domingo, 6 de junho de 2021

Pensamento do Dia

 


Missão cumprida: o Exército no governo

O general Paulo Sérgio Nogueira deve ter seus motivos para decidir poupar o general Eduardo Pazuello de qualquer das sanções previstas no Regulamento Disciplinar do Exército (RDE) para quem o transgredir. Mas depois dela, o Exército é menos confiável.

A defesa de Pazuello certamente não pode ser o respaldo do comandante do Exército, pois nega natureza política ao ato do presidente da República do qual participou o general perdoado.

O Exército aceitou uma explicação do general-réu que faz letra morta a máxima consagrada do político americano James Schlesinger, segundo a qual todos têm direito à própria opinião, mas não aos próprios fatos.

Não só o ato que levou Pazuello ao palanque era político, como também é inteiramente política a decisão de seu comandante. Pode ser um recuo tático decidido após uma avaliação da dimensão da crise em caso de uma punição vir a ser revogada pelo presidente da República.


Pode também resultar de uma relação custo/benefício com base na premissa de que punir o general enfraqueceria o presidente da República e, por extensão, fortaleceria o adversário inesperado, Lula da Silva, ameaçando a reeleição de Bolsonaro e o retorno da esquerda ao poder.

Pode ser ainda a inconveniência de arriscar o banquete dos contracheques, engordados pelos mais de três mil cargos militares no governo. Em qualquer hipótese – e em todas elas – Nogueira pode dizer “Missão Cumprida, em nome do Exército.

Com uma decisão política, o comandante do Exército nega ato político ao subordinado e negligencia aspectos sensíveis, como a mensagem de sublevação enviada às tropas não só das Forças Armadas, mas também das corporações militares estaduais que já dão sinais de insubordinação.

O preço político é caro especialmente para as altas patentes que sonharam reescrever a história de 64, cuja versão prevalecente consideram inverídica. A decisão de Paulo Sérgio devolve a desconfiança com relação ao compromisso constitucional dos militares reafirmado inúmeras vezes pelos seus antecessores.

Ocorresse em clima de absoluta normalidade, a exceção feita a Pazuello seria errada e condenável, por ser exceção. Mas antecedida das bravatas presidenciais como a de afirmar e reafirmar que o Exército lhe pertence e de empossar o general infrator em cargo estratégico enquanto seu caso era avaliado, soa como uma submissão envergonhada.

Com “seu” Exército (já se pode tirar as aspas do pronome possessivo), qualquer ação ou atitude do presidente da República, daqui para a frente, constitucional ou não, sóbria ou delirante, justa ou injusta, terá sempre o tom verde-oliva da ameaça implícita.

Depois de uma fala em rede nacional de televisão em que disse jogar “dentro das quatro linhas da Constituição”, Bolsonaro obtém do Exército aval para as Forças Armadas trafegarem na contramão de suas normas internas e da própria Carta Maior.

A confiança civil nas Forças Armadas é menor desde a decisão do comandante do Exército Paulo Sérgio Nogueira. O Exército se curva pela segunda vez a Bolsonaro na ilusão de que é melhor não comprar a provocação e reproduz em Pazuello hoje o Bolsonaro de ontem.

E ainda cabe uma desconfiança: especialistas em contrainformação, os militares que se manifestaram pela punição a Pazuello na mídia poderiam estar apenas emprestando credibilidade a um enredo que precisa sugerir uma análise séria e detida do caso.

Que pode sequer ter havido. Retardar o anúncio de uma decisão de primeira hora pode fazer parte do script.

Brasil e Venezuela irmanados

Os militares daqui estão enfrentando o que os da Venezuela enfrentaram no início do período chavista. Bolsonaro persegue o modelo de Chávez. Ele, como Chávez, quer reduzir o comando dos militares para transferi-lo para a política. Ou seja, para ele
Raul Jungmann, ex-ministro da Defesa

A carnificina bolsonarista

Jair Bolsonaro intensificou seu projeto de golpear as instituições democráticas e impor uma ditadura. Sempre deixou claro, desde a longa carreira parlamentar, que era um adversário do Estado democrático de Direito.

No exercício da Presidência — antes ainda da pandemia — deu inúmeras declarações, no Brasil e no exterior, de simpatia para com as ditaduras e de incômodo com os limites constitucionais estabelecidos ao poder Executivo pela Constituição de 1988. Ao mesmo tempo, foi solapando o aparelho de Estado, minando o que foi edificando, com muito esforço, nos últimos trinta anos.


Deve ser recordado que o Brasil tem uma longa presença autoritária na esfera política. A construção de uma cultura política democrática nunca foi um elemento presente no nosso cotidiano. As veleidades autoritárias sempre estiveram presentes, mesmo em momentos de relativo funcionamento de instituições democráticas. O uso da força rondou a nossa história republicana. O golpismo foi durante décadas uma carta guardada para ser utilizada em momentos de impasses. E desde 1889 inúmeras vezes foi utilizada. O entendimento que, na democracia, é necessário conviver com a diferença, com a pluralidade, com a alternância no poder, com o respeito às instituições, nunca foi compreendido pelas elites políticas. E o povo, no seu mutismo, não compreendeu que reside na democracia a única possibilidade de enfrentamento das desigualdades sociais – isto em um dos Países mais desiguais do mundo.

O ano de 2021 está expondo de forma absolutamente transparente as contradições da democracia brasileira, suas limitações e possibilidades. Só que apresentando uma variável inexistente em outras crises da República: a pandemia. Ela está atingindo o âmago do Estado democrático de Direito. O nazifascismo bolsonarista estabeleceu na morte o foco de sua ação política. O desprezo pela existência humana atingiu o ápice. Como não há guerra externa, restou aos extremistas atacar, pelo negacionismo, os brasileiros. A carnificina sem fim é o objetivo central dos genocidas. Resistir é uma tarefa de sobrevivência nacional.

Como de hábito — e a história republicana tem vários exemplos — a reação é normalmente tardia. Mas quando vêm, chega com força e de forma surpreendente.

As primeiras grandes manifestações de rua, somadas às pesquisas de impopularidade, o agravamento da pandemia, a lenta recuperação econômica, podem interromper a matança antes que seja tarde demais.

Amados bandidos

Um obscuro major das Forças Armadas Angolanas, Paulo Lussaty, foi preso em Luanda, há poucos dias, quando tentava abandonar o país carregando em várias malas mais de 10 milhões de dólares e quatro milhões de euros. O referido oficial, ligado à Casa de Segurança do Presidente da República, terá conseguido transferir para o exterior mais de um bilhão de dólares. 

Sempre que leio notícias como esta penso naqueles filmes ou séries, ao estilo “Casa de Papel”, nos quais um grupo de malfeitores se junta para montar um grande golpe. Estes bandidos são quase sempre gênios da informática. Passaram também muitos anos praticando equitação, esgrima, mergulho, e estudando filosofia, física nuclear e mecânica quântica. Se tiverem sorte, chegam ao final do filme com um milhão de dólares — a distribuir por todos. Quase nunca têm sorte.

Os malfeitores angolanos, esses, roubam um bilhão de dólares sem correrias nem sustos. Não se servem da inteligência e menos ainda da imaginação. Não investem anos a estudar. Não cansam o corpo a treinar artes marciais. Bastam-lhes dois gramas de ousadia e uma alegre e natural falta de escrúpulos.


Bandidos ao estilo da “Casa de Papel” suscitam inevitável simpatia. Admiramos neles a coragem com que enfrentam o tédio de um quotidiano que nos amarra a todos, e a inteligência com que ludibriam as regras do sistema. Ronald Biggs, que fugiu para o Brasil em 1970, após participar no assalto a um trem postal, na Inglaterra, levou no Rio uma existência feliz e festiva. Amados bandidos

Chegou até a tentar carreira como cantor. 

Em Portugal, o criminoso mais amado e respeitado da história atende pelo nome de Alves dos Reis. O português começou a sua carreira de vigarista aos 20 anos, falsificando um diploma de engenheiro que lhe permitiu trabalhar em Angola, onde ajudou a construir e ampliar uma importante estrada de ferro. Quando engenheiros legítimos colocaram em dúvida a segurança de uma ponte desenhada por ele, subiu na locomotiva, acompanhado pela mulher e filhos, e conduziu ele mesmo o trem. Em 1924, falsificou um contrato em nome do Banco de Portugal, com o qual conseguiu mandar imprimir em Londres 200 mil notas de 500 escudos — quase um por cento do PIB português de então. Com parte desse dinheiro fundou um banco em Angola. Preso no ano seguinte, alegou que engendrara todo o esquema com o único objetivo de promover o desenvolvimento de Angola. Ainda hoje há quem acredite nele e o defenda.

Acho mais difícil simpatizar com os atuais bandidos angolanos, que usam o dinheiro de todos para comprar carros e relógios; dinheiro esse que poderia servir para formar médicos e professores, construir escolas, ou combater epidemias. A rainha destes bandidos é Isabel dos Santos, a filha do anterior presidente, José Eduardo, que ainda há pouco era celebrada em todo o mundo como uma grande empresária, a mulher mais rica da África. Mesmo caída em desgraça continua tendo inúmeros admiradores. Basta visitar a sua página no Instagram.

Já não se fazem bandidos como antigamente. Não faltam, contudo, os tolos capazes de os amar.

Bolsonaro e a anarquia militar

A indulgência do comandante do Exército, Paulo Sérgio Nogueira, ao ato de flagrante indisciplina do general Eduardo Pazuello, terá consequências de alto risco para a conjuntura política brasileira. Mas não se pode dar a essa decisão a responsabilidade pela instalação da anarquia entre os fardados. Ela fomenta a anarquia, é certo. Mas o caldo da insubordinação começou a ferver faz tempo.

O marco mais explícito da permissividade nos quartéis deve-se a outro comandante da força, o general Villas Bôas, e seu post ameaçando o STF na véspera da votação do habeas corpus de Lula, em 2018. Na campanha daquele ano, militares da ativa engajaram-se com desenvoltura em exércitos digitais, públicos ou não, a favor de Bolsonaro. Como se sabe, em instituição hierarquizada o exemplo vem de cima.


Também deu mau exemplo o então ministro da Defesa, Fernando Azevedo, quando acompanhou Bolsonaro em sobrevoo de apoio à manifestação contra o Congresso e o STF, que pedia “intervenção militar”. Ao ser defenestrado, em março, afirmou ter preservado as Forças Armadas como “instituições de Estado”. Cinismo ou ingenuidade?

É claro que há nuances e divergências de pensamento entre os militares. Mas essas diferenças não abalam, por ora, o projeto que os trouxe de volta ao poder. Este é um governo colonizado por e para militares, com seus salários, cargos, mordomias, privilégios e outras benesses.

As Forças Armadas carregam a mancha de 21 anos de ditadura, tortura e morte de opositores. Com Bolsonaro, reforçam sua tradição golpista, associam-se ao morticínio de brasileiros na pandemia, afundam-se no pântano da história. Mas não estão sozinhas. Bolsonaro fermenta o caos com a complacência de parcelas da sociedade civil, como o capital financeiro, oligarcas do agronegócio, setores do Legislativo e do Judiciário, mídia, igrejas. A desgraça deste país é uma obra coletiva.

Um torneio na hora errada, no lugar errado

Autocratas gostam de eventos esportivos internacionais. Eles são ótimos para distrair a atenção de crises. A nação se volta em direção a seus supostos heróis, sob cuja luz o governo também gosta de se banhar. Portanto, é compreensível que o presidente Jair Bolsonaro tenha concordado imediatamente quando a Confederação Sul-Americana de Futebol (Conmebol) lhe perguntou se a Copa América deste ano poderia ser realizada no Brasil a curtíssimo prazo.

A Conmebol estava num dilema. Inicialmente, o torneio seria realizado na Colômbia e na Argentina. Primeiro a Colômbia desistiu devido às manifestações populares por mais justiça social, que foram respondidas com violência assassina pelas forças de segurança. Em seguida, a Argentina também recuou porque o governo avaliou que a pandemia de covid-19 ainda estava fora de controle.

Aflito – o pontapé inicial do campeonato é em menos de duas semanas –, o presidente da Conmebol, o paraguaio Alejandro Domínguez, recorreu ao Brasil. Ele contactou o presidente da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), que por sua vez ligou para Bolsonaro – e em poucos minutos recebeu uma resposta positiva.


O evento chega na hora certa para Bolsonaro. O presidente de ultradireita está mergulhado em uma profunda crise. Seus índices de aprovação são os mais baixos desde que ele tomou posse, e centenas de milhares foram às ruas contra seu governo no sábado passado. O ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, é suspeito de estar em conluio com a máfia madeireira. Além disso, uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) expõe todos os dias o fracasso do governo na gestão da pandemia.

Bolsonaro pode ter pensado que, diante da situação atual, não seria uma má ideia ser fotografado com a superestrela Neymar e outros jogadores brasileiros, a maioria dos quais é completamente apolítica.

Os cerca de 500 mil brasileiros que provavelmente terão morrido de covid-19 no país até o início da Copa América não têm qualquer relevância nesse cálculo cínico. Desde o início Bolsonaro negou e minimizou a pandemia. Ele semeou dúvidas sobre as vacinas e fez pouco caso das mortes. Os brasileiros precisam parar de "frescura" e de "mimimi", disse o presidente.

Como resultado, as taxas de infecção no Brasil estão aumentando mais uma vez. Embora 46 milhões de brasileiros tenham recebido pelo menos uma dose da vacina contra a covid-19 (21% da população), uma média de cerca de 1.800 pessoas ainda sucumbem ao vírus todos os dias. Especialistas advertem sobre uma terceira onda de infecções e a disseminação de novas mutações. Para piorar a situação, a pobreza e a fome se espalham rapidamente no país. Cada vez mais cidadãos vivem nas ruas ou dependem de ajuda alimentar.

Mas nem Bolsonaro nem a Conmebol parecem se importar. A federação de futebol tem lutado para melhorar sua imagem desde que dezenas de membros de seu conselho foram investigados por corrupção em 2015. Para a entidade, trata-se de acordos lucrativos de patrocínio e venda de direitos para a transmissão dos jogos na televisão. Bolsonaro, por sua vez, quer passar um senso de normalidade e, de todas as formas, desviar a atenção de sua responsabilidade pelos mortos.

A CPI da Pandemia no Senado revelou que, desde o início da crise do coronavírus, Bolsonaro deixou sem resposta pelo menos 41 e-mails da farmacêutica Pfizer, nos quais a empresa oferecia ao país milhões de doses de sua vacina. Não sem razão, Bolsonaro está sendo chamado de "genocida" pela oposição.

Para Bolsonaro e para a Conmebol é, no entanto, à primeira vista, uma situação em que todos ganham. A confederação salva sua pele, e Bolsonaro desvia a atenção da pandemia. A Conmebol promete jogos seguros: sem espectadores e com delegações totalmente vacinadas dos dez países participantes. Também argumenta – corretamente – que a América do Sul já sedia campeonatos nacionais atualmente, assim como a Copa Libertadores e as eliminatórias para a Copa do Mundo de 2022 no Catar. Por que não a Copa América também?

Mas a entidade esquece que não há motivos para celebrar tal torneio no Brasil ou na América do Sul – a região mais atingida pela pandemia. Se meio milhão de mortos e a ameaça de novas mutações não são motivos para suspender o campeonato, o que mais seria? Assim como a Fifa se tornou cúmplice de regimes autoritários na Rússia e no Catar, a Conmebol está agora se tornando cúmplice de Bolsonaro.

Que ambas as estratégias podem acabar não funcionando no fim das contas, é demonstrado pela oposição generalizada nas redes sociais e também entre os comentaristas da imprensa tradicional brasileira. A Copa América 2021 já foi renomeada para "Covid América" ou "Cova América". É um torneio no lugar errado, na hora errada.
Philipp Lichterbeck