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Ruke Souza |
O narcisismo galopante do nosso tempo não vai andar a trote tão cedo. O melhor, por enquanto, será examiná-lo à procura das vantagens que possa ter.
Claro que o narcisismo que incomoda nunca é o nosso: é sempre o dos outros. Mesmo assim, o narcisismo dos outros é como um daqueles muros cravados de vidros partidos: é um obstáculo, é uma chatice, é um desperdício de tempo e de latim, mas arranja-se sempre maneira de transpô-lo.
A generalização da vaidade, depois de séculos de insegurança geral, é uma espécie de triunfo. Não é fácil convencer uma população inteira de que é fantástica. Não é fácil convencer toda a gente de que, para conseguir o impossível, basta ter um sonho e a vontade para o tornar realidade.
Mas o que é melhor: começar inseguro e, ao longo da vida, ir acumulando provas de que não se é mau de todo, ou começar convencido e ir desbastando na vaidade, à medida que se vai revelando um tanto ou quanto exagerada?
Para já, o narcisismo tem a grande vantagem de ajudar os jovens a defender-se das manipulações dos mais sabidos. O narcisista é saudavelmente céptico e difícil de convencer. Põe logo à cabeça a pergunta fundamental, que é: “O que este quer?” E parte logo da conclusão correcta: que aquilo que ele quer é diferente daquilo que quero, mesmo que eu não saiba o que é.
Queixam-se os velhos de todo o mundo que os jovens sofrem de entitlement, de achar que têm direito a tudo e mais alguma coisa, só pelo facto de existirem.
Ora, há milénios que isto é assim, sendo apenas mais uma variante do “eles não querem é trabalhar” e do “eles não sabem o que custa” e do “cresce e aparece”.
É difícil traduzir entitlement e entitled. Proponho os reivindinhos.
Os jovens de hoje em dia portam-se como reizinhos muito bem-vindos que reivindicam logo, sem ter de levantar uma palha, mordomias e vassalagens – como se fosse um direito natural, concedido à nascença aos nobérrimos bebezinhos.
Mas como são todos reivindinhos a concorrência é ferocíssima.
Todos nós hoje nos desabituamos, ou antes nos desembaraçamos alegremente, do penoso trabalho de verificar. É com impressões fluídas que formamos as nossas maciças conclusões. Para julgar em Política o facto mais complexo, largamente nos contentamos com um boato, mal escutado a uma esquina, numa manhã de vento. Para apreciar em Literatura o livro mais profundo, atulhado de ideias novas, que o amor de extensos anos fortemente encadeou—apenas nos basta folhear aqui e além uma página, através do fumo escurecedor do charuto. Principalmente para condenar, a nossa ligeireza é fulminante. Com que soberana facilidade declaramos—«Este é uma besta! Aquele é um maroto!» Para proclamar—«É um génio!» ou «É um santo!» oferecemos uma resistência mais considerada. Mas ainda assim, quando uma boa digestão ou a macia luz dum céu de Maio nos inclinam à benevolência, também concedemos bizarramente, e só com lançar um olhar distraído sobre o eleito, a coroa ou a auréola, e aí empurramos para a popularidade um maganão enfeitado de louros ou nimbado de raios. Assim passamos o nosso bendito dia a estampar rótulos definitivos no dorso dos homens e das coisas. Não há ação individual ou coletiva, personalidade ou obra humana, sobre que não estejamos prontos a promulgar rotundamente uma opinião bojuda E a opinião tem sempre, e apenas, por base aquele pequenino lado do fato, do homem, da obra, que perpassou num relance ante os nossos olhos escorregadios e fortuitos. Por um gesto julgamos um carácter: por um carácter avaliamos um povo.Eça de Queirós, "A Correspondência de Fradique Mendes"
"Essa pátria nunca me foi gentil”.
Foi esse o breve e certeiro comentário que dona Marilda de Souza Francisco fez ao ouvir o hino nacional tocado solenemente em uma das mais importantes instituições arquivísticas do país. Na ocasião, dona Marilda compunha a mesa de conferencistas que falavam sobre um interessante projeto histórico e arqueológico que está sendo realizado em conjunto entre movimento social negro, universidades públicas federais, entidades do Estado e instituições internacionais na tentativa de localizar aquele que seria um dos últimos navios negreiros que chegaram ilegalmente no Brasil, e que naufragou na costa de Angra dos Reis (RJ) no início da década de 1850.
A história é interessantíssima, e torcemos para que essa iniciativa conjunta possa revelar mais detalhes desse navio, de quem eram os africanos e africanas que foram sequestrados em Moçambique, e do Brasil que manteve o tráfico ilegal de escravizados por décadas, contrariando as suas próprias leis.
Mas, para mim, não resta dúvida que o que há de mais importante nessa história é o fato dela ter chegado até nós por meio da tradição oral que estruturou a memória e as histórias dos homens e mulheres que viviam no Quilombo Santa Rita do Bracuí, em Angra dos Reis.
Por muitos anos, os mais velhos contavam sobre as fazendas de engorda da família Souza Breve, fazendas essas que serviam para receber os africanos ilegalmente escravizados e garantir que eles e elas receberiam um tratamento adequado para melhorarem de saúde depois da travessia atlântica, chegando em boas condições de saúde nas fazendas de café que a família tinha no Vale do Paraíba fluminense. Sim. Fazendas no plural. Porque os Souza Breve eram proprietários de milhares de escravizados e dezenas de fazendas na região, além de atuarem no tráfico ilegal de africanos escravizados.
E foi escutando as histórias dos mais velhos que dona Marilda Francisco começou a perceber que havia um grande fundo de verdade naquilo que mais parecia conto de assombração. E essa não era a única história contada pelos mais velhos. O conhecimento que permeava a vida dos moradores do Quilombo do Bracuí eram ecos de histórias que o Brasil, essa pátria que nada tem de gentil, escolheu esquecer.
Mas dona Marilda, junto com outros moradores do quilombo, decidiu que essa história precisava ser conhecida e escutada. E, assim como outras mulheres negras e quilombolas, ela teceu – em meio à coletividade da qual faz parte – uma outra interpretação do que é o Brasil de ontem e de hoje. Uma interpretação que parte do quilombo!
Não é a primeira nem a última vez que uma liderança quilombola se ergueu contra uma ideia muito bem estruturada de Brasil. Também não é coincidência que hoje, 25 de julho, é a data na qual comemoramos o Dia da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha. Há 250 anos, num outro 25 de julho, morria Tereza de Benguela, uma mulher negra que foi líder política e militar de Quariterê, um dos mais importantes quilombos da região central do Brasil Colônia. Sua história de luta e resistência ao sistema escravista, bem como de construção de um outro tipo de comunidade, ecoa nas histórias de outras mulheres negras que fizeram e continuam fazendo do quilombo não só um lugar de pertencimento, mas também uma forma de enxergar o mundo.
E por mais que haja uma série de particularidades que precisam ser (re)conhecidas quando tratamos de comunidades quilombolas – que ainda sofrem inúmeras dificuldades para terem suas terras demarcadas, e muitas vezes são impedidos de exercerem sua cidadania de forma plena – não podemos fugir da realidade que dona Marilda colocou tão bem: o Brasil nunca foi uma pátria gentil aos quilombolas, porque as histórias e trajetórias que esses quilombolas contam colocam em xeque a ideia de um pais pacífico, harmonioso e sem racismo.
Não foi por acaso que importantes intelectuais negros fizeram do quilombo um conceito-chave para interpretar o Brasil e sua história. Aqui, lembro de Maria Beatriz Nascimento, que se estivesse viva teria completado 81 anos no último dia 17 de julho. Essa historiadora (que não à toa teve pouco reconhecimento em vida) sistematizou uma análise do Brasil que partia das vozes e saberes de mulheres como dona Marilda e Tereza de Benguela, apresentando a todo momento que por trás daquele país forjado pelas instituições do Estado, existiam quilombos pulsantes, que criavam outros sentidos de nação e de luta por liberdade. Como bem disse Antônio Bispo dos Santos no seu livro A terra dá, a terra quer: "as nossas vidas não têm fim” (p.102).
E essas são histórias que não devem ser reconhecidas e engavetadas na caixa "das histórias quilombolas” como uma espécie de subcapítulo da "história negra no Brasil”. Não que isso seja pouco, mas essa classificação muitas vezes nos engessa e faz com que percamos a dimensão real daquilo que era dito e contado. Estamos tratando da história do Brasil. E também estamos reconhecendo que durante séculos parte dessa história foi contada por pessoas específicas, ignorando propositadamente todo um mar de vidas, trajetórias e lutas. E o pior, essa ideia deturpada de Brasil fez com que muitos de nós imaginemos que o quilombo é algo perdido no passado.
Como o movimento negro diz há tanto tempo: o quilombo também é hoje.
Chame do que você quiser. No papel ou na tela, lido ou ouvido, o jornalismo continuará existindo enquanto o ser humano não perder a curiosidade de ser informado ou o gosto de ser surpreendido.
O jornalismo, como a poesia, não pode morrer porque, como dizia o filósofo e Prêmio Nobel de Literatura François Mauriac , eles são “a oração matinal do homem secular”. A curiosidade existe até nos animais. Se não, pergunte aos meus gatos Nana e Babel.
Nosso mundo, com o advento da inteligência artificial (IA), vive um momento de crise existencial que eu não chamaria de extinção, mas sim de transferência do tempo. Uma mudança tão ou mais profunda do que quando surgiu a escrita, a roda, o motor, a eletricidade, o pouso na lua ou a energia atômica. E agora o mundo digital.
Das tabuinhas de barro da antiga Mesopotâmia aos pergaminhos, ou da revolução da escrita no papel com Gutenberg, o ser humano sentiu a necessidade de ler e aprender, de satisfazer a sua curiosidade, de decifrar o mistério. E continuará a fazê-lo em qualquer suporte que seja.
Um dia talvez possamos ler o jornal na parede do nosso quarto ou na palma da mão. Os suportes vão mudar, mas a nossa curiosidade de saber e interpretar as notícias, ler a vida, vai continuar intacta.
Às vezes me perguntam se não me arrependo de já ter trabalhado por mais de meio século em um jornal. Não, porque o jornalismo, hoje tão criticado, foi e será sempre, com todas as suas possíveis alterações, o pão de cada dia do Homo sapiens. Dizem que as redes vão matá-lo com suas notícias falsas, sua falsa liberdade de expressão, sua rapidez em dar notícias que os jornais não podem pegar porque precisam, se forem reais, verificar sua veracidade.
É curioso e sintomático que, quando alguém nos dá uma notícia importante hoje, imediatamente nos perguntemos onde a leu ou ouviu. Se foi nas redes ou num jornal ou rádio em cuja seriedade confiamos.
Aos jovens estudantes de jornalismo que hoje me perguntam se tal profissão ou ofício vale a pena, respondo que sim. Que talvez valha mais do que nunca, já que a notícia, a não manipulada, passa ainda incólume pelos jornais tradicionais, seja qual for o seu suporte, e diria mesmo a sua ideologia.
Neste momento acompanho a dura e triste guerra da Rússia na Ucrânia através das crônicas e análises de meus colegas que a vivenciam heroicamente no campo de batalha. Confio na sua seriedade e profissionalismo e que não tentarão enganar-me, o que nem sempre nas redes que não só são politizadas como tantas vezes explicitamente manipuladas.
Ao jornalista como tal, se é verdade que está preso às regras internas do seu Caderno de Estilo, muitas vezes é oferecida a oportunidade de experimentar a realidade em primeira mão. O jornalismo pode ser arriscado, mas também pode ser recompensador.
Depois de quase meio século de jornalismo tradicional e como correspondente deste jornal na Itália, no Vaticano e no Brasil, o que me permitiu várias vezes viajar pelo mundo, muitos insistem em eu escreva minhas memórias. Sempre recusei porque fazem parte do trabalho da minha profissão. E cada vida é uma história que merece ser contada.
Hoje, porém, queria contar um dos momentos do início da minha profissão que mais me marcou. Foi em 1980, durante o terremoto ocorrido na Itália, na Campânia e na Basilicata, com o triste saldo de 3.000 mortos, 7.500 feridos e 280.000 desabrigados, num lençol de território.
O fundador e então diretor deste jornal, Juan Luis Cebrián, me aconselhou a não ir ao local do terremoto por causa do perigo que representava. Eu o desobedeci. Eu estava em Roma, a duzentos quilômetros de Nápoles, de onde deveria ter voado para o local da tragédia ainda crua.
Minha decepção foi, ao chegar em Nápoles, não haver possibilidade de voar até o local do terremoto. Finalmente consegui um lugar em um helicóptero militar, mas sem radar e, portanto, perigoso. Eles enfatizaram para mim o quão perigoso era. Eu aceitei ir. Isso me permitiu experimentar os últimos tremores do terremoto por algumas horas, ouvir os gritos dos enterrados vivos e as casas desmoronar diante dos meus olhos. Além de observar o desespero das famílias que se procuravam como num gigantesco inferno na carne.
Na volta, o piloto do helicóptero militar me perguntou se eu poderia carregar no colo um menino de quatro anos que morrera no terremoto, e cuja família não fora encontrada.
O cadáver da criança viajava de joelhos, esperando chegar ao aeroporto de Nápoles e entregá-lo às autoridades que se encarregariam de encontrar sua família. Por respeito à criatura que nem em meus sonhos podereia esquecer, nunca quis escrever a história.
Hoje, às vésperas do meu 91º aniversário e de mais de meio século de jornalismo, gostaria, porém, como melhor presente, ter aqui, para almoçar ao lado de minha família e amigos, aquele menininho que pensei estar carregando morto de joelhos. Sim, porque o melhor da história é que depois descobri que no aeroporto os médicos que examinaram o menino descobriram que ele estava vivo. Ele havia sido salvo.
O jornalismo também é isso e por isso não pode morrer. Como os poetas não poderão morrer ou deixar de criar se não quisermos que o nosso mundo realmente se apague.
Somos feitos não só de lama bíblica, mas também do eterno desejo de que a notícia seja contada, ainda que às vezes doa com o eterno decálogo das clássicas perguntas: o quê, quem, como, quando, onde e por quê. Sim, mas sem mentir.