domingo, 12 de março de 2017


Vem aí o caixa zero

Caixa oficial de campanha irrigado por propina, caixa dois com e sem propina, propina fora dos períodos eleitorais para garantir maioria parlamentar ou para comprar votações de interesse do pagante, propina para rechear bolsos de amigos, para satisfazer mimos. Sem meias palavras ou tergiversações, crimes.

É claro que há diferenças na gravidade, na frequência, na premeditação. É assim para qualquer delito. Roubar é roubar, seja um doce ou um milhão. Mas, assim como ninguém arquiteta o furto de um doce, dificilmente garfa-se um milhão sem planejamento. Quanto mais bilhões. Não por outra razão, busca-se punir o ato de acordo com o dolo.


Na política não deveria ser diferente. Mas é. Ou, pelo menos, tem sido.

Nesta semana, possivelmente amanhã, quando o Supremo receber a segunda lista do procurador-geral da República, Rodrigo Janot, com as novas dezenas de políticos enrolados na Lava-Jato, os citados continuarão tentando aliviar o dolo para descriminalizar o ato.

Nada de novo. É o que sempre fizeram.

Nem mesmo vão se dar ao trabalho de adaptar o discurso depois de a Segunda Turma do STF considerar que a doação eleitoral oficial não exclui a hipótese da origem ilegal do dinheiro. Continuarão a exibir as contas aprovadas, como se elas fossem atestado de lisura. E aquelas declarações que realmente são idôneas vão se misturar com as que não são.

Mas se é possível enxergar diferenças e eventuais injustiças entre contas e mandatos limpos, que não foram contaminados pela roubalheira que se apoderou do Estado durante os governos Lula da Silva e Dilma Rousseff, o caixa dois a todos une. De Arnaldo Malheiros Filho, defensor de Delúbio Soares no processo do mensalão, para quem o caixa dois era “deslize típico da democracia brasileira”, ao ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que até condena a prática, mas a considera apenas como “um erro que precisa ser reconhecido, reparado ou punido”.

Ainda que não esteja tipificado no Código Penal, caixa dois não é simplesmente um “erro”. Tem condenação expressa no artigo 350 do Código Eleitoral – “Omitir, em documento público ou particular, declaração que dele devia constar, ou nele inserir ou fazer inserir declaração falsa ou diversa da que devia ser escrita, para fins eleitorais”--, com pena de reclusão de até cinco anos e pagamento de 5 a 15 dias de multa. E sabe-se lá porque essas punições nunca são aplicadas.

Além de ser crime, “caixa dois é uma agressão à sociedade brasileira”, como disse a hoje presidente do STF, ministra Cármen Lúcia, ao passar um pito em Malheiros Filho, que, na mesma sessão, em 2012, insistia em tratar o ilícito como “recursos movimentados paralelamente”.

Adicionando mais elementos ao debate, o ministro do Supremo, Gilmar Mendes, que atualmente preside o TSE, levanta a hipótese de que dinheiro limpo pode, em tese, ter financiado caixa dois.

Não é de todo improvável, embora se some aí o crime moral de financiar expectativa futura, algo usual em campanhas. Sabe-se que empreiteiras do porte da Odebrecht, bancos e outras grandes empresas, espalhavam recursos para todos os candidatos. Não queriam correr o risco de ficar mal lá na frente caso A ou B vencesse. E um pouco ou muito mais – por dentro e por fora - para o candidato predileto, aquele que, com certeza, devolveria o investimento com lucro. Não por outro motivo, as notícias sobre a conta só da Odebrecht com Lula-Dilma ultrapassaria a casa dos US$ 300 milhões.

O emaranhado entre o lícito e o ilícito, o delito maior ou menor, só ajuda os que têm contas a prestar. Além de juntar todos os políticos no mesmo balaio, os que se locupletaram buscam misturar os crimes, tirar o peso da premeditação, do dolo.

Na verdade, embora digam que não, temem mais os efeitos da quebra de sigilo das delações da Odebrecht do que a citação na nova lista de Janot, que, como a anterior, apresentada há exatos dois anos, demora a sair do lugar. Dos 50 nomes de 2015, apenas 25 são alvos de inquéritos. E só três – Aníbal Gomes (PMDB-CE), Nelson Meurer (PP-PR) e Gleisi Hoffmann (PT-PR) – viraram réus no STF. Depois de cassado e antes de ter seu processo aberto no Supremo, Eduardo Cunha (PMDB-RJ) está preso temporariamente em Curitiba.

E quem se lembra dos demais?

Na ponta do lápis, a conta é que a lista em si não produzirá efeitos penais até as eleições de 2018. As delações, ao contrário, podem ser devastadoras. Com ou sem provas, que só são apresentadas nos autos, elas chegam como bomba na opinião pública. Não poupam nem os poucos inocentes.

Pior: as confissões podem criar embaraços adicionais à na nova tentativa dos deputados e senadores de aprovar anistia para delitos passados, de zerar o caixa. Algo que, ao contrário de separar o joio do pouco trigo, unirá pequenos e grandes delitos, de primários e reincidentes.

O 'monstro'

Li um artigo de José Padilha, em “O Globo”, e dele tiro inspiração, permitindo-me ampliar algumas considerações, ainda supondo que o aumento da confiança no futuro, detectado em vários setores nos últimos dias, cresce na iminência de o “monstro” perder sua força.

Na base do sistema político brasileiro, sustenta José Padilha, opera um ‘mecanismo’ (para mim, um “monstro”) de exploração da sociedade formado por quadrilhas de fornecedores do Estado e partidos políticos que contam quase sempre com o apoio e a omissão dos demais Poderes.

O “monstro” toma conta de todas as esferas públicas: Legislativo e Executivo, dos governos federal, estaduais e municipais, e, ainda, das empresas estatais. Usa de superfaturamento de obras e de serviços prestados, ou meramente fictícios, “legitimados” por contratações aparentemente corretas, mas fraudadas e perversas.


Adota-se qualquer tipo de falsidade, prevaricação, autoritarismo, cooptação, submissão, intimidação, burocracia, conluio, perseguição para se auferir riqueza ilícita. A burocracia, em especial, é o instrumento que o governante adota como biombo para alcançar “legalmente” seu interesse pessoal e o enriquecimento.

Quanto mais evoluída e justa uma sociedade, menor é a burocracia adotada, e maior a transparência, a simplicidade das leis. O Brasil é o exemplo daquilo que não deve ser feito.

Os tentáculos do patrimonialismo abrangem tudo, até medicamentos, prestações de serviços de saúde, merenda escolar, cestas básicas, verbas de filantropia. O sistema do “monstro” é a “pilantropia”, ou cleptocracia.

Claro que a corrupção sempre existiu, e vai de um a cem. Agora se mostrou soberana, arrogante, totalitária, absoluta, além dos cem.

No Poder Legislativo, legisla-se para extorquir, intimidar, burocratizar, para revender facilidades e tudo mais que permita aos delinquentes auferir vantagens injustas.

Legisla-se como legislariam ladrões que cobram pedágio das caravanas. A compra de Medidas Provisórias (MPs) sistematizou-se e impediu que boas propostas fossem adiante; o que é bom para o legislador corrupto não é a boa, mas sim a péssima lei que privilegia, subjuga, favorece, discrimina. As MPs eram compradas e pagas. Os tribunais como o Carf foram a serviço de quem queria extorquir num fácil contexto de falta de claros marcos regulatórios.

Quadrilhas instaladas em tudo dominam e apequenam o país. Inviabilizam o bom e o honesto. Quanto pior a qualidade, melhor para o “monstro”, que mais poderá cobrar. Bastante comum em Brasília alguém questionar: “E eu, o que ganho?”. Sem pagar pedágio, as coisas param.

Um bom projeto não consegue encontrar maioria entre os lobos. O Brasil no cipoal das delinquências.

A definição mais acertada de “empreiteiro” foi dada por um megaempresário, que do setor sabe tudo: “Empreiteiro (grande) é aquele que, para ganhar dinheiro, faz qualquer coisa, até obras”. A Lava Jato certifica como inconteste a fulgurante explicação.

O “monstro” é um delinquente, sem escrúpulos e sem limites. Usa de qualquer oportunidade e brecha, adota a mídia mercenária para perseguir, usa da corrupção irrestrita, da arapongagem e até apela para a supressão da vida, como se deu com Celso Daniel. Mas a maioria das supressões de arquivos vivos é executada desidratando, apagando os alvos com humilhações, infâmias, lançando pedras e escondendo a mão.

O “monstro” se mobiliza em campanhas políticas, vive-as com frenesi, pois do resultado das urnas depende o ganho que terá. Investe como um apostador de roleta. Monta “operações estruturadas” e até bancos para superpropinas e financiamento dos corruptos. Por isso, os bilhões, inverossímeis, são apenas fichas do “monstro” no jogo de exploração. O que for apostado, sabem, voltará centenas de vezes.

Nos últimos 50 anos, as marionetes que ocuparam o poder, quase sempre, eram eleitas pelo “monstro”, que é avesso ao suor e quer ganhar muito, rápido e fácil.

No sistema político brasileiro a ideologia serve de fantasia, de roupagem nas festas do “monstro”.

Ele nunca reclama de aumentos de tributos, farta-se com eles, sabem que deles tirará seu quinhão.

O “monstro” isola políticos não alinhados ao mecanismo, inviabiliza-os eleitoralmente despejando recursos para os alinhados com as quadrilhas. Mesmo ácidos e intragáveis, os cúmplices do “monstro” se reelegem.

A Lava Jato escancarou o “monstro”. Comprovou que detesta candidatos inteligentes, éticos, honestos. Raros são aqueles que se viabilizam nas urnas e exercem um mandato. O Congresso é cada vez mais corrompidamente pragmático e corrupto. O inteligente-ético não tem vez; chegando lá, em breve sentirá que está impotente a força do “monstro”.

A política brasileira acaba sendo mais fácil para as hienas, que conseguem expulsar rapidamente os podres que o “monstro” oferece.

A cada legislatura o trigo perde espaço assumido pelo joio.

Quem sente o dever, quem quer colaborar com a pátria que ama, deverá estar pronto a responder à pergunta feita com intrigante naturalidade: “Por que você almejou chegar a esse cargo?”. E, se a resposta for diferente de explorar os privilégios, será considerado um ET.

Perderam-se os sentimentos de dever, de serviço, de solidariedade, de progresso, de inconformismo com o sofrimento, como fossem de um planeta extinto, não mais desta Terra.

Governo barra outra vez divulgação da 'lista suja'

Nesta semana, mais um desdobramento judicial impediu que a sociedade brasileira tenha acesso a uma lista que aponta quem são os empregadores flagrados utilizando trabalhadores em condições análogas à escravidão no Brasil. Criada em 2003 e considera pela ONU um modelo para a erradicação da escravidão contemporânea, a chamada Lista Suja do trabalho escravo teve sua divulgação suspensa após vários embates judiciais que começaram no fim de 2014.

Na última terça-feira, o presidente do Tribunal Superior do Trabalho (TST), ministro Ives Gandra Martins Filho, acatou um pedido feito pela Advocacia-Geral da União (AGU) e derrubou a liminar que obrigava o Ministério do Trabalho a divulgar o documento. Segundo a AGU, que representa o Governo na Justiça, o objetivo da medida é “dar mais segurança jurídica para a política pública, reduzindo o número de questionamentos judiciais à publicação”. Agora, a lista só poderá ser divulgada após um grupo de trabalho criado pelo Governo Temer discutir uma série de aprimoramentos para o cadastro das empresas. Participarão representantes de vários órgão do Governo e da sociedade civil. O grupo terá 120 dias para analisar as atuais regras e sugerir possíveis alterações. Em janeiro, o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) já tinha afirmado que optou não divulgar temporariamente a lista por considerar que, na visão da pasta, a portaria que regula o cadastro das empresas não garantia “os instrumentos de efetivo exercício dos direitos constitucionalmente assegurados ao contraditório e à ampla defesa” dos acusados dos crimes.

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Esses argumentos, no entanto, são confrontados pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) que irá recorrer da decisão do TST. Segundo o coordenador nacional da erradicação do trabalho escravo (Conaete) do MPT, Tiago Cavalcanti, a Lista Suja é o instrumento de enfrentamento à escravidão mais importante que temos no Brasil e atualmente não há motivos para a sua suspensão. “Desde maio do ano passado, o Governo está sendo negligente já que não há nenhum empecilho para a divulgação da lista”, afirma Cavalcanti que discorda que não sejam contemplados aos acusados dos crimes o direito à defesa. A partir da divulgação da lista suja, teoricamente, bancos públicos, como o BNDES e o Banco do Brasil, deveriam negar crédito, empréstimos e contratos a fazendeiros e empresários que foram flagrados utilizando trabalho escravo. Procurado pela reportagem, o Ministério do Trabalho afirmou que o tema agora está sob a responsabilidade da AGU.

O embate judicial sobre a divulgação da lista começou em dezembro de 2014, após o então presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Ricardo Lewandowiski, conceder uma liminar atendendo pedido da Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc). A Associação reúne algumas das principais construtoras do país e é presidida por Rubens Menin, da MRV Engenharia, empresa que já foi autuada por explorar trabalho escravo. Em 2014, a Abrainc argumentava que a portaria de criação do cadastro de empregadores que submeteram trabalhadores a condições análogas à escravidão pecava por não prever instâncias de defesa contra a inclusão de nomes da lista. “Por mais que a portaria falasse que assegurava ampla defesa, ela não indicava quais eram os dispositivos da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) que assegurassem isso. Em maio de 2016, no entanto, a portaria foi editada apontando esses dispositivos”, explica Cavalcanti.

“A verdade é que por trás desse impasse da divulgação da lista suja há interesses econômicos fortes. Quem vai figurar são grandes empresas, pessoal do agronegócio e grandes construtoras. Há um interesse econômico encaçapado nesta questão”, explica Cavalcanti.Após a portaria ser modificada no apagar das luzes do Governo Dilma, a atual presidente da Suprema Corte, ministra Cármen Lúcia, revogou a liminar que suspendia a divulgação da lista. Apesar da decisão do STF no dia 16 de maio, o documento nunca mais voltou a ser publicado, o que incentivou uma ação civil pública proposta pelo Ministério Público do Trabalho, pedindo a divulgação imediata da lista.

Enganados e sufocados

Quando o PT foi para o poder, frustrado desde sua fundação, derrotado três vezes com o Lula, mas afinal vitorioso, imaginava-se mudança fundamental na vida do país. Afinal, mesmo de forma lenta e gradual, porém segura, parecia ter chegado a hora do andar de baixo. Não mais a prevalência dos beneficiados pela fortuna, pelo berço ou pelas maracutaias, senão os primeiros passos para a conquista da melhoria das condições de vida dos despojados da fortuna e da ascensão dos trabalhadores a patamares menos cruéis de sobrevivência.

Empolgaram a imensa maioria dos cidadãos as pregações sobre igualdade, extinção dos privilégios de uns poucos e fim da livre competição entre quantidades e valores desiguais.

Seria extinta a miséria, reduzida a pobreza e gradativamente poderiam desaparecer as diferenças sociais responsáveis pelo fato de sempre os ricos ficarem mais ricos e os pobres, mais pobres.


Era nesse objetivo que se fixava o pequeno grupo de intelectuais e acadêmicos, entusiasmados com a experiência ímpar de ver um operário no governo. Também compareciam os sindicatos, a Igreja, os universitários e até parte da classe média.

Claro que mais se organizavam, desde muito já organizadas, as mesmas camadas beneficiadas de sempre, fáceis de identificar no empresariado, nos donos da terra, nos especuladores, banqueiros e demais condutores de uma sociedade que, pelo jeito, esgotara-se e se condenava ao fracasso.

Abria-se o palco para o confronto entre o passado e o futuro, ainda que subordinado a vícios de lá e de cá, corolário da imperfeição humana da qual jamais nos livraremos.

Pelo menos, estava evidente a importância de se alterar o modelo que nos acompanha desde o Descobrimento, cada vez mais sofisticado por maior sacrifício das massas e festa das elites. Criava-se no país a consciência da necessidade de interromper a progressão das vantagens que o dinheiro concede aos senhores e falta faz aos vassalos.

Imaginava-se, vale repetir, haver chegado o tempo do equilíbrio, pelo esforço de um grupo disposto não a recuperar, mas a criar o espaço de igualdade, porque liberdade, afinal, mesmo distorcida, já tínhamos, e fraternidade, conseguiríamos à força.

Alguma coisa se conseguiu, mas é preciso atentar para o fato de que desde a primeira eleição do Lula, as elites foram cooptando os personagens. Até o próprio, surpreendendo com uma anacrônica Carta aos Brasileiros, não endereçada aos seus eleitores, mas a leitores interessados em preservar benesses e vantagens. Ao redor, vicejaram falsos aliados, antigos cultores das mudanças, mas empenhados em isoladamente ascender de patamar através da corrupção, do roubo e da mistificação.

Apesar disso, algum resultado o primeiro companheiro conquistou, advindo daí sua reeleição. O diabo foi o segundo mandato. Sem reação, o Lula entregou-se aos destinatários da malfada carta. O ideal igualitário naufragou e foi para as profundezas quando, não podendo disputar um terceiro período, vendeu sonhos que não eram mais dele. Assumiu a incompetência em forma de mulher. Foi simples questão de tempo as elites voltarem ao poder e às reformas que mais uma vez massacram e sufocam a maioria, de novo enganada e sufocada.

Imagem do Dia

Amsterdam, Ahmad Al Azzaw


O reformador do mundo

Américo Pisca-Pisca tinha o hábito de por defeito em todas as coisas. O mundo para ele estava errado e a Natureza só fazia asneiras.

— Asneiras, Américo?

— Pois então?!… Aqui mesmo, neste pomar, você tem a prova disso. Ali está uma jabuticabeira enorme sustendo frutas pequeninas, e lá adiante vejo uma colossal abóbora presa ao caule duma planta rasteira. Não era lógico que fosse justamente o contrário? Se as coisas tivessem que ser reorganizadas por mim, eu trocaria as bolas, passando as jabuticabas para a aboboreira e as abóboras para a jabuticabeira. Não tenho razão?

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Assim discorrendo, Américo provou que tudo estava errado e só ele era capaz de dispor com inteligência o mundo.

— Mas o melhor – concluiu, é não pensar nisto e tirar uma soneca à sombra destas árvores, não acha?

E Pisca-pisca, pisca piscando que não acabava mais, estirou-se de papo para cima à sombra da jabuticabeira.

Dormiu. Dormiu e sonhou. Sonhou com o mundo novo, reformado inteirinho pelas suas mãos. Uma beleza!

De repente, no melhor da festa, plaf! Uma jabuticaba cai do galho e lhe acerta em cheio o nariz.

Américo desperta de um pulo; pisca, pisca; medita sobre o caso e reconhece, afinal, que o mundo não era tão mal feito assim.

E segue para casa refletindo:

— Que espiga! … Pois não é que se o mundo fosse arrumado por mim a primeira vítima teria sido eu? Eu, Américo Pisca-pisca, morto pela abóbora por mim posta do lugar da jabuticaba? Hum! Deixemo-nos de reformas. Fique tudo como está, que está tudo muito bem.

E Pisca-pisca continuou a piscar pela vida em fora, mas já sem a cisma de corrigir a Natureza.

Monteiro Lobato

Elogio da dialética

A injustiça passeia pelas ruas com passos seguros.
Os dominadores se estabelecem por dez mil anos.
Só a força os garante.
Tudo ficará como está.


Nenhuma voz se levanta além da voz dos dominadores.
No mercado da exploração se diz em voz alta:
Agora acaba de começar:
E entre os oprimidos muitos dizem:
Não se realizará jamais o que queremos!
O que ainda vive não diga: jamais!
O seguro não é seguro. Como está não ficará.
Quando os dominadores falarem
falarão também os dominados.
Quem se atreve a dizer: jamais?
De quem depende a continuação desse domínio?
De quem depende a sua destruição?
Igualmente de nós.
Os caídos que se levantem!
Os que estão perdidos que lutem!
Quem reconhece a situação como pode calar-se?
Os vencidos de agora serão os vencedores de amanhã.
E o "hoje" nascerá do "jamais".
Berthold Brecht

O erro de antecipar o processo eleitoral

É compreensível que Lula da Silva queira antecipar o processo eleitoral de 2018, manifestando desde já sua disposição de concorrer uma vez mais à Presidência da República. Com tal gesto, o ex-presidente evidencia o duplo desespero que o move: o medo de ser condenado e preso e o temor de ver extinto o seu partido político, afogado no mar de lama que ele mesmo criou.

É estranho, no entanto, que essa antecipação do processo eleitoral também esteja sendo promovida por políticos que fazem parte da base aliada do governo federal. Recentemente, o governador Geraldo Alckmin afirmou sua pretensão de ser candidato à Presidência da República, ressaltando o óbvio: que a efetivação desse desejo depende da vontade do partido. Já tem ao menos um aliado para seu objetivo, pois, no mesmo dia, o prefeito João Doria disse que o governador de São Paulo é seu candidato ao Palácio do Planalto em 2018.

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Essa movimentação tão antecipada – faltam ainda 19 meses para as eleições – tem um efeito certo: a desvalorização do exercício da Presidência até o final de 2018. Será esse o objetivo de tanto açodamento? Ainda há muito a se fazer para que o País comece a discutir os nomes de quem poderá estar no governo em 2019. Há uma grave crise social e econômica a ser enfrentada. Há importantes reformas a serem votadas. Agora, o que importa ao País não é 2018 – é o presente.

Há, no entanto, políticos que parecem ter dificuldade em compreender as circunstâncias do País e suas atuais batalhas, mais se preocupando – assim denotam algumas de suas palavras – em garantir uma vaga nas inscrições para a corrida presidencial. É natural que, numa democracia, os políticos se preocupem com as eleições seguintes. Mais do que uma questão de simples sobrevivência pessoal, trata-se de uma legítima e necessária preocupação com a continuidade das ideias e ideais políticos de seus eleitores.

O problema ocorre quando a preocupação com as eleições solapa as batalhas presentes. O dever fundamental da base aliada do governo é apoiar o presidente Michel Temer em seu compromisso de levar adiante as reformas de que tanto o País necessita. Quando, nas vésperas da votação da reforma da Previdência, alguns políticos ensaiam uma antecipação do processo eleitoral estão de fato, qualquer que seja sua intenção, diminuindo o presidente da República.

Mais do que representar um caso de enfrentamento pessoal – o que já seria grave –, a antecipação do processo eleitoral prejudica o atual andamento das reformas no Legislativo. Tal movimento faz parecer que o País vive tão somente um mandato presidencial tampão, simplesmente a preencher uma lacuna temporária até 2019. Entende-se que o PT, em seu desespero, pretenda dar ao mandato de Michel Temer esse enquadramento. O que não se entende é que a base aliada atue com semelhantes modos.

Tal postura não significa “apenas” uma desunião na base aliada, o que já seria grave, pois atrapalharia o governo em sua obrigação de tirar o País da crise. Ela manifesta uma perigosa cegueira a respeito da realidade do governo de Michel Temer.

Não se trata de uma questão de afinidade política reconhecer que o atual governo não é meramente um governo-tampão. Basta simplesmente um breve repasse no conjunto das ações já tomadas e nas medidas propostas pelo Palácio do Planalto nesse período de menos de um ano para perceber que há um governo disposto a pôr o País nos trilhos.

Constatar o compromisso do atual governo com as reformas não significa esconder eventuais equívocos cometidos pelo Palácio do Planalto. Há erros não pequenos, que merecem pronta correção. Nada disso, porém, legitima uma atuação que beira a irresponsabilidade, especialmente nesses momentos decisivos para o País, quando, depois de muito tempo, reformas importantes estão em debate.

Fossem os políticos envolvidos no episódio menos experientes, até caberia classificar seu açodamento como ingenuidade. No entanto, são eles bem curtidos na lide do jogo político, conhecendo como poucos as consequências políticas de seus atos e de suas palavras.

Editorial - O Estadão

A caça e a crise da brasilidade

Está legalizada a caça esportiva do javali no Brasil!

A atividade que fez do bicho “Homo” um “sapiens” e que amarra uns aos outros todos os seres vivos tinha, supostamente, sido radicalmente amputada da cultura nacional da qual fizera parte desde o primeiro dia do mundo até então ha 34 anos. Agora volta à legalidade mas pela porta da remediação. Não é, ainda, a reconciliação de um Brasil Oficial humilde com o razoável e com o eterno depois das lições tão duramente aprendidas nestas tres décadas e meia de fúria da devastação ambiental sem concorrência. Continuam vedados aos espécimes da fauna brasileira os benefícios do único artifício capaz de fazer perdiz valer mais que soja, peixes de rios íntegros mais que o quilo de sua carne e biomas renderem mais diversificados como deus os fez que reduzidos a escombros pela incuria humana. Plantar gramíneas africanas e leguminosas asiáticas (ou introduzir animais exóticos que se tornam pragas) continua sendo o único meio legalmente admitido por nossos ambientalistas e governantes de fazer a natureza produzir dinheiro nisto que foi o maior paraíso da biodiversidade na Terra…

A consequência é muito mais deletéria que o prejuízo ambiental que poderia ser evitado. Os desorientados urbanóides desta geração de brasileiros, arrancados por diletantes apaixonados por si mesmos que se julgam capazes de revogar as leis da natureza à vivência de qualquer dos processos que trouxeram a humanidade até onde ela chegou, vivem mortificados pela idéia de que a sua própria sobrevivência é fruto de um crime. A maior parte acredita piamente, já, que o que comemos vem mesmo dos fundos dos supermercados embaladinho em plástico e sem sangue.

Esse desenraizamento existencial está, com certeza, na base dessa crise “total” que o Brasil está vivendo. Sem o “pertencimento” a um todo eco-lógico muito maior que o “eu”, o “agora”, o “meu” e o “eu acho portanto submetam-se“, que só se assimila fechando a boca e abrindo os olhos e os ouvidos para aprender vivendo integralmente o mato, a beira do rio, os oceanos; mergulhando de corpo e alma nas interações da fauna e da flora que os constroem e que são construídas por eles, o que sobra é essa trágica bateção de cabeça sem sentido em que o Brasil anda perdido.

Que a descriminalização da caça ao javali seja o primeiro passo de uma ampla reconciliação. Sem o culto e a reencenação cerimonial dos processos que definem a reciclagem da vida é impossível entender o que somos e qual o nosso lugar na ordem das coisas.

Paisagem brasileira

Clodomiro Amazonas,Paisagem com figura e galinhas,os madeira ,1929, 23,5 x 30 cm.
Paisagem (1929), Clodomiro Amazonas (1883-1953)

Apartheid anunciado

O fato de as cidades preservarem referências materiais e imateriais das sociedades estratificadas em seu território ao longo da História não impede que a sua estrutura urbana seja transformada constantemente para se adaptar às contingências dos novos tempos.

Os exemplos mais significativos desse processo de transformação urbana ocorreram na Europa, durante a segunda metade do século XIX, em consequência do advento da Revolução Industrial e da expressiva migração populacional do campo para as cidades. Londres e Paris foram paradigmas desse momento de transformações generalizadas.

Não obstante o sucesso dessas realizações, ficou claro que o conjunto da sociedade não havia sido contemplado paritariamente com a maioria das benfeitorias introduzidas. Este fato provocou a reação de pensadores e políticos que reivindicaram para a classe operária melhores condições de moradia e maior humanização nos ambientes de trabalho. Sem dúvida, os movimentos reivindicatórios contribuíram para obter avanços, que, contudo, não atenderam satisfatoriamente a algumas questões sociais relevantes.

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Com a chegada do século XX e a consolidação da nova sociedade industrial, o pensamento dominante se voltou para a produção em massa de bens de consumo com o objetivo de movimentar a economia e atender a todos os extratos sociais. Mas, na realidade, esse objetivo não foi alcançado plenamente. O acesso às benesses da industrialização esbarrava, geralmente, no baixo poder aquisitivo da classe operária, envolvida, principalmente, com seus problemas de aquisição da moradia e subsistência.

No Brasil, essas questões continuam presentes nos dias de hoje, impondo sacrifícios injustificados para as camadas mais pobres da população. A dificuldade para adquirir um imóvel nas áreas urbanizadas, por absoluta falta de recursos e indisponibilidade de obter financiamentos compatíveis com a sua renda, não deixou outra opção a essas camadas da população senão a de ocupar informalmente as franjas da cidade, isto é, os morros, as margens de rios e outras áreas devolutas espalhadas pela periferia.

O último Censo registrou — pasmem — que cerca de um quarto da população carioca vive em locais desprovidos de infraestrutura e urbanização. E ainda tem gente que fala em remover as favelas. Para onde? Todavia, viver em comunidades sem saneamento básico, sem espaços compatíveis para circulação, sem coleta de lixo, sem um sistema regular de transporte e ainda por cima sujeito à ditadura de traficantes e milicianos, é um escárnio se compararmos com o ambiente urbano existente em outras localidades. A ausência do Estado nesses territórios, além de significar a negação de um direito constitucional conferido a todo cidadão brasileiro, mostra o absoluto desprezo da sociedade pelas camadas mais pobres da população.

Em meio ao tiroteio ideológico que marca atualmente a política brasileira, vemos, de um lado, um desgastado comportamento ideológico a defender medidas ultrapassadas para reverter tal situação e, de outro, os arautos do mercado a negar a necessidade de intervenção do Estado em áreas carentes da cidade. Enquanto os primeiros restringem a sua ação a um imobilismo conservador, os defensores da outra corrente se preocupam unicamente em melhorar a imagem da cidade para gerar novos e rentáveis investimentos.

Se não priorizarmos imediatamente os investimentos urbanos e sociais nessas comunidades, assistiremos, em breve, ao esgarçamento do tecido social, à violência urbana descontrolada e ao fim do convívio pacífico em nossa sociedade. Para quem ignora ou despreza o apartheid escancarado em nossas cidades, recomenda-se que circulem pelos subúrbios e periferias para constarem, in loco, o abismo que separa essas áreas do restante da cidade. Há que se refletir e agir solidariamente — Estado e sociedade — para corrigir, enquanto é tempo, os desvios que levam a esta triste realidade.

Luiz Fernando Janot

Processo do TSE revela que o crime compensa

Em conversa com um amigo, o ministro Herman Benjamin, do Tribunal Superior Eleitoral, chamou de “kafkiano” o processo que mantém sub judice a Presidência de Michel Temer. A definição é inexata. Na verdade, o processo é pós-kafkiano. O barulhinho que se ouve ao fundo é o ruído de Franz Kafka se contorcendo no túmulo ao perceber que o absurdo perturbador de sua ficção foi superado por uma história fantástica passada num país imaginário. Uma história bem brasileira.

A realidade dos autos relatados pelo ministro Benjamin está cada vez mais inacreditável. O interesse pelo julgamento do processo diminui na proporção direta do aumento das evidências de que a vitória de 2014 foi bancada com dinheiro roubado da Petrobras. Autor da ação que pede a cassação da chapa Dilma Rousseff—Michel Temer, o PSDB anda tão ocupado em salvar o país que já não tem tempo para cobrar a punição dos crimes que apontou.

Périplo europeu: Dilma cava novas andanças para denunciar o "golpe",
 enquanto janta com Marco Aurélio Garcia e Paulo Sérgio Pinheiro
 no Trois Verres, um dos restaurantes mais chiques de Genebra
O tucanato tornou-se o esteio do governo Temer. O derrotado Aécio Neves virou um levantador de ministros. O vice-derrotado Aloysio Nunes Ferreira acaba de ser nomeado chanceler. Na oposição, o PSDB era incapaz de reconhecer a honestidade dos governantes. No governo, esqueceu que o PMDB é incapaz de demonstrá-la. Todo o dinheiro sujo que a Odebrecht investiu em 2014 não daria para vestir 1% das desculpas esfarrapadas dos tucanos para conspirar contra a lógica no TSE.

Devolvida a Porto Alegre e à sua insignificância, Dilma Rousseff entregou-se a duas atividades. Quando não está cuidando dos netos, dedica-se a denunciar o ''golpe''. No TSE, os defensores de madame se juntam aos advogados de Michel Temer numa tabelinha a favor da protelação. Difícil saber se golpeados e golpistas fogem de um julgamento rápido por que são capazes de tudo ou por que são incapazes de todo.

Há mais: Temer, o processado, indicará entre abril e maio, dois dos ministros que o julgarão no TSE. Há pior: o presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Gilmar Mendes, frequenta o noticiário na condição de conselheiro do acusado. Quando Dilma ainda estava sentada na poltrona de presidente, Gilmar pegou em lanças pela abertura do processo, evitando que a podridão das contas eleitorais descesse para o arquivo. Agora, o mesmo Gilmar afirma: o mais importante é a exposição do lixão, não o resultado do julgamento.

Em meio a este cenário pós-kafkiano, um período excepcional da história do país, a qualquer momento se verá a maioria dos ministros do TSE declarar a respeito dos milhões em verbas sujas que passaram pelas arcas de 2014: “Calma! É só caixa dois, gente!”. E o brasileiro perceberá que não é que o crime não compensa. É que, quando ele compensa, muda de nome.

Procura-se

Prepare-se. Há uma missão a ser cumprida pessoalmente nas ruas. Não dá para botar anúncio. As cidades ficariam entulhadas de cartazes se pudéssemos neles expressar tudo o que andamos perdendo ou só procurando; aliás, precisando desesperadamente procurar. E achar, mais urgente ainda. Sem recompensa.


Procura-se. Um presidente. Não é para agora, já, assim tipo tão imediatamente. Ainda temos alguns meses, mas são poucos – calcula – dá pouco mais de 500 dias. E vamos precisar procurar em tudo quanto é buraco para ver se surge alguém que preste, novo, um quadro político sério que surja depois desse expurgo geral a que assistiremos esquentar a brasa nos próximos dias com a revelação do conteúdo das delações.

Surgirão detalhes, cenas dantescas, certamente degustaremos algumas muito saborosas quando envolverem nossos desafetos, aqueles que a gente sempre achou que tinham culpa no cartório porque já enxergamos escrito Culpado na testa deles, como uma estranha tatuagem invisível que aparece só quando se joga a luz.


Ouviremos falar de valores inimagináveis até para quem habitualmente os tem, mas que não saberiam usá-los de forma tão irresponsável e imatura quanto alguns dos corruptos, esbanjando, se melecando vergonhosamente. Saberemos detalhes de suas compras, suas viagens, e especialmente saberemos para o que foram pagos, o que foi que venderam, o que fizeram para nos prejudicar para ganhar tanto. Qual foi o preço todo.

Não vai sobrar pedra sobre pedra. Só temo que seja tanta e tão volumosa a informação que virá que pode se perder despedaçada por domesticados e vorazes lobos da informação. Já vi acontecer. Pior é que também não dá mais tempo dessa saga ser lançada em capítulos, porque não temos mais esse tempo mantendo a cabeça fora da água para respirar com ondas tão agitadas.

Assim, voltando ao megafone: procura-se! Povo perplexo procura. País saqueado procura. Gatos escaldados procuram.


Procura-se também, aliás, um povo mais atento em quem elege. Daí o apelo para ligarmos todos os radares em busca de novos quadros que ainda possam vir a ser burilados nesses poucos dias que nos restam até as próximas eleições de 2018. Não podemos deixar que só vivaldinos, figuras execráveis como essas se apresentem com seus discursos de ilusões, vingança, grosseria, lero-lero. Eles já estão pondo as manguinhas de fora, mesmo ainda com a roupa cheia de lama respingada. Não queremos mais olhos esbugalhados, moralistas, reacionários, militaristas, bocudos, aventureiros, moscas mortas, sem vergonhas.


Temos de ter alguma chance de encontrar alguém. Pelo menos um rumo.


Aí você me pergunta por que eu não disse primeiramente “fora homi”. Porque creio que isso não vai acontecer; se acontecesse já iria ser a substituição do ruim que ficou no lugar da péssima, sendo trocado pelo pior ainda, dada essa atual linha de sucessão que se impõe no momento.
Para o tratamento de emergência, no entanto, depois de colecionar as sandices ditas ultimamente pelo atual e empertigado presidente, sobre todos os assuntos importantes e fatos que necessitariam de sua atuação e compreensão, culminando nessa da mulher no supermercado e no lar, proponho uma solução. Esparadrapo. Ampla distribuição e orientação para que preguem em suas bocas, em X.
Em boca fechada não entra mosquito. É melhor prevenir do que remediar. Ladrão de tostão, ladrão de milhão. Sucintos e sábios ditos populares.