segunda-feira, 29 de junho de 2020

Brasil do 'Cavalão'


Renda inclusiva

A crise social e econômica pela Covid-19 criou unanimidade na defesa da Renda Básica da Cidadania Universal. Este apoio à generosidade de uma renda para os pobres é natural, mas é incorreto passar a ideia de que ela promove inclusão social. Deve-se apoiar a ideia da renda mínima, alertando para o fato de que se trata de um gesto sem consequência emancipadora da pobreza real. Uma ferramenta positiva para reduzir a penúria, sem superar a realidade da pobreza.

Quando a ideia da Bolsa Escola foi divulgada, em 1987, no livro “A revolução nas prioridades”, seu nome era Renda Mínima Vinculada à Educação. Reconhecia o papel inspirador de Eduardo Suplicy, mas explicitava a diferença estratégica com a Renda Mínima. A adoção posterior do nome Bolsa Escola teve como propósito deixar claro que no lugar da renda era a educação que faria a inclusão, a bolsa era um salário à mãe para que seus filhos não faltassem às aulas.

A Renda Mínima parte do conceito de que a pobreza pode ser atendida pelo aporte de dinheiro à família para ela comprar o que precisa no mercado. Distribui uma pequena renda, sem distribuir patrimônio. A Renda Vinculada parte do conceito de que a pobreza decorre da falta de acesso a uma cesta essencial, composta por, no mínimo: comida; endereço com água potável, coleta de lixo e esgoto; educação de base com qualidade; atendimento ambulatorial e hospitalar; transporte público.

Parte da cesta essencial exige renda e compra no mercado, parte exige acesso a bens e serviços públicos. A Renda Vinculada à Inclusão funciona como um incentivo monetário que assegura renda para o beneficiário pagar pela comida e transporte público, e induz seu trabalho na produção de serviços de que sua família precisa para completar a cesta essencial: educação, saneamento, moradia. Além disso, diferentemente da distribuição mínima de renda, distribui também o patrimônio produzido.

A Bolsa Escola é um exemplo. Transfere renda para enfrentar as necessidades imediatas, mas, ao exigir que as crianças frequentem a escola até o final do ensino médio, promove a inclusão social. A bolsa atende à possibilidade de sobrevivência, a escola induz a sair da pobreza. O mesmo conceito se aplica aos outros incentivos sociais que atuam como rendas emancipadoras, tais como: pagamento condicionado a melhorar a própria moradia do beneficiado; renda vinculada à plantação de árvores no bairro, à construção ou cuidado de parques infantis, pintura de escolas; bolsa para analfabetos aprenderem a ler; renda para jovens fazerem serviço militar-civil ou para obterem um ofício; um salário para pessoas se submeterem a treinamento e depois cuidarem de crianças sem vaga em creche; emprego em obras de saneamento; pagamento de renda para promover desmigração de quem desejar sair de grandes cidades e voltar à sua cidade de origem.

O beneficiado que recebe uma renda mínima sem vinculação necessita ser rentista para sempre, sem sair da pobreza; aquele que recebe uma renda inclusiva, com vinculação, ao final de um prazo, tem o patrimônio que ele produziu: a casa ampliada, rebocada, pintada, com saneamento; os velhos alfabetizados e os filhos educados. A renda atende às necessidades imediatas, seu condicionamento promove a ascensão social, graças ao que será produzido.

O custo financeiro de um programa de Renda Inclusiva pela Vinculação seria o mesmo de um programa de Renda Básica da Cidadania; requer, entretanto, esforço gerencial do Estado na sua execução. Por isso, a simplicidade da ideia da renda mínima sem condicionamento sensibiliza os defensores da estratégia do “neoliberalismo social”, com o Estado mínimo, limitado a uma rede de agências bancárias, como está sendo feito com o Auxílio Emergencial.
Cristovam Buarque

Praça

Um momento perturbador:
o passarinho bebe água
na mão da estátua do ditador.

Raul Drewnick

Lições de uma tragédia

O Brasil ultrapassou a desoladora marca dos 56 mil mortos por covid-19. Em todas as regiões do País, choram dezenas de milhares de pais, mães, filhos, avôs, avós, netos e amigos que perderam gente amada e nem sequer puderam confortar uns aos outros com um simples abraço.

A subtração repentina dos ritos funerários, fundamentais para a construção de um sentido para a morte, é uma faceta particularmente cruel dessa doença, tanto mais perversa porque a esmagadora maioria das vítimas passou suas últimas horas de vida sem o acalento de seus familiares.

Por empatia ou compaixão, milhões de brasileiros que tiveram a sorte de não perder um ente querido para o novo coronavírus tampouco vivem dias de paz. A maior tragédia nacional em mais de um século fez do luto uma experiência coletiva e impessoal. Hoje, o Brasil é um país triste.


Mas, por mais severas que sejam, quase todas as perdas ocasionadas pela pandemia poderão ser superadas mais cedo ou mais tarde, com maior ou menor grau de dificuldade. As eventuais transformações da sociedade na direção do que se convencionou chamar de “novo normal”, que tanto tem ocupado filósofos, psicólogos, sociólogos e economistas no momento, serão assimiladas no tempo adequado para cada indivíduo.

Empresas quebradas poderão, eventualmente, ser reerguidas. Outras tantas serão criadas pelas necessidades impostas por um evento dessa magnitude. Em breve, aviões voltarão a riscar os céus no mundo inteiro. Empregos serão recuperados. Aulas serão retomadas. O comércio já está em franco processo de reabertura, em que pese a impertinência, para dizer o mínimo, de uma medida como essa no atual estágio da pandemia no País.

Mas nada haverá de apagar da memória nacional o fato de que, em apenas três meses de 2020, mais de 56 mil brasileiros morreram em decorrência da covid-19, centenas deles profissionais da área de saúde que atuavam na linha de frente do combate a essa nova e perigosa ameaça sanitária com a bravura e dedicação que os distinguem. De uma hora para outra, mais de 55 mil histórias de vida se tornaram impossibilidades antes que fosse possível assimilar em toda a sua inteireza o que uma tragédia como essa representará para o País no futuro.

Para quem sofre a dor da perda de um familiar, não há diferença essencial entre uma morte e mais de 50 mil. No entanto, o triste marco haverá de nos servir, aumentando a coesão da Nação, caso tiremos as lições corretas dessa tragédia e as transformemos em ação política concreta. Do contrário, restarão apenas o assombro, a dor e a indignação.

A sociedade deve aumentar significativamente o grau de exigência na escolha de seus governantes. Há bons e maus exemplos de políticas públicas adotadas pelas três esferas de governo durante a pandemia, mas houve aqueles que se revelaram líderes indignos da designação, aquém da altura de suas responsabilidades na condução de seus governados nesta hora grave, a começar pelo presidente da República. Jair Bolsonaro entrará para a história como o presidente que desdenhou da gravidade da pandemia, fez pouco-caso das aflições dos brasileiros e apequenou o Ministério da Saúde no curso de uma emergência sanitária.

É certo que a pandemia atingiu todos os brasileiros, mas uns foram muito mais afetados do que outros. Passa da hora de a Nação olhar para seus milhões de desvalidos e lutar para reduzir a brutal concentração de renda que há séculos obsta o desenvolvimento humano no País.

Por fim, mas não menos importante, é preciso cuidar melhor do Sistema Único de Saúde (SUS). Não fosse o SUS, o País estaria pranteando não 56 mil, mas um número incalculável de mortos. O SUS é um avanço civilizatório que tirou a saúde da lógica de mercado ou do mero assistencialismo e a alçou à categoria de direito universal. A pandemia só evidenciou sua importância, como se isto fosse necessário, e a necessidade de mais investimentos.

A melhor forma de honrar a memória dos mais de 50 mil mortos em decorrência da covid-19 é transformar o Brasil em um país menos desigual e mais fraterno. Em suma, um lugar melhor para viver.

Como o vírus, Bolsonaro também passará

Até quando os generais que cercam Jair Bolsonaro conseguirão impedir que ele detone novas crises como vinha fazendo com regularidade ao longo dos últimos meses? E até quando o ex-capitão, expulso do Exército por planejar atentados a bomba em quarteis, manterá sob controle seus instintos mais primitivos?

Não deve estar sendo fácil para ninguém – nem para os militares que transformaram o Palácio do Planalto num puxadinho do Quartel-General do Exército a pouca distância, nem para um presidente que já proclamou muitas vezes que é ele quem manda. Um dia desses, chegou a dizer que a Constituição era ele.

Sem saber, uma vez que é reconhecidamente ignorante e não gosta de livros porque eles contém “muitas letrinhas”, Bolsonaro lembrou Luiz XIV, Rei da França e de Navarra entre 1638-1715, a quem se atribui a frase famosa: “O Estado sou eu”. Luiz XIV governou 72 anos. Luiz XVI foi deposto e guilhotinado em Paris.


Os porta-vozes informais de Bolsonaro sugerem que ele amadureceu e está disposto a cumprir a Constituição tal como disse que o faria ao se eleger e ao tomar posse. Só não explicam porque ele a afrontou toda vez que pode. Negam que a mudança de comportamento se deva apenas à conjuntura difícil que enfrenta.

Devagar com o andor. A conjuntura é que impõe limites a Bolsonaro, e a pressão redobrada que os militares voltaram a exercer sobre ele. Descarte-se a ameaça que teriam feito de abandoná-lo porque seu verdadeiro propósito é mantê-lo onde está até o fim do mandato e, se possível, por mais quatro anos.

Na verdade, a conjunção de más notícias foi que levou Bolsonaro nas últimas semanas a tentar parecer o que não é. Ouviu o tropel da cavalaria – o cerco judicial a ele e aos filhos, o eclipse do plano de reformas do ministro da Economia, a prisão de Queiroz e o peso da tragédia do Covid-19 que se recusou a enxergar.

E então se acautelou porque outra saída, por ora, não tem. Se será capaz de resistir à tentação de atravessar a rua para pisar em uma casca de banana, não se sabe. Contraria sua natureza não fazê-lo. Se mais adiante, caso se sinta forte, se conservará mesmo assim cauteloso, é porque teria finalmente aprendido alguma coisa.

Não há porque lhe conceder crédito de confiança desde já. O estrago que causou ao país até aqui ficará para sempre registrado na lápide dos que morreram por sua incúria e na memória dos que sobreviveram. A buscar-se algum conforto, só a certeza de que, como o vírus, ele também passará. Quanto mais cedo, melhor.

Só tiranos e maus políticos gostam que lhes ergam estátuas

Três dos meus amigos perderam os pais em 1977, em Angola, fuzilados na sequência de uma nunca provada tentativa de golpe de Estado contra o então presidente da República, António Agostinho Neto. Num discurso famoso, Neto disse que não iria perder tempo com julgamentos, incitando ao assassinato de todos aqueles que contestassem a sua liderança. Perto de 50 mil pessoas foram presas, torturadas e mortas durante esse período de desvairado ódio institucional. 

Há poucos dias, o jornalista angolano William Tonet provocou acesa polêmica no país ao sugerir que as estátuas de Agostinho Neto deveriam ter o mesmo destino das dos escravocratas e racistas americanos. 

Não me parece difícil compreender a revolta das pessoas cujos parentes e amigos foram executados às ordens de Agostinho Neto. As estátuas representando o primeiro presidente angolano constituem para essas pessoas uma afronta permanente. Não adiantaria muito colocar uma placa junto às referidas estátuas explicando que Agostinho Neto foi um grande patriota angolano, sim, mas também um déspota terrível. Seria como apresentar alguém dizendo: “Senhoras e senhores, peço o vosso aplauso para este assassino adorável e maravilhoso.”



Da mesma forma que compreendo os argumentos de William Tonet, não posso deixar de concordar com os jovens iconoclastas americanos. Uma estátua de um homem que enriqueceu comprando e vendendo pessoas, ou que se notabilizou defendendo a natureza inferior deste ou daquele grupo populacional, ofende não apenas os descendentes dessas pessoas, mas toda a Humanidade. Tais estátuas nunca deveriam ter sido erguidas. Isso só aconteceu porque naquela época o pensamento dominante aprovava ou tolerava ideias que hoje, felizmente, nos parecem moralmente repugnantes. A partir do momento em que a Humanidade ascendeu, revoltando-se contra tais ideias, o elogio público às mesmas deveria ter sido retirado.

Sem surpresa, a ânsia de cortar cabeças de pedra ou de bronze tem provocado vítimas inocentes. Em Lisboa, uma estátua que pretende homenagear o padre Antônio Vieira foi pichada com tinta vermelha. Em Coimbra, um busto de Baden-Powell, não o músico, mas o fundador do escotismo, perdeu a cabeça. Em Paris, atacaram uma imagem de Voltaire. 

Conhecendo a obra de Antônio Vieira — um padre português, de origem africana, que dedicou a vida à defesa das populações indígenas do Brasil —, suponho que caso lhe dessem oportunidade, ele mesmo decapitaria aquela sua estátua, e outras que eventualmente existam pelo mundo. A melhor homenagem que se poderia prestar a Antônio Vieira seria criar uma fundação com o seu nome, dedicada a defender os primeiros habitantes do Brasil. A Voltaire, como a qualquer outro escritor, não existe melhor homenagem que ler e divulgar a sua obra.

Suspeito que só os tiranos e os maus políticos gostam que lhes ergam estátuas. E, excetuando os pombos, não vejo quem possa, com argumentos sólidos e convincentes, defender as estátuas de tiranos e maus políticos. 

Imagem (de todo) Dia


A morte e a morte da democracia

É preciso retomar o tema da democracia ameaçada. A prisão de Fabrício Queiroz conteve o avanço da extrema direita. Muitos interpretam o perigo de golpe apenas como um blefe de Bolsonaro, um delírio que agora se dissolve.

São pessoas sensatas que me perguntaram quando soei o alarme se eu não estava exagerando.

De uma certa forma, abordei este tema num artigo de fim de semana. Lembrei a tensão nas democracias europeias dos anos 30 e as pequenas pausas que surgiam entre elas. Muitos as interpretavam como o fim dos problemas, um novo período de paz.

Não tenho nenhuma intenção de comparar a extrema direita brasileira com a Alemanha nazista. Isto serviria apenas para reforçar a ideia de que exagero. Minha preocupação é apenas analisar a pausa. Ela pode ser aproveitada para se avançar na defesa da democracia ou pode ser considerada como o fim de um período de hostilidades.

Muitos imaginam o golpe de estado clássico: tanques saindo dos quartéis e ocupando pontos estratégicos, Congresso e STF fechados. É uma espécie de tiro no coração da democracia. Acontece que, nos últimos anos, cresce o consenso de que a democracia é comida pelas beiradas, como um vírus que invade, gradativamente, seu pulmão até que pare de respirar.

Essa lenta e sistemática derrubada da democracia brasileira está em curso. Não há tanques na rua, nem censores dentro dos jornais. 

Mas a informação de qualidade está sob intenso fogo. O IBGE teve contestado seus dados sobre desemprego; a Fiocruz, invalidada uma pesquisa sobre consumo de drogas; o Inpe, decapitado por seus informes sobre o desmatamento na Amazônia. O próprio Bolsonaro tentou, mas não conseguiu, suspender a Lei de Acesso à Informação.

É como se as luzes de um edifício fossem sendo apagadas gradativamente. Na Fundação Palmares já não é possível contestar o racismo. O governo já não defende a diversidade cultural. Somos todos filhos de um mesmo Deus. Nas palavras do Weintraub: “Odeio a expressão povos indígenas.”

Três mil militares ocuparam a administração civil. No Ministério da Saúde desalojaram técnicos num momento em que se luta, e se perde, contra uma pandemia que já levou mais de 50 mil vidas. As armas são vendidas em maior escala, na medida em que cai o controle do Exército.

Na preservação ambiental, as luzes já se apagaram há muito. Na escuridão, crescem o desmatamento, o garimpo ilegal, a grilagem. Não se respeitam as leis, e os funcionários que tentam aplicá-las são demitidos.

O avanço de um golpe clássico foi contido pelo STF. Mas ele foi propagado em faixas que pediam intervenção militar com Bolsonaro na Presidência. Frequentaram essas manifestações, além do presidente, generais no governo e o ministro da Defesa.

Foi preciso prender extremistas e investigar as contas de deputados que financiam as manifestações. O Congresso não se manifesta. Está escondido atrás das togas dos ministros, esperando que canalizem sozinhos a agressividade digital bolsonarista.

Um Congresso que tem medo de tuítes sairia correndo ao ver o primeiro fuzil. Mas é preciso contar com ele.

Felizmente, a sociedade começou a acordar. Manifestos surgiram em vários setores. Esboços de frentes vão se formando aqui e ali. Há sempre quem se ache o rei da cocada e não aceita certos parceiros. Mas o rumo geral é de união.

Apesar da pandemia, surgiram as primeiras manifestações de rua. De um modo geral, pacíficas, um ou outro choque com a polícia, uma solitária faixa pedindo ditadura do proletariado, rompendo o tom.

Seria importante interpretar a pausa apenas como um tempo que se ganha para se organizar, não relaxar, achando que as coisas se resolvem sem nossa intervenção. Uma semana depois da prisão de Queiroz, o TJ do Rio já concedeu foro especial a Flávio Bolsonaro e pode anular não só a prisão, como trazer o processo à estaca zero.

Daqui a pouco, volta toda a onda agressiva e vamos nos perguntar o que fizemos na pausa. As democracias europeias vacilaram inúmeras vezes, mas acabaram vencendo no final. Mas os analistas sempre se perguntam se a vitória não poderia ter vindo mais cedo, poupado mais vidas.

Mesmo em dimensões desarmadas, o preço da vitória depende da maneira como interpretamos as relativas calmarias, se alimentamos ilusões conciliatórias ou compreendemos que, cedo ou tarde, a batalha se dará.

Realidade contra autoritarismo

Os movimentos e regimes antidemocráticos, autoritários, revisionistas e racistas têm sido bem-sucedidos nos EUA e no Brasil. Eu, no entanto, ainda acho que esses movimentos e regimes eventualmente irão se esfacelar, principalmente porque fanáticos e populistas negam a realidade. Os primeiros, porque acreditam apenas no que soa bem e pode ser útil para manipular as pessoas. Os outros, porque acreditam apenas em seus dogmas. Você pode ver isso com Trump e Bolsonaro neste momento: são completamente inaptos e inúteis quando confrontados com uma realidade — a Covid-19 — que não se encaixa em sua narrativa populista e não pode ser manipulada. 
Carolin Emcke, referência global no combate à extrema direita, autora de "Contra o Ódio"

O futuro que nos escapa

Não é só pela pandemia, pela ameaça de uma segunda onda do vírus ou pelas indicações de que ninguém fica imunizado contra ele por muito tempo. Também não é só porque a OMS advertiu que a pandemia continua em expansão, com efeitos que serão sentidos por décadas. É por tudo isso, mas também porque estamos perdendo a ideia de futuro.

Ninguém sabe com certeza como será a retomada. Fala-se em “novo normal” como um esforço para afirmar que as coisas encontrarão um eixo, um padrão regular. É um reflexo automático daquela necessidade primal que temos de segurança, ordem, estabilidade, rotina.

A verdade é que o futuro está coberto por trevas obscurantistas e promessas de regressão. É como uma paisagem na neblina. Sabemos que há algo lá e que lá chegaremos, mas não conseguimos deslindar a imagem por inteiro. O futuro escapa-nos por entre os dedos. Não temos mais uma ideia de “progresso”, que moveu a modernidade e o capitalismo desde que se projetaram na História. Mas intuímos que não voltaremos a viver como nossos pais, mesmo que conservemos muito do seu legado de hábitos e valores. Estamos meio que a esmo, perplexos.


O arranjo socioeconômico, institucional, cultural é outro. A começar da família, que modelou até hoje a sociedade. Nossos filhos adotam novos formatos de vida familiar, de casamento, vivem juntos de maneira distinta, são felizes ou infelizes de um modo todo deles.

A mesma coisa na economia. Damos como óbvio que todos querem empregos estáveis, longas carreiras em empresas sólidas, rotinas estabelecidas, carteira assinada. Seria a receita contra a “precarização”, um remédio para valorizar o trabalho e os trabalhadores. Não sabemos se é isso mesmo que as pessoas querem. Talvez não seja a expressão do desejável para as novas gerações, mais chegadas ao improviso, à excitação do movimento, da velocidade. Também ignoramos se tal cenário é factível num mundo de tecnologias onipresentes e mudanças aceleradas. E as empresas, por sua vez, têm dificuldades para se reposicionar no mercado e reformular plantas e procedimentos.

Dá-se algo parecido na política. É quase impossível admitir que os partidos voltarão a ser o que foram no século 20, estruturas burocráticas, pesadas, focadas na conquista e no controle do poder, com dirigentes que se eternizam no cargo. A democracia está posta como valor, inquestionável para a maior parte dos humanos. Mas os sistemas democráticos estão em crise, são chantageados e corrompidos por líderes e movimentos fundamentalistas, que se querem “patrióticos”, mas minam sistematicamente as bases da Nação e do Estado.

A vida mudou, arrastando consigo as imagens que tínhamos do futuro. Diante de nós se abrem uma interrogação, muitas distopias e nenhuma utopia.

Foi-se o tempo em que o escritor suíço Stefan Zweig podia se encantar com o “país do futuro”, que ele via com uma generosa pitada de ufanismo, como uma comunidade que sabia harmonizar seus contrastes. Zweig viveu no Brasil entre 1940 e 1942, auge do Estado Novo e do hitlerismo, que avançava na Europa. Suicidou-se em Petrópolis.

De lá para cá, houve grandes transformações. Aprendemos muito, o País transfigurou-se de cima a baixo. Mas não temos motivos para nos ufanarmos. Continuamos a carregar o fardo da desigualdade. Nossa produtividade estagnou, junto com a educação. O Brasil está cheio de carências e buracos. Metade da população não dispõe de água encanada e saneamento básico. Hoje não temos governo e a boçalidade se instalou em diversos setores da vida nacional.

O futuro está oculto. Em parte porque pouco sabemos sobre ele e tememos o que imaginamos a seu respeito. E em parte porque o futuro, ele próprio, se oculta de nossos olhos, desarrumado pela realidade. Há um enorme volume de conhecimentos, mas não sabemos, com nossas ciências especializadas, como organizá-los de modo a capturar o fluxo, o processo. Precisamos de uma abordagem que ultrapasse as visões parceladas, “religue-as” (Morin) e apreenda o que está conectado, o todo.

O futuro, a rigor, já está aí, incorporado à vida cotidiana sem que percebamos. Não há por que fazer previsões proféticas. “A dificuldade de conhecer o futuro depende também do fato de que cada um projeta no futuro as próprias aspirações e inquietações”, escreveu certa vez Norberto Bobbio.

A ordem geral é sempre sobreviver. Não é por acaso que tanto se valoriza o aqui e agora, o que pode ser minimamente “apalpado”, é menos incerto e duvidoso.

Mas não há somente trevas à frente. Bem ou mal, o mundo se move, os protestos se acumulam, as perversões ficam mais transparentes, a ciência se afirma, a democracia permanece no horizonte. Buscamos o tempo todo ver além da neblina, para agarrar o futuro que nos escapa.

Para sobreviver com dignidade precisamos manter a lucidez e a serenidade, combinando-as com a indignação que nos faz recusar injustiças, nos mobiliza e nos ajuda a manter a esperança e a grandeza de espírito. Essas são nossas estrelas-guia.

Temores de um coração civil

Sou de uma geração que entrou na vida adulta quando no Brasil nascia o regime militar. A maioria dos brasileiros de hoje não teve a experiência pessoal de viver tantos anos sob um regime baseado na força. Viver sem cidadania política e sem a proteção de leis que valem para todos é o mesmo que perder uma parte essencial de nossa condição humana.

No fim de nosso drama autoritário descobrimos que o sacrifício da liberdade havia sido em vão. Mesmo governando sem os limites e restrições do Estado democrático, sem Congresso livre e sem Judiciário independente, o regime terminou sem cumprir suas promessas, devolvendo um país mal economicamente e sem as mudanças e reformas que lhe abririam as portas do crescimento e da modernidade.


Uma nação que perde a sua memória será sempre uma nação sem rumo. O que fez da história da humanidade uma história em geral de evolução e de progresso tem sido justamente essa capacidade de lembrarmos de nossos erros e dos perigos que já corremos.

Nunca em nossa história nos defrontamos com tantos e tão decisivos problemas ao mesmo tempo. Depois de uma década de crescimento ínfimo fomos alcançados pela mais devastadora pandemia já conhecida por nossa civilização.

Sem vacinas e sem medicação apropriada, recorremos, aqui e em toda a parte, a um isolamento social que está dissolvendo como um ácido as estruturas econômicas e destruindo os meios de vida de grande parte da população. É um cenário de guerra e as guerras só são vencidas por nações que sabem se unir. James Madison, um dos fundadores da nação americana, há 250 anos advertia que se poucas tropas são suficientes para defender uma nação unida, nenhum exército é capaz de defender uma nação desunida.

As guerras que devemos lutar hoje são a guerra contra a doença e a guerra contra a ruína econômica, mas nenhuma delas parece ter força para nos mobilizar. Somos hoje uma nação que só quer lutar contra si mesma e se assim for, vamos certamente perder todas as guerras.

Nesta luta para nos dividir surge no ar carregado, soprado dos confins mais sombrios do nosso passado, apelos novos de intervenção militar, para que a vontade do Governo possa impor-se a todos sem restrições. Há quem desdenhe desses sinais e prefira fechar os olhos. Mas quem presta melhor atenção à história sabe que na vida das sociedades o inferno sempre nos espreita.
Manifestações de rua, com a presença ostensiva do Presidente da República e de alguns generais em cargos civis no governo, com faixas e gritos pedindo o fechamento do Supremo e do Congresso Nacional, não são simples extravagâncias destinadas ao anedotário da política. São nuvens de tempestade e é melhor nos abrigarmos.

Não seria justo associar nossas Forças Armadas a estes ensaios de golpe. Seu silêncio é o testemunho de sua lealdade às leis e à Constituição e tanto entre nós, como nos países ocidentais, os militares tornaram-se forças que estão na vanguarda da segurança das nações diante das ameaças que nascem com o poder das tecnologias. A política interna não está em sua missão.

Nos Estados Unidos o governo atual também vive de apelar para os sentimentos mais primários da sociedade e de buscar, como aqui, esconder-se atrás dos militares para se proteger. Lá a resposta dos militares foi inequívoca. O Almirante Mike Mullen, quando o Presidente Trump ameaçou empregar as Forças Armadas para reprimir manifestações contra o racismo, disparou: “Os cidadãos americanos não são e nunca serão o nosso inimigo”.

O Chefe do Estado Maior Conjunto das Forças Armadas General Mark Milley, tendo estado ao lado de Trump numa encenação pública, desculpou-se abertamente à nação “Eu não deveria estar lá. Minha presença naquele momento e naquele ambiente criou a percepção de que os militares estão se envolvendo em política doméstica.”

Em 1964, com todo o futuro à minha frente tive medo de estar perdendo algo muito grande em minha vida. Eu tinha razão. Depois de tantas coisas vividas, o que mais desejo hoje é esconjurar aqueles velhos temores do meu coração.