domingo, 16 de abril de 2023

Brasil protege estudante

 


O ornitorrinco chamado Brasil

O Brasil se presta a muitas comparações. Nos anos 1970, Edmar Bacha nos chamou de Belíndia: leis e riqueza de Bélgica, desigualdade de Índia. Delfim Netto sugeriu Ingana: impostos de Inglaterra, serviços públicos de Gana. Evoluímos para um Dubaiti: privilégios e extravagâncias da cidade de Dubai, vácuo de Estado nas favelas e periferias, à moda do Haiti. Parecemos um ornitorrinco, aquele mostruário de excentricidades, prova viva de que a fidelidade não foi seguida à risca na arca de Noé.

Como o mamífero que, na contramão da sua subclasse, bota ovo, o Brasil é uma mistura de surreal com atraso e pitadas de velhas ideologias. Quase metade da população sobrevive sem acesso a saneamento básico, mas o governo está mais interessado em proteger as empresas estatais que em garantir esgoto e água potável.


Como o mamífero que não tem mamilos, o Brasil é um país rico com cerca de um terço da população abaixo da linha da pobreza. A riqueza existe, mas os canais para sua distribuição não são lá muito ortodoxos.

Assim como o ornitorrinco tem bico de pato, pé de pato e cloaca de pato — mas está longe de ser um pato —, o Brasil tem iniciativa privada e propriedade privada, mas o protecionismo, a burocracia e o patrimonialismo estatal fazem o possível para que não seja uma economia de mercado.

Nas fotos, o ornitorrinco dá a impressão de ser enorme, mas não passa de dois palmos de comprimento. O Brasil é o quinto maior país em área, o sétimo em população e a nona economia — mas continua um tampinha diplomático, um nanico cultural.

Observe o Ornithorhynchus anatinus e a Terra brasilis. O primeiro é um bicho aparentemente fofinho, com esporões conectados a glândulas de veneno. A segunda, lar de um povo que adora memes e inventou o brigadeiro, o pão de queijo, o xaxado, o chorinho, a caipirinha, o chorinho da caipirinha — e deu transcendência ao diminutivo; que chama desconhecidos de “querido”, mistura pizza com abacaxi e dá nó em ChatGPT. Mas tem a oitava maior taxa de violência no mundo: com 2,7% da população do planeta, responde por 20,4% dos homicídios, segundo o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime. Ao contrário do que dizia a personagem da Kate Lyra, o brasileiro (assim como o ornitorrinco) não é tão bonzinho.

Outra boa metáfora é a ex-presidenta Dilma Rousseff. Ela fala um inglês macarrônico e intraduzível, mas dispensa o intérprete. (O Brasil tem educação precária — na formação profissional e na de crianças e adolescentes, está em último lugar no Pisa—, mas engata marcha a ré nos avanços propostos pelo Novo Ensino Médio.)

Ela quase quebrou um país e se acha em condições de presidir o banco criado para auxiliar o crescimento e o desenvolvimento de cinco grandes economias. O Brasil sofre derrotas diárias na guerra ao tráfico, às milícias, à dengue, à evasão fiscal, ao desmatamento e ao garimpo ilegais e quer dar pitaco na guerra na Ucrânia.

Como Dilma, bastava ao país ler o que está escrito — seja na Constituição, nos artigos científicos, nos livros de economia — para que tudo desse certo. Mas insiste no improviso e se embanana todo.

Como exotismo pouco é bobagem, talvez nossa melhor metáfora seja um dilmorrinco.

Por que atacar escolas

Na crônica sombria dos serial killers americanos existe a figura do "copycat", aquele que imita criminosos precedentes. Noutro plano, mas na mesma esfera do crime, também se reproduzem em diferentes regiões os massacres aleatórios, com escolas como alvos preferenciais. Nos EUA são quase semanais, já alarmantes entre nós. Foi traumatizante o assassinato de crianças numa creche.

Ainda não se deu resposta satisfatória à escolha desse alvo. Escola, uma das matrizes da modernidade, é a forma, ao lado de outras (como nação, mercado), pela qual se incorporam saberes e se orientam cívica e profissionalmente os indivíduos. Com esta capa institucional, serve também de adaptação cognitiva ao modo de produção dominante. É dispositivo que metaboliza os parâmetros sociais de reprodução do sistema.

Mas escolarização é o processo interativo acionado pela forma cultural. Isso não se faz sem disciplina, o verdadeiro lastro ideológico da escola. O sociólogo e educador Émile Durkheim sustentava a ideia liberal de uma "autoridade regular" a quem caberia exercer a disciplina indispensável à moral, entendida como um sistema de hábitos e preceitos. Este princípio é indissociável da educação formal.

A isso se contrapõe a mídia contemporânea, cuja forma ideológica, essencialmente neoliberal, pauta-se por persuasão. Por mais que seus conteúdos editem apoios à educação e à ciência, ela é estruturalmente avessa à autoridade escolar. Evidencia-se na lógica do espetáculo e nas redes, onde jogos e anarquia informativa confirmam a crise disciplinar e exacerbam a hostilidade à educação moral.

Árdua é a competição junto aos jovens entre as formas disciplinares e as persuasivas. Estas últimas, com vantagem, guiam-se pelo individualismo neoliberal, cujos parâmetros concorrenciais do salve-se-quem-puder geram ansiedade, depressão e automutilação. Por outro lado, a escola, modelada no século 19 ao modo do controle disciplinar e do púlpito, é tanto objeto de afetos positivos como potencialmente virulentos, movidos pelo rancor.

Nos EUA e no Brasil, a organização carcerária cresce na gestão de corpos educacionalmente desamparados, mas fracassa em termos de reeducação e reintegração social. Nos dois países, cresce também a construção de realidades paralelas pelos sistemas de mídia. A ponte entre elas é o ódio, normalizado nos últimos quatro anos pelo discurso do bestialismo antiescola e anticultura: rastilho de contágio para massacres, já aceso por parte da sociedade eleitoral com o voto extremista. As redes sociais, onde ignorância empodera, são o novo espaço de desinvestimento das forças educativas. A mão que empunha a machadinha tem partido e plataforma digital.

O Brasil voltou! Para onde vamos?

Nestes 100 primeiros dias, Lula já prestou o imenso serviço de trazer o Brasil ao passado anterior a 2019, mas é preciso que acene para o futuro, sintonizado com o mundo adiante, tanto nos riscos quanto nos imensos desafios e oportunidades que surgem para o Brasil, o promissor depositário de recursos para a economia do futuro, baseada em dois capitais: população e natureza. Não temos outra liderança com a sensibilidade, carisma e capacidade de aglutinação do Lula, portanto, não podemos desperdiçar sua presidência apenas e voltar ao passado anterior, até porque o Brasil não estava bem. “O Brasil voltou” ao passado, mas precisa do slogan “o Brasil avança ao futuro”. Mesmo saindo do presente nefasto em que estávamos, voltar é um verbo conservador.

Apenas com o propósito de um passado menos mal que o presente não vamos construir a estrutura necessária para o futuro que desejamos e temos potencial: com eficiência econômica, equidade social, democracia política e sustentabilidade ecológica. Não basta o governo ser novo, ele precisa ser para os novos tempos adiante, com nossos principais recursos: os milhões de cérebros e a imensa biodiversidade que bem usados permitirão aumentar e distribuir a renda, abolir a pobreza, pacificar a sociedade, civilizar as cidades, dar bem-estar à população, oferecer sonhos e esperanças aos jovens.


Respiramos aliviados porque “o Brasil voltou” ao compromisso com a proteção do meio ambiente, mas não definimos como será o progresso sustentável, utilizando a riqueza da biodiversidade. Voltamos ao propósito do desmatamento zero, mas ainda não adotamos a ecologia como questão industrial. Nestes 100 dias, o governo não mostrou um Plano de Metas para a indústria do século XXI, baseada na ecologia e no conhecimento, a economia verde e digital.

Felizmente, Lula trouxe o país de volta do Auxílio Brasil para o Bolsa Família, mas não apresentou a estratégia de como e quando nenhum brasileiro vai precisar de ajuda para sobreviver. O Bolsa Família já tem quase 30 anos, desde que começou no governo do PT no DF; 20 anos desde que FHC levou para o Brasil; mais de 15 desde que foi transformado em Bolsa Família, em 2004, dois anos como Auxílio Brasil. Tomada isoladamente, essa transferência de renda reduz a penúria, mas não elimina a tragédia da pobreza. O futuro exige que esse programa carregue a semente de sua obsolescência, ao ser parte de uma revolução pela educação: a implantação de um Sistema Único Nacional Público de Educação de Base, com a máxima qualidade para todos, independentemente da renda e do endereço da família. Esse seria o rumo para a erradicação da pobreza de forma estrutural e não apenas conjuntural por bolsas e auxílios que os próximos governos poderão acabar por revogação política ou por desvalorização monetária.

“O Brasil voltou”, mas falta proposta de como, ao longo dos próximos anos e décadas de seu governo e dos seguintes, o Brasil vai elevar a produtividade, criar emprego, assegurar que todos terão acesso a água, esgoto, paz nas ruas, moradia, transporte público de qualidade. E a garantia de que isso será feito sem concessão à pior inimiga dos pobres: a inflação.

Em 100 dias não se constrói uma década, mas é possível sinalizar rumos e inspirar cinquenta anos. Graças a Lula, “o Brasil voltou” à democracia e recuperou antigos programas sociais, mas precisa definir para onde e como avançaremos a novos tempos e ambições.

Dois tempos

Agosto de 1955, Estados Unidos — foi sucinta a última recomendação da mãe de Emmett Till, de 14 anos, ao embarcá-lo para visitar familiares no estado sulista do Mississippi:

— Lá não é como aqui em Chicago. Você é um menino negro, não deve arrumar confusão.

Os tios que hospedaram o garoto curioso lhe fizeram advertência semelhante. Também os priminhos da mesma idade falavam em nunca chamar a atenção, mesmo em programas tão inocentes como sair para comprar doces. Foi numa noite daquele agosto escaldante que Emmett entrou no mercadinho Bryant, de propriedade de um branco, acompanhando o primo Curtis Jones. No caixa estava a mulher do dono. Os meninos fizeram a compra, saíram rapidamente e ainda estavam a fazer hora quando a sra. Bryant também saiu para pegar o carro. Um assovio atrevido, insolente, proibido cortou o silêncio e permaneceu no ar. Saíra da boca de Emmett.

— Ele não se deu conta do perigo — relatou depois em livro o outro primo, Simeon Wright.

Na manhã do dia seguinte, o dono do mercadinho e um irmão entraram armados na casa onde Emmett ainda dormia. Levaram o menino até uma camionete que os aguardava.

— É ele? — perguntou o dono.

— É — respondeu uma voz feminina de dentro do veículo.


Passados quatro dias, o que restava do corpo de Emmett foi encontrado no rio de uma cidade vizinha. Cabeça e rosto formavam uma massa desfigurada, monstruosa, de pouca semelhança humana. Emmett fora surrado, alvejado e amarrado com arame farpado antes de ser descartado. A história teria se encerrado ali, como tantas outras à época, pois os irmãos assassinos foram rapidamente absolvidos por um júri supremacista. Não foi assim. A história entrou para a História.

Mamie Till recebera os restos mortais de Emmett em caixão fechado, por via férrea. Ela sabia que o enterro em Chicago seria concorrido, por isso decidiu expor o amontoado de carne que um dia foi seu filho num caixão com tampo de vidro, sem retoques. O impacto sobre familiares, amigos, a comunidade negra e demais participantes foi irreprimível — documentários da época mostram desmaios, mulheres em agonia, outras tantas em choque. O amor e a tenacidade dessa mãe em dor fizeram mais. Mamie percorreu inúmeras redações de jornal pedindo que publicassem fotos do filho em vida, sorridente, junto à dele trucidado. De início, somente publicações negras em luta pelos direitos civis aceitaram. Mas a realidade acabou se impondo, e quem ainda hesitava em condenar o arcabouço racista da nação americana sentiu-se encorajado a entrar na luta. Historiadores consideram a caso Emmett Till, anterior ao caso Rosa Parks, o marco inicial da frente ampla que marcharia até conseguir mudar as leis segregacionistas uma década depois.

— Foi quase insuportável sentir o horror das pessoas ao ver meu filho [naquele estado] — declarou Mamie Till à época. — Mas pensei que a alternativa seria ainda pior. Desviamos o olhar da nossa cruel realidade por um tempo longo demais. Sem a exposição, ninguém acreditaria. É hora de o mundo ver o que eu vi.

Não só o mundo viu, como continua vendo. Em 2005, por motivos forenses, o corpo de Emmett teve de ser exumado e o caixão trocado. A família decidiu então preservar o caixão original e pensou em doá-lo a alguma entidade de direitos civis. Foi contactada por ninguém menos que o colossal Smithsonian Institute e, desde então, o artefato faz parte do acervo do Museu Nacional da História e Cultura Afro-Americana, na capital do país.

— Nunca imaginamos que chegaríamos a tanto — admitiu Simeon Wright à revista Smithsonian. — Visitantes do mundo inteiro vão poder saber por que aquele caixão está ali. E mães, pais ou algum curador haverão de contar a história (...) Quando ninguém faz nada para defender o Estado de Direito, a sociedade se destrói sozinha.

Abril de 2023, Brasil — na semana passada, dois casos registrados em vídeo conseguiram furar nossa acomodação ao cotidiano racista do país. No Rio de Janeiro, o entregador Max Angelo dos Santos, morador na Rocinha, não sabe como contar aos três filhos que foi chicoteado com coleira de cachorro por uma moradora branca de São Conrado. A troco de nada. Ou melhor, por ser negro.

— Complicado uma criança assistir a um vídeo desses, é bem pesado — disse.

A agressora, Sandra Mathias Correia de Sá, ex-atleta de vôlei, já o chamara de “marginal”, “preto”, “favelado” em ocasião anterior, apenas pelo fato de o entregador usar o mesmo espaço público — a rua — que ela.

Em Curitiba, a professora Isabel Oliveira, que fora a um supermercado Atacadão comprar leite para a filha, sentiu-se seguida no estabelecimento por mais de meia hora por um funcionário da casa. “Isso não pode ser normal”, pensou. E não aceitou. Resolveu usar o corpo negro como grito de afirmação. Com o testemunho do marido, que filmou a cena, retornou ao Atacadão, ali desnudou-se e entrou na fila do caixa vestindo apenas calcinha e sutiã, e uma pergunta rabiscada na própria pele:

— Eu sou uma ameaça?

A coleira que chicoteou o entregador Max poderia constar de algum museu do racismo no Brasil de 2023. O basta da professora Isabel aponta para um amanhã sem paciência com a grande perversidade nacional: o racismo.