Não se trata de um exercício de futurologia macabra, mas sim da constatação de um fato: os graves desdobramentos da pandemia no Brasil são frutos de uma metódica construção por ações e omissões. Não há como imaginar que melhores resultados hão de vir à frente quando comportamentos que os ensejariam não se mostram presentes, tanto no governo como na sociedade.

Construiu-se essa tragédia porque a todo tempo Bolsonaro se mostrou preocupado exclusivamente com seus interesses particulares, em especial seu inoportuno projeto de reeleição, pondo-se a afrontar as orientações das autoridades sanitárias por temer que reveses econômicos ocasionados por medidas protetivas, como o isolamento social, pudessem afetar a sua popularidade. Ao presidente da República cabia coordenar os esforços nacionais para o enfrentamento da crise.
Construiu-se essa tragédia porque o governo não soube aproveitar a janela de cerca de um mês para aprender com a experiência de outros países que já enfrentavam a covid-19 e, assim, preparar o Brasil para o que estava por vir. O Brasil é referência em planejamento e ação diante de emergências epidemiológicas, como H1N1, dengue e zica vírus, mas não se coordenou de pronto todo esse cabedal de conhecimento para preparar o SUS para lidar com a nova emergência.
Construiu-se essa tragédia porque, pelo mau exemplo dado pelo chefe do Executivo, milhões de brasileiros se sentiram seguros para furar a quarentena e provocar aglomerações porque, acreditando nele, não acreditaram na gravidade da doença ou confiaram no curandeirismo presidencial. O que dizer de um presidente que demitiu dois ministros da Saúde em meio à pandemia apenas porque ambos tiveram a ousadia de contrariar suas perigosas posições por prescrições com argumentos baseados na melhor ciência? O que dizer de um presidente que anda com uma caixa de cloroquina a tiracolo – medicamento ineficaz contra a covid-19 – ofertando-a até para uma ema como a panaceia de todos os males? Jair Bolsonaro pôde contar com o apoio do STF e do Congresso Nacional para adotar as melhores medidas de combate à pandemia, mas não o fez por cálculo político, frieza ou birra. Ou tudo isso junto.
Construiu-se essa tragédia porque muitos governadores e prefeitos sucumbiram às pressões de toda sorte para reabrir o comércio e espaços públicos antes que houvesse segurança para isso. Uns por negarem a gravidade da pandemia, como o presidente. Outros pelo receio das implicações eleitorais da manutenção das restrições.
Por fim, construiu-se essa tragédia porque falta a muitos cidadãos um espírito de coletividade, o reconhecimento do passado formador comum e a comunhão de aspirações ao futuro. Com tristeza, viu-se que não raras vezes a fruição imediata de alguns se sobrepôs ao recolhimento exigido para o bem de todos. Aí está o resultado.
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