terça-feira, 12 de fevereiro de 2019

O inimigo veste batina

Augusto Heleno Ribeiro Pereira tem precedência hierárquica na curadoria militar do governo Jair Bolsonaro. É da tradição dos quartéis, onde viveu 45 dos seus 71 anos de idade — a última dúzia como general.

A ascendência sobre Bolsonaro tem origem na dedicação do treinador da Academiadas Agulhas Negras, que ajudou o cadete Cavalão a se destacar em pentatlo moderno. A gratidão veio coma chefia do Gabinete de Segurança Institucional.

Desde que experimentou um biênio no Comando Militar da Amazônia (2007-2009), com 17 mil soldados em quatro brigadas de infantaria de selva, Ribeiro Pereira—mais conhecido como Augusto Heleno—enxerga um potencial de “teatro de operações” em metade do mapa do Brasil, por ausência do Estado.

Na últimas décadas, recitou em auditórios os clássicos da catequese sobre a “cobiça internacional” pela Amazônia, além de listar equações diplomáticas nos 11 mil kms da fronteira Norte com chance de “descambar para uma situação bélica”.

Agora, como disse à repórter Tânia Monteiro, mobiliza o governo para “neutralizar” o Vaticano, que programou para outubro o Sínodo da Amazônia, com batinas de Brasil, Bolívia, Colômbia, Equador, Venezuela, Perue Antilhas. Faltou o chefe do GSI definir “neutralizar”.

Argumenta com possíveis críticas do Vaticano à política para a Amazônia. Seria impossível, porque, se existe, até hoje ninguém viu — como o projeto de reforma da Previdência.

Ele se queixa de que “há muito tempo existe influência da Igreja e ONGs na floresta”. Tem razão. Entidades civis proliferam no vácuo estatal. A história da Igreja Católica é mais antiga.

Ribeiro Pereira talvez tenha esquecido, mas Brasil é assunto em Roma desde meio século antes do “Descobrimento”. Caminha registrou o “achamento”, a missa e a ordem do capitão Cabral para deixar na praia de Santa Cruz (BA) um par de colonos. Um deles se chamava Ribeiro.
José Casado

Ícones se encantam


Para milhões de brasileiros, as manhãs de domingo nunca mais foram as mesmas sem Ayrton Senna na pista.

Agora também milhões não veem todas as manhãs do mesmo jeito sem Ricardo Boechat.

Gambiarra tem aos montes

Fala sério. De verdade. Confesse. A gente gosta de gambiarra. Não somente daquele original, que quer dizer extensão puxada fraudulentamente para furtar energia elétrica. O Brasil adora mesmo o sentido figurativo da palavra. Somos do quebra-galho, do jeitinho, do improviso, e, porque não, da gambiarra.

Gostamos tanto, que a gente nem mais percebe que a gambiarra está sempre presente nas terras tropicais. Tudo é um grande improviso esperando para dar errado. E sempre dá errado. E muito. Tantas vezes que não da para dedicar um artigo semanal para comentar cada consequência grave do desleixo nacional. Pensando bem, talvez nem cobertura diárias dariam conta.


A gente inventou um dia que Deus é brasileiro e, por isso, tudo no fim daria certo. Mas Deus está tão ocupado cuidando das gambiarras nacionais que de vez em sempre estoura uma. Seja como mar de lama, deslizamento, incêndio e o que mais a nossa imaginação possa conceber.

De gambiarra em gambiarra a gente vai empilhando tragédias. Tantas que restam injustificáveis. Dolorosamente explicáveis em um país que lamentavelmente não gosta ou não exige explicação.

Em nosso desvario diário, desastres são rapidamente esquecidos e imediatamente substituídos por um desastre novinho em folha. Conversa para encher papos de boteco é que não faltam.

No meio de todo o caos, tem sempre alguma lógica. A nossa, parece ser que o Brasil é local onde a governança vem para morrer. Governança em seu sentido mais amplo, que implica na administração dos recursos sociais e econômicos visando o desenvolvimento, e a capacidade de planejar, formular e programar políticas e cumprir funções. Disso a gente consegue fazer nada.

Em matéria de boa governança, aliás, a gente faz milagres. Ou melhor, um milagre somente: consegue viver sem ela. Está ausente não importa para onde se olhe. No município, no estado, na federação, no esporte e na iniciativa privada.

Pode procurar. Governança não há. Mas tome cuidado para não tropeçar em gambiarra. Disso tem aos montes.

Paisagem brasileira

Caraiva (BA)

Como o plástico mudou a sociedade brasileira

"Jazida arqueológica". É assim que a pesquisadora em antropologia e arqueologia da Universidade Federal de Minas Gerais, Vanúzia Gonçalves Amaral, se refere a um antigo aterro sanitário de Belo Horizonte, que abriga toneladas de lixo domiciliar depositados numa área de 60 hectares ao longo de 32 anos.

"O lixo é uma narrativa sobre os pequenos hábitos cotidianos de uma sociedade, é reflexo do que somos e do que temos", afirma a pesquisadora.


Desde fevereiro de 2018, ela faz escavações no aterro sanitário mineiro, separando os resíduos sólidos aterrados de acordo com cada uma das décadas entre 1975 e 2007, ano em que o lugar foi desativado.

"É possível ver quando o plástico passou a substituir materiais como o vidro", afirma Amaral, se referindo ao final da década de 1970, quando as garrafas PET aparecem, e as retornáveis de vidro foram deixando de existir. Foi nessa época também que as fraldas descartáveis começaram a aparecer no lixo.

Outra revolução pode ser vista no lixo a partir da década de 1990, com uma avalanche de produtos descartáveis, embalagens e sacolas plásticas.

Amaral aponta que foi justamente nessa época que se iniciaram as importações brasileiras de produtos populares chineses. Incrivelmente baratos, os importados da China trouxeram para o Brasil um novo comportamento de negócio, de consumo e também de hábitos sociais, marcado pelo surgimento das lojas de R$ 1,99 em todo o país e pela formação de grandes camelódromos.

Se por um lado são mais acessíveis, por outro lado, os produtos de plástico geram um acúmulo de lixo difícil de ser resolvido. "Os resíduos plásticos que compõem esses produtos são muito resistentes. Vasculhando o lixo de décadas passadas, é possível encontrar plásticos da década de 70, aterrados há mais de 40 anos, ainda com marcas legíveis e muitos até com restos de alimentos preservados em seu interior", descreve Amaral.

Com a finalidades de substituir materiais encontrados na natureza usados na indústria, como o marfim, e permitir produções em grande escala e mais baratas, o plástico totalmente sintético foi inventado em 1909.

A partir de 1930, diversos outros plásticos foram criados, como poliéster, náilon, teflon, silicone, entre outros, para atender a inúmeras demandas de mercado do século 20. Foi o caso da invenção do disco de vinil e da fita cassete, que revolucionaram o mercado fonográfico; e do PVC, que barateou os processos da construção civil, por exemplo.

No Brasil, assim como em diversas outras partes do mundo, a adoção do plástico na indústria moderna também barateou bens de consumo, alterando o estilo de vida sobretudo da classe média.

"Popularizado no Brasil na década de 1950, com o estabelecimento da indústria de resinas termoplásticas, o plástico passou a ser empregado em peças que antes utilizavam madeira, vidro, tecido, papel, etc., em especial em bens manufaturados, de uso pessoal e doméstico, como brinquedos, calçados, utensílios domésticos, embalagens", explica Silvia Helena Zanirato, professora de Gestão Ambiental da Universidade de São Paulo (USP) .

"Na década de 1950, o Brasil buscava uma imagem de país moderno, e os produtos fabricados com materiais plásticos foram tidos como mais práticos, modernos e acessíveis, ainda que menos duráveis", afirma.

Os novos produtos plásticos de consumo dominavam a propaganda na televisão da época. "As empresas que patrocinavam programas apresentaram esses produtos como componentes de um novo estilo de vida, de uma nova sociedade que se voltava agora para o consumo", aponta Zanirato.

Além dos inúmeros avanços, o plástico também trouxe diversos impactos ambientais. Apesar de muitos alertas sobre os efeitos sobre a natureza, a indústria do plástico ainda é uma das que mais crescem no mundo.

"Hoje, a produção mundial de plásticos está acima de 400 milhões de toneladas ao ano. Em termos comparativos, em 2012, a produção mundial era de 280 milhões de toneladas", afirma Luciana Ziglio, doutora em Geografia Humana pela USP, citando dados da ONU.

"O Brasil acompanhou esse crescimento, produzindo, somente em 2017, 6,4 milhões de toneladas de plásticos", compara a geógrafa. Atualmente, a indústria de transformação de plástico é um dos setores que mais emprega no país.

A fim de ilustrar como os benefícios do uso do plástico são relativos quando comparados aos estragos, o coordenador do Grupo de Estudos de Meio Ambiente e Sociedade do Instituto de Estudos Avançados da USP, Pedro Roberto Jacobi, chama atenção para a área da saúde.

Enquanto as resinas plásticas permitiram a criação de materiais hospitalares descartáveis, que reduzem os riscos de contaminação, o descarte irregular dos produtos plásticos ameaça a saúde pública.

"O acúmulo de resíduos plásticos nas cidades contribui para o aumento de enchentes urbanas, e eles servem de vetores de insetos e roedores, tendo reflexos tanto na degradação ambiental quanto na saúde pública", explica Jacobi.

Segundo o coordenador, o maior problema relacionado ao plástico no Brasil está associado ao seu uso excessivo e desnecessário, como as embalagens plásticas de baixo custo e os canudos, e ao descarte inadequado, principalmente em córregos urbanos, rios e praias.

De acordo com a Fiocruz, água parada em pequenos reservatórios, como vasos de plantas, calhas entupidas, garrafas e lixo a céu aberto são um dos principais criadouros do Aedes Aegypti, mosquito transmissor da febre amarela, chicungunya, zika e dengue no meio urbano. 

Quem muito viu, sofreu, passou trabalhos

Quem muito viu, sofreu, passou trabalhos,
mágoas, humilhações, tristes surpresas;
e foi traído, e foi roubado, e foi
privado em extremo da justiça justa;
e andou terras e gentes, conheceu
os mundos e submundos; e viveu
dentro de si o amor de ter criado;
quem tudo leu e amou, quem tudo foi –
não sabe nada, nem triunfar lhe cabe
em sorte como a todos os que vivem.
Apenas não viver lhe dava tudo.
Inquieto e franco, altivo e carinhoso,
será sempre sem pátria. E a própria morte,
quando o buscar, há-de encontrá-lo morto.

Jorge de Sena

No palanque da ideologia

Os discursos de posse do presidente Jair Bolsonaro, no Congresso e no parlatório do Palácio do Planalto, surpreenderam ao revelar que o novo chefe do Executivo ainda não havia descido do palanque. Com mais de um mês no cargo, Bolsonaro continua em tom de campanha eleitoral, sem se dar conta de que há um país a governar - o que exige mais do que bravatas ideológicas.

Lida no início da 56.ª Legislatura, a Mensagem de Jair Bolsonaro ao Congresso Nacional é, em sua maior parte, um amontoado de frases desconexas, sem fundamento nos fatos, voltado a atacar opositores e a imaginar inimigos a conspirar contra o País e o governo.

O presidente afirmou que trazia “uma mensagem de esperança”. Mas o discurso genérico, fincado numa ideologia estridente, foi incapaz de dar fundamento a qualquer otimismo.

Ao mesmo tempo que prometeu “transformar o País a partir de estudos sólidos e fundamentados que estão sendo elaborados pelos ministros em suas respectivas áreas”, Jair Bolsonaro disse que “a criminalidade bateu recordes, fruto do enfraquecimento das forças de segurança e de leis demasiadamente permissivas. Isso acabou! O Governo brasileiro declara guerra ao crime organizado. Guerra moral, guerra jurídica, guerra de combate”.

Não corresponde aos fatos dizer que a criminalidade vem batendo recordes. Em muitos Estados, conseguiu-se diminuir os índices de violência e os números de crimes praticados. Também é pouco preciso dizer que as leis penais são permissivas e que elas são causa dessa criminalidade recorde. Se o governo Bolsonaro pretende oferecer à população um novo patamar de segurança pública, urge abandonar diagnósticos genéricos e pouco realistas - mais afeitos à retórica do palanque eleitoral - e traçar um plano de governo, que, de forma serena e corajosa, apresente prioridades, meios e metas.

O governo tem um enorme desafio, por exemplo, nas relações internacionais. É preciso ampliar e fortalecer os acordos comerciais, abrir novos mercados aos produtos brasileiros e integrar o País nas cadeias globais de valor. No entanto, no discurso ao Congresso, o presidente Jair Bolsonaro limitou-se a dizer que, “nas relações internacionais, o Brasil deu as costas para o mundo livre e desenvolvido”, o que evidentemente não corresponde aos fatos, principalmente se considerados os últimos dois anos e meio. Ao falar assim, o presidente da República mostra que está desinformado sobre o Itamaraty e o seu trabalho.

Em vez de apresentar ao Congresso as prioridades que o novo governo enxerga pela frente, o presidente Jair Bolsonaro disse que “o Brasil resistiu a décadas de uma operação cultural e política destinada a destruir a essência mais singela e solidária de nosso povo, representada nos valores da civilização judaico-cristã”. Ora, o País não está numa cruzada e, muito menos, envolvido numa guerra civilizacional.

Um dos problemas sérios que o governo terá de enfrentar é o desemprego. Muito se fez no governo Temer para aumentar a ocupação, mas há ainda um longo caminho a percorrer. A esse respeito, o presidente disse: “Treze milhões de desempregados! Isso foi resultado direto do maior esquema de corrupção do planeta, criado para custear um projeto de poder local e continental”. É difícil vislumbrar um horizonte promissor diante dessa confusão de ideias.

Pelo que se vê, para o presidente Bolsonaro, não há muita diferença entre escrever no Twitter e apresentar ao Congresso a mensagem anual do Poder Executivo. Por sinal, a posse presidencial não mudou os hábitos de Jair Bolsonaro na rede social. No primeiro mês de governo, mais de um terço dos 200 tweets publicados pelo presidente é de ataques a adversários e à imprensa.

O tom de campanha eleitoral pode entreter, por algum tempo, parte de seus seguidores mais radicais, mas o exercício da Presidência da República vai além. A mensagem lida no início dos trabalhos legislativos não apresentou uma visão de país - apenas corroborou a imagem de um presidente que ainda não sabe a que veio.

'Até seus inimigos o respeitavam'

Ricardo Boechat, um dos jornalistas com mais garra neste país, partiu muito jovem e no momento em que os meios de comunicação tradicionais mais necessitam de figuras livres como ele, a respeito de quem o melhor elogio que li foi: “Até seus inimigos o respeitavam”.


Não deixa de ser simbólico que Boechat, antes de desaparecer para sempre, tenha falado sobre a impunidade das tragédias que o Brasil está vivendo em cadeia neste 2019. Um ano que deveria ter sido de renovação da política aparece mais como uma nuvem carregada, com seu novo presidente, Bolsonaro, ainda no hospital, e o país como que sendo assolado por uma peste que está ceifando muitas ilusões.

Sua morte repentina também parece ser simbólica da crise que atravessa a informação séria, essa que se nega a ser pura publicidade e se vê aprisionada pelas novas e turbulentas técnicas de comunicação onde é a cada dia mais difícil, como dizia Boechat, “distinguir a verdade da mentira”.

Se esse jornalista que trabalhara na imprensa escrita e audiovisual era de fato respeitado até por seus inimigos, isso foi porque seu trabalho era sério. Era um jornalista crítico, como não pode deixar de ser quem entra neste ofício de querer contar às pessoas o que o poder geralmente tenta esconder.

O mérito de Boechat, além de seu rigor profissional e de sua consciência sobre a importância de contar as coisas às pessoas sem lhes mentir, era o de se fazer entender por todas as classes sociais. Era ouvido e lido nas esferas políticas e nos templos econômicos, mas também pela gente comum. Perguntem aos milhares de taxistas que a cada manhã estavam atentos ao seu programa de rádio. Sem saber que eu era jornalista, às vezes me perguntavam: “Ouviu o Boechat? Hoje ele desceu a lenha”.

Essa capacidade de saber chegar com as notícias ou com seu comentário a todos é uma das alavancas que movem o jornalismo desde sempre — assim como sua capacidade de se fazer respeitar por seu escrúpulo em não tergiversar nem censurar.

Passei minha vida dedicado a este simples ofício de jornalista. Já escrevi reportagens à mão, e já tive que levá-las fora de casa, quando era correspondente, para que a transmitissem para mim por telex à redação do jornal. A primeira vez que me deram um pequeno computador portátil, aquilo me parecia uma miragem, um truque de mágica. Hoje, até uma criança de quatro anos é capaz de nadar nas redes com total naturalidade. Elas são a Enciclopédia Universal com a qual Borges sonhava. Elas são o futuro da comunicação.

E entretanto, como velho jornalista e admirador do querido Boechat, com quem me encontrei várias vezes nas finais do Prêmio Comunique-se de jornalismo, sou invadido por uma onda de orgulho quando alguém, ao ler uma notícia chocante nas redes, para se assegurar da sua veracidade, pergunta de qual jornal, rádio ou televisão saiu tal notícia. A credibilidade, hoje em dia, ainda continua viva nos meios de comunicação tradicionais.

Tem razão o presidente do Supremo Tribunal Federal, Antonio Dias Toffoli, quando, comentando a notícia da morte de Boechat, afirmou que se trata de um dia de luto “para a imprensa e a sociedade”. Vivemos tempos fragmentados e incertos, onde figuras com a força e a paixão que Boechat conferia à informação, agradasse ou não ao poder, são fundamentais para uma sociedade que parece ter perdido uma bússola que lhe confirme a cada momento que ela não está sendo enganada.

Obrigado, Boechat!