sábado, 3 de setembro de 2022

Brasil Maravilha

 


'Minto'


Para faze4r cumprir as mentiras do presente, é preciso apagar as verdades do passado
George Orwell

Forças Armadas subordinadas ao poder político

Ao responder, no Jornal Nacional, da TV Globo, ao comentário de que seus correligionários, sem sua contestação, defendiam em manifestações o fechamento do Congresso Nacional e a intervenção militar, Jair Bolsonaro mencionou o artigo 142 da Constituição. A resposta ficou pelo meio. Com efeito, todavia, o presidente referia-se à posição de poucos juristas no sentido de que esse artigo autoriza as Forças Armadas a agir como Poder Moderador, como um Poder acima dos demais, no caso de conflito entre Poderes.

Resta saber se se pretende referir ao Poder Moderador consagrado ao imperador pela Constituição de 1824 ou se se usa o termo no seu sentido literal, como órgão de conciliação entre os Poderes.

Em golpe de Estado, Dom Pedro I dissolveu a Assembleia Constituinte, que a seu ver não elaborava texto digno dele. O Conselho de Estado, nomeado para, então, elaborar a Constituição, instituiu um quarto poder, o Poder Moderador, criando a figura de rei que reina, governa e administra.


O artigo 98 da Constituição atribuía ampla competência ao chefe de Estado, mais larga que a de um presidente do presidencialismo parlamentarizado, pois o imperador podia interferir no processo legislativo, nomear e destituir ministros, dissolver a Câmara dos Deputados, prorrogar seus trabalhos, designar senadores e presidentes de província.

Por isso denominava-se o sistema de governo adotado de parlamentarismo às avessas. Ao poder imperial concederam-se inviolabilidade e irresponsabilidade.

Não se pode confundir este Poder Imperial com a pretensa intervenção das Forças Armadas em eventual conflito entre Poderes. Seria, então, o Poder Moderador a capacidade de conciliação das Forças Armadas?

Os oficiais do Exército, sob a orientação do recém-fundado Clube Militar, dirigido por Benjamin Constant, decretaram a República. Iniciou-se o período republicano com o chamado regime da espada, especialmente sob Floriano Peixoto, que impôs prisão e desterro a seus opositores.

O militarismo do primeiro mandato presidencial retornou com o sobrinho de Floriano Peixoto, o presidente Marechal Hermes da Fonseca. Entre as instituições militares e o militarismo, dizia Ruy Barbosa, vai, em substância, o abismo de uma contradição radical. O militarismo, o governo da Nação pela espada, arruína as instituições militares,

a subalternidade legal da espada à Nação.

A intensa intervenção das Forças Armadas, na primeira República, expressa-se nas revoluções de 1922, de 1924 e na de 1930, a qual, após os primeiros dias da revolta, contou com total apoio do Exército.

O golpe de 10 de novembro de 1937, instituindo o Estado Novo, teve a participação do Exército, como bem relata Hélio Silva, sendo a ditadura acordada entre Getúlio e o então ministro da Guerra, Eurico Dutra.

Como se vê, as Forças Armadas foram protagonistas da cena política em situação de comando e de substituição dos quadros civis na condução do País, impondo limitações à liberdade, o que alcançou o clímax na ditadura de 1964 e, especialmente, após 1968, com o Ato Institucional n.º 5 e a consagração da ideologia da segurança nacional.

Assim, pode-se verificar a interferência, ao longo da História, das Forças Armadas no processo político em episódios de confronto, e jamais de conciliação, substituindo-se à sociedade politicamente organizada para ditar de cima para baixo o certo e o errado, inclusive no plano dos costumes. A História não indica que as Forças Armadas tenham experiência de moderação – ao contrário.

O já referido artigo 142 da Constituição ficou, depois de debate que acompanhei na condição de assessor especial da presidência da Constituinte, assim redigido: “Artigo 142: As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos Poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.”

No primeiro substitutivo do relator, editava-se que as Forças Armadas se destinam “à garantia dos Poderes constitucionais e por iniciativa expressa destes da ordem constitucional”. Poderiam, portanto, intervir para garantia tão somente da ordem constitucional, e não da ordem simplesmente. Após reunião entre o relator da Constituinte e os relatores adjuntos com o presidente Sarney e o ministro da Guerra, ficou acordado que poderia haver atuação das Forças Armadas para garantia da ordem e da lei, mas por iniciativa de qualquer dos Poderes.

Submetem-se as Forças Armadas ao poder político, podendo agir para a manutenção da ordem e da lei apenas quando convocadas por iniciativa de um dos Poderes constitucionais. Não são as Forças Armadas, de conseguinte, um poder, malgrado a relevância de garantes da ordem constitucional, pois subalternas ao comando político da Nação.

Nada justifica, portanto, diante do texto constitucional e da experiência histórica, o entendimento de que as Forças Armadas sejam um Poder Moderador.

Brasil omite violações dos direitos dos negros em relatório à ONU

O governo de Jair Bolsonaro enviou para as Nações Unidas, esta semana, a sua versão sobre a situação dos direitos humanos no Brasil. O documento faz parte de um procedimento que avalia regularmente a situação dos direitos humanos em cada um dos países-membros da ONU.

O relatório enviado pelo Estado brasileiro apresenta, no entanto, uma série de supressões e distorções da realidade em que o país se encontra – como por exemplo, no campo da segurança pública e do combate à tortura.

A Revisão Periódica Universal (RPU) da ONU, como é chamada, pretende avaliar o que o Governo tem feito para assegurar a protecção e a promoção dos direitos humanos da sua população, bem como combater violações sistemáticas, seguindo recomendações feitas pelos demais membros das Nações Unidas.

Embora tenha recebido mais de 50 recomendações relacionadas com o tema da segurança pública no último período, o Governo federal optou por não dar prioridade a esse tema no seu relatório. Isso reflete a falta de compromisso no combate à letalidade policial e ao encarceramento em massa que atingem maioritariamente a população negra, pobre e periférica do país.


O Governo parece ignorar um dos marcadores mais graves da violação de direitos humanos no país: o racismo sistêmico e estrutural. Segundo dados do 15.º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, quase 80% das pessoas mortas pela polícia em 2020 eram negras, ao passo que 66,3% da população privada de liberdade, no mesmo ano, também era composta por negros.

Em relação à prática do desaparecimento forçado, há menção a supostos esforços empenhados pelo Estado brasileiro. No entanto, ainda não há no direito interno a tipificação da conduta como crime, a fim de que seja apurada como tal e encontre respaldo legal — inclusive para a responsabilização do Estado por crimes praticados pelos seus agentes ou para omissões quanto à investigação e tutela das vítimas.

Do mesmo modo é tratado o tema do sistema de Justiça. São indicadas tão-somente as iniciativas do Poder Judiciário em relação aos casos de tortura no país. Não constam quaisquer iniciativas do Executivo ou do Legislativo objetivando, por exemplo, a redução da taxa de encarceramento, como recomendado no último período da RPU.

Fome

Gosto de cozinhar. Sempre me encanto com a alquimia desenvolvida entre o forno e o fogão. Se tudo dá certo, fotografo a travessa, comprovando dotes herdados da avó materna, e mando para os amigos que, em geral, declaram-se com água na boca.

Confesso que também como com os olhos. Sem beleza, o prato pode ser saboroso, mas não me atrai. Meu apetite estético exige toalha e guardanapo, talheres da mesma família, copo com algum diferencial, louça sem rachadura, nos dias úteis e feriados. Aí, podem me servir feijão com arroz que vou apreciar com o mesmo prazer de receitas requintadas.

Esta semana, preparei iscas de fígado com bastante tomate e cebola. Perfume e aparência estavam ótimos. Cheguei a ligar o celular para fazer a foto, mas não tive coragem, pela primeira vez sentindo constrangimento.

Foi fácil deduzir a razão. Com a campanha eleitoral, a fome tornou-se um dos temas principais. Cada candidato da oposição, a seu modo, expõe cenas e números que incomodam, polarizando a sociedade entre alimentados e famintos.

A todo instante tropeço com meninos vendendo balas nas esquinas e adultos pedindo ajuda para comprar um pão, embora o presidente atual não acredite nisso. Outro dia, um homem me abordou, dizendo que queria levar a família para almoçar no Bom Prato, do outro lado da cidade, onde as refeições custam $1,50 cada. Além do valor para garantir alimento para o casal e o filho, precisaria ajuda para pagar a condução, que aqui custa $4,90 por pessoa.

Sobreviver é para os fortes. Comer é para os que têm sorte. Cabem aqui dois clichês: promessas não enchem barriga de ninguém e de boa intenção o inferno está cheio. Quem mora na rua não tem como pleitear auxílio financeiro do governo. Quem recorre ao Bom Prato, que funciona de segunda a sexta, precisa buscar outra fonte de abastecimento nos fins de semana e feriados.

O pessoal do Censo ainda não passou por aqui. Será que pergunta quantas refeições por dia faz o recenseado? Quem mora na rua é incluído no questionário? Anda difícil ser feliz, com a miséria germinando solta feito erva daninha. Quem pode, ajuda, mas a sensação é de gota no oceano, já que são tantos os desassistidos.

A culinária já não é distração, muito menos, motivo de satisfação. Pesa na consciência estar do lado oposto da linha de pobreza. Chegar das compras no supermercado agora é quase uma afronta. Variar o cardápio conforme a vontade, então, beira o atentado. Tão cedo os amigos não verão novas fotos do que, antes, me fazia feliz… Há muitos famintos à espera de melhores dias.

De minha parte, também tenho fome. De cultura, educação, respeito mútuo, de planos possíveis e um futuro realizável. Você tem fome de que?