peço perdão a você, bebê Yanomami, que foi sepultado longe da sua terra e do seu mundo, sem o lamento de seus pais, sem as homenagens de seu povo, e portanto, não terá paz nem deixará os vivos em paz. 

Eu peço perdão a todos aqueles que não foram chorados na sepultura, aos enterrados por um coveiro que os desconhecia, submetendo seus vivos ao flagelo de não se despedir e portanto não fazer luto. Eu peço perdão aos coveiros submetidos à brutalidade do Estado. Eu peço perdão aos profissionais da saúde que arriscam sua vida dia após dia e são agredidos nas ruas por incitação do presidente da República. Eu peço perdão ao bebê Xavante que, ao morrer, contaminou parte do seu povo que não recebeu nenhuma orientação para se proteger de mais um vírus. Eu peço perdão aos indígenas que, por viverem na cidade, tiveram suas identidades arrancadas pelo mesmo Estado que os expulsou de suas terras. Como suas mortes não são computadas como aquilo que são ― indígenas ― são mortos uma segunda vez. Eu peço perdão por permitirmos que gente seja tratada como coisa e por nos coisificar ao normalizar o extermínio. Eu peço perdão não porque tenho “culpa cristã”, como já fui “acusada” em outros momentos. 

Eu peço perdão porque tenho “responsabilidade coletiva”, porque sou responsável pelo que fizeram e pelo que fazem no meu e no seu nome. Bolsonaro está perpetrando um genocídio em nosso nome quando substitui profissionais da saúde experientes em epidemias por militares inexperientes em saúde, está perpetrando um genocídio em nosso nome quando distribui cloroquina e hidroxicloroquina até mesmo para povos indígenas, medicamentos cuja ineficácia para combater a covid-19 já foi cientificamente comprovada, assim como seus riscos. Está perpetrando um genocídio em nosso nome quando retém os recursos destinados ao enfrentamento da pandemia enquanto faltam até mesmo sedativos nos hospitais para aplacar a dor das vítimas. Está perpetrando um genocídio em nosso nome quando veta medidas de segurança e estimula que as pessoas vão às ruas sem máscaras.

É possível seguir empilhando atos de Bolsonaro que comprovam sua intenção de matar. E também de deixar morrer, o que é uma outra forma de matar, já que um governante tem a responsabilidade constitucional de proteger a população do país que governa. Eu peço perdão. E digo também que, ainda que sejamos poucos, resistiremos. 

Os povos que estão sendo massacrados, como os indígenas, estão produzindo suas próprias estatísticas e seus memoriais. É a maneira de reconhecer a vida dos que morreram e lhes dar a dignidade da verdade na morte. Diante de crimes contra a humanidade, os obituários ganharam o significado da resistência. Contar a história e as histórias tornou-se insurgência – para que os mortos possam viver como memória e seus assassinos não escapem da justiça. Resistimos contando os mortos em mais de um sentido ― como estatística confiável, como identidade reconhecida, como história contada. Nos insurgimos fazendo viviários dos que foram mortos, porque diante das ações e das omissões de Bolsonaro e de seu Governo, morrer de covid-19 não é morte morrida, é morte matada. 

Nós, os que Bolsonaro e seu Governo ainda não conseguiram matar, lembraremos e faremos lembrar. E, quando morrermos, nossos filhos lembrarão. E quando nossos filhos morrerem, nossos netos lembrarão. Caro Jair Bolsonaro, caros generais, caros civis envolvidos nos crimes contra a humanidade relacionados à covid-19: eu espero que vocês sejam assombrados pelos 100.000 mortos. Eu espero que um dia alguém faça um filme da marcha dos mortos à Brasília, marcando a volta do realismo fantástico em nosso continente, já que a realidade que vocês impuseram nos roubou até mesmo a possibilidade da fantasia. Então, liderados pelo grande Aritana, que carregará em seus braços os corpos mortos dos bebês Yanomami insepultos, 100.000 dedos apontarão para seus rostos. Vocês poderão, talvez, escapar dos tribunais. Não escaparão da memória.