quinta-feira, 7 de setembro de 2023

Pensamento do Dia

 


A retomada da normalidade

O Supremo Tribunal Federal (STF) começa a julgar na semana que vem os primeiros réus da intentona golpista do 8 de Janeiro. É um evento traumático, que abalou nossa democracia, por isso necessita de punição profilática dos envolvidos. Desde que o Brasil se viu sob a ameaça autoritária do bolsonarismo, inclusive, e sobretudo, durante o processo eleitoral e as primeiras semanas do novo governo, a recuperação da normalidade virou discurso prioritário das ditas instituições nacionais.

É justo e obrigatório. Mas a ameaça à estabilidade não deveria servir de pretexto para uma recusa a apurações mais profundas das responsabilidades sobre as próprias investidas antidemocráticas, num paradoxo apenas aparente.

Desde o fim da monarquia, as Forças Armadas têm sido uma sombra sobre o poder civil democrático no Brasil, quando não executoras de sua própria subversão. O período bolsonarista foi notadamente o ápice nas últimas quatro décadas. Se é juridicamente descabida, e mesmo logicamente injusta, a investigação de “pessoas jurídicas”, será saudável para a democracia, e também para os militares, que a responsabilidade de todos seja exaurida. A proteção, com consequente promoção, de acampamentos às portas dos QGs do Exército que se revelaram incubadoras do golpismo aponta a necessidade de aprofundar as apurações para além dos fardados que estiveram presencialmente no quebra-quebra da Praça dos Três Poderes.


O traçado em curso, contudo, parece circunscrever o campo de visão à insurreição do dia 8. Nas notícias de bastidor político, nos caminhos dos responsáveis (jurídicos, policiais e parlamentares) pelas investigações e mesmo nos movimentos do governo Lula, sobressai a ansiedade por um apaziguamento sintomático da relação de temor que o poder civil tem perante as Forças Armadas. Tem-se uma estrutura de nação descalibrada se os militares são vistos como permanente ameaça velada. O exame rigoroso e sem revanchismo da participação de cada um não deve ser visto como perigo à estabilidade. É, pelo contrário, oportunidade: fortalecerá tanto as bases da democracia como a credibilidade das instituições militares.

O rechaço ao golpismo, por sua vez, também não é motivo para um salvo-conduto do novo governo ante o escrutínio público, em nome de evitar um recrudescimento do risco à democracia, argumento por vezes sacado a cada crítica ao terceiro mandato de Lula. O contraste com Bolsonaro no respeito aos valores democráticos tem de ser sempre reconhecido, mas não deve afrouxar a exigência sobre suas decisões, sobretudo em matérias republicanas. Majoritariamente, a esquerda passou a criticar a indicação do ministro Cristiano Zanin (só) quando seus primeiros votos frustraram a expectativa de ter um novo membro mais progressista no STF. Nomear o próprio advogado para a Suprema Corte, porém, foi um gol contra de Lula num momento importante de desequilíbrio institucional.

Os próximos meses incluirão, naturalmente, erros e críticas ao presidente, porque é inescapável ao ato de governar escolher caminhos em bifurcações onde não haverá soluções pacificadoras ou que agradem a uma frente muito ampla. O casamento à moda antiga com o Centrão poderá ser visto como a reedição de um modelo que propicia desvios de dinheiro público, como um pragmatismo necessário ou como uma condescendência desnecessária a uma chantagem parlamentar. Avalizar a exploração de áreas sob proteção ambiental, como a Foz do Amazonas, tem tudo para ser um dilema recorrente.

Retomar a normalidade é ainda uma chance de elevar o sarrafo da atuação independente e republicana dos constitucionalmente incumbidos de todos os Poderes, de punir os que atentaram contra eles e de reposicionar sua relação com os militares. Superar o trauma golpista será tarefa mais bem executada, em vários sentidos, se desacompanhada do brasileiríssimo hábito da contemporização.

A antropologia explica a resiliência de Bolsonaro

Teólogo católico maldito, Leonardo Boff é um crítico dos fundamentalismos. Segundo ele, todos os sistemas culturais, científicos, políticos, econômicos e artísticos que se apresentam como portadores exclusivos da verdade e da solução única para os problemas são fundamentalistas. Ex-frade franciscano, considerado um dos fundadores da chamada Teologia da Libertação, suas críticas aos dogmas religiosos o levaram ao confronto com Roma. Nascido em Santa Catarina, seu nome de batismo é Genézio Darci Boff.

Os conceitos de Boff no livro Igreja, Carisma e Poder provocaram forte reação da Congregação para a Doutrina da Fé, então dirigida por Joseph Ratzinger, que viria a ser o Papa Bento XVI. Condenado ao “silêncio obsequioso”, Boff foi proibido de difundir suas ideias renovadoras sobre a relação da Igreja Católica com o povo, por colocar “em perigo a sã doutrina da fé”.

À época, os padres católicos que adotaram a Teologia da Libertação criaram as chamadas comunidades eclesiais de base, que estimulavam a população católica das periferias e grotões a lutarem por seus direitos. Com a punição de Boff, os que defendiam suas ideias passaram a ser isolados pela própria hierarquia da Igreja, o que acabou contribuindo para afastar do catolicismo grande parcela da população pobre do nosso país.

O anticlericalismo da esquerda brasileira, que estava sendo amortecido pelas comunidades eclesiais de base, voltou-se contra a Igreja Católica, que havia desempenhado um importante papel na luta contra o regime militar. Ao mesmo tempo, os setores mais conservadores do clero ampliaram a sua influência. Essa visão anticlerical da esquerda é dogmática e incapaz de compreender a importância da religião na vida da sociedade.


Desde sempre, os mitos e ritos religiosos existem como forma de representação da nossa humanidade. Em diversos momentos, foram fatores de profunda divisão, com guerras sangrentas, como aconteceu entre católicos e protestantes e, hoje, ainda acontece entre muçulmanos sunitas, xiitas e fundamentalistas. No século passado, por isso mesmo, os antropólogos franceses passaram a dedicar muita atenção às religiões.

A antropologia das religiões parte da ideia de que a humanidade e sua cultura são realidades complexas e precisam ser estudadas com base em paradigmas mais científicos, para serem compreendidas e respeitadas, como pensamento simbólico. Não são manifestações apenas psicológicas, preenchem necessidades e revelam aspirações legítimas.

O antropólogo francês Lévi-Strauss, que lecionou na Universidade de São Paulo, realizou uma notável pesquisa sobre as estruturas de parentesco, ao estudar a vida dos índios nambiquaras, caingangues e bororos, que ainda hoje é uma referência. Sua distinção entre a ordem vivida, cuja base é a realidade objetiva, e a ordem concebida, que é a representação dessa mesma realidade, é consagrada.

É pacífico que a estrutura dos sistemas de representações e práticas religiosas tendem a assumir a função de instrumento de imposição e legitimação. O campo religioso não somente cumpre funções estritamente religiosas, mas se vincula a demandas propriamente ideológicas. É aí que os evangélicos levam vantagem. Desde quando os irmãos John e Charles Wesley, clérigos anglicanos, inspirados em Martinho Lutero, impactados pela extrema pobreza e as terríveis condições de saúde e de trabalho da Revolução Industrial, concluíram que a religião deveria adotar uma mensagem de “santidade social”, publicamente engajada nas questões sociais.

Os “evangelistas” passaram a levar a mensagem cristã aos mercados, campos e casas. Acreditaram no poder da transformação pessoal e social do cristianismo, combateram o tráfico de escravos, defenderam a educação gratuita e ajudaram a organizar os sindicatos ingleses. Seus seguidores passaram a se chamar metodistas. Com o tempo, essa forma de atuação se tornou uma característica das diversas igrejas e denominações evangélicas, sejam as mais tradicionais, sejam as pentecostais, que ocuparam o espaço vazio deixado pela desmobilização das comunidades eclesiais de base da Igreja Católica no Brasil.

Bolsonaro capturou o apoio da maioria dos evangélicos ao se opor sistematicamente às pautas identitárias da esquerda, que são vistas como um ameaça à preservação da família unicelular patriarcal. Esse apoio foi consolidado por sua aliança com a bancada evangélica no Congresso, um nó que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva ainda tenta desatar. Esse apoio evangélico explica em grande parte a resiliência eleitoral do ex-presidente da República. Tem um viés antropológico, que a ciência política não explica.

A nova relação entre religião e política no Brasil está muito cristalizada. A perda dos direitos políticos por oito anos e o isolamento a que Bolsonaro está sendo submetido no Congresso, após a tentativa de golpe de 8 de janeiro, não estão tendo o impacto que se imaginava na sua base eleitoral. Bolsonaro ainda mantém grande capacidade de transferir votos nas eleições municipais.

Mesmo o desgaste provocado pelo caso das joias que recebeu de presente da Arábia Saudita, e resolveu passar nos cobres, em vez de destinar ao patrimônio da União, ainda não abalou o prestígio popular de Bolsonaro como seus adversários esperavam. De igual maneira, a desmobilização dos radicais de extrema direita, cujos líderes estão sendo investigados e punidos por causa das invasões do Palácio do Planalto, do Congresso e do Supremo tribunal Federal (STF), também não desbaratou o bolsonarismo, que continua muito ativo nas redes sociais.

Independência ainda que tardia

Há 201 anos era tudo muito diferente. A colônia que se separava administrativamente de Portugal tinha cerca de 4,5 milhões de habitantes, sendo 1,2 milhões de escravizados (em torno de 27% da população), e um milhão de não brancos, “livres” e… pobres. Estima-se que os indígenas, que sobreviveram à conquista europeia, eram 800 mil.

O 7 de setembro de 1822 é a certidão de nascimento do Brasil. Nossa “gestação” como país foi turbulenta. Gravidez de risco: “um povo feito de povos desfeitos”, lembrou Darcy Ribeiro (1922-1997).

A amorosidade dos originários, nossa raiz, fecundou-se em exploração, crueldades e violências de todo tipo. E resistência também: nos quilombos, nas guerras nativas, na mística da religiosidade, na música. Os atabaques ecoam nas mil e uma noites do Brasil.

Nascemos em profunda desigualdade: escravização, latifúndio, monocultura de exportação. Crescemos sob o mando da aristocracia dona de terra e gente, nos tornamos República com pouco republicanismo, “com mais estadania que cidadania” (“Os bestializados”, José Murilo de Carvalho, 1939-2023).


Dois séculos depois ainda há fortes sequelas: precarização do trabalho, desemprego estrutural, concentração de renda, reprimarização da economia, commodities.

Hoje é dia de celebrar o mínimo que é muito: a data nacional sem golpismo oficial, sem “patriotismo” de entreguismo. Pequenos mas significativos avanços na Saúde, nas políticas sociais, na racionalidade civilizatória. O obscurantismo ainda rosna, mas perdeu postos de comando.

Somos 203 milhões: povo da raça Brasil, afrotupis, judárabes, euromestiços.

A bota saiu do nosso pescoço, podemos respirar. Mas ainda há muita dependência na nossa independência, muita Nação a se construir.