segunda-feira, 15 de janeiro de 2024
Uma paz para acabar com a paz
Para entender melhor o que acontece no Oriente Médio, li "A Peace to End All Peace" (uma paz para acabar com qualquer paz), de David Fromkin. Embora não exatamente nova, é uma obra de fôlego que mostra como surgiram os países que hoje constituem a região e como sua gênese contribuiu para a instabilidade atual.
Fromkin começa sua investigação nos estertores do Império Otomano, passa a lupa sobre a 1ª Guerra Mundial e para em 1922, que é quando o mapa do Oriente Médio assume feições semelhantes às atuais. É um prato cheio para apreciadores do beletrismo histórico. "Grand Jeu", acordo Sykes-Picot, declaração Balfour e outros eventos, sobre os quais lemos hoje nos artigos mais eruditos sobre o imbróglio médio-oriental, são cuidadosamente discutidos.
Embora não seja o objetivo central da obra, ela também lança luzes sobre a psicologia de figuras importantes como Lloyd George, Winston Churchill, Woodrow Wilson. Até as aventuras de Lawrence da Arábia têm o seu lugar.
O imperialismo tem muito a ver com a confusão atual. As potências vencedoras da 1ª Guerra dividiram os despojos do Império Otomano de acordo com seus interesses e as cambiáveis correlações de força, sem atentar para elementos básicos da realidade local.
"A Peace..." mostra que os problemas não se limitaram às desavenças entre potências. Também era frequente que diferentes departamentos de um mesmo governo se sabotassem. Os britânicos, por exemplo, davam mesadas generosas ao rei Husssein e a Ibn Saud, que as gastavam combatendo um ao outro. A promessa dos escalões centrais de Londres de apoiar a constituição de um "lar nacional" para os judeus era diariamente minada pelos militares britânicos in loco.
Fromkin conclui lembrando que a Europa levou 1.500 anos para recuperar-se da queda de Roma. Então, é preciso dar mais tempo para que as coisas se assentem no Oriente Médio. Quem sabe daqui a 1.400 anos...
Fromkin começa sua investigação nos estertores do Império Otomano, passa a lupa sobre a 1ª Guerra Mundial e para em 1922, que é quando o mapa do Oriente Médio assume feições semelhantes às atuais. É um prato cheio para apreciadores do beletrismo histórico. "Grand Jeu", acordo Sykes-Picot, declaração Balfour e outros eventos, sobre os quais lemos hoje nos artigos mais eruditos sobre o imbróglio médio-oriental, são cuidadosamente discutidos.
Embora não seja o objetivo central da obra, ela também lança luzes sobre a psicologia de figuras importantes como Lloyd George, Winston Churchill, Woodrow Wilson. Até as aventuras de Lawrence da Arábia têm o seu lugar.
O imperialismo tem muito a ver com a confusão atual. As potências vencedoras da 1ª Guerra dividiram os despojos do Império Otomano de acordo com seus interesses e as cambiáveis correlações de força, sem atentar para elementos básicos da realidade local.
"A Peace..." mostra que os problemas não se limitaram às desavenças entre potências. Também era frequente que diferentes departamentos de um mesmo governo se sabotassem. Os britânicos, por exemplo, davam mesadas generosas ao rei Husssein e a Ibn Saud, que as gastavam combatendo um ao outro. A promessa dos escalões centrais de Londres de apoiar a constituição de um "lar nacional" para os judeus era diariamente minada pelos militares britânicos in loco.
Fromkin conclui lembrando que a Europa levou 1.500 anos para recuperar-se da queda de Roma. Então, é preciso dar mais tempo para que as coisas se assentem no Oriente Médio. Quem sabe daqui a 1.400 anos...
Haia existe
Ninguém gosta de ser submetido a julgamento. Países, também não. E o Estado de Israel, comandado por Benjamin Netanyahu, menos ainda. Mesmo que consiga convencer a Corte Internacional de Justiça (CIJ) a arquivar a acusação de genocídio apresentada pela África do Sul, ou mesmo que consiga evitar a petição por medidas provisórias urgentes, como a interrupção dos ataques a Gaza, Netanyahu jamais conseguirá apagar o dano moral, político, diplomático e histórico sofrido em Haia. A sentença final a ser decidida pelos 15 juízes da Corte pode demorar dias, semanas, meses, até anos, mas a mera questão central — Israel cometeu genocídio? — é devastadora em si.
Relegada ao papel de cemitério do Direito Internacional, a Palestina como um todo, e Gaza em especial, pouco espera da Justiça dos homens. Só que a petição apresentada pela África do Sul pode ter desdobramentos inesperados. Como previsto, foi desconsiderada como frivolidade pelo secretário de Estado americano, Antony Blinken. Mas não por Netanyahu, que optou por apresentar sua defesa perante a Corte. Não é de hoje que lideranças israelenses se preocupam com uma eventual percepção mundial de que a opressão sofrida pela Palestina ocupada é uma forma de apartheid. O espectro de isolamento internacional semelhante ao imposto ao regime de minoria branca na África do Sul — que culminou na extinção do apartheid nos anos 1990 — sempre existiu. Et pour cause.
Desde as décadas da descolonização, dos movimentos de libertação, dos Não Alinhados e da Tricontinental, o partido de Nelson Mandela e a militância palestina andaram lado a lado.
— Nossa liberdade é incompleta sem a libertação dos palestinos — lembrou o líder negro em 1997.
Tinham em comum a revolta contra opressores que se ajudavam mutuamente. O jornalista Tony Karon, nascido na África do Sul, sionista na juventude e atual produtor na Al Jazeera, lembra seus tempos de militância anti-apartheid na Cidade do Cabo. Em artigo recente, escreveu: “Muitos de nós ficamos horrorizados quando, em 1976, Israel recebeu a visita oficial do primeiro-ministro sul-africano John Vorster, nazista convicto que trabalhou numa organização paramilitar ligada à Abwehr [serviço de inteligência militar de Hitler]”. A venda de armas de Israel para a África do Sul era segredo de polichinelo, assim como a assistência israelense à Força de Defesa do regime bôer.
A descolonização, como se sabe, não seguiu propriamente o roteiro sonhado pelo intelectual martinicano Aimé Césaire — restituir humanidade tanto ao colonizado como ao colonizador, numa mesma comunidade de pertencimento. Fracassos se acumularam, e correções de curso continuam a coalhar a caminhada com desgraças. Contudo a cartada da África do Sul, ao cobrar da Corte de Haia um posicionamento, tem o mérito de conseguir nos envergonhar pela cumplicidade mundial diante de décadas de desenraizamento e opressão de um povo. Silenciadas, gerações e gerações de palestinos tiveram existência apagada, nulificada. Gaza é apenas a aberração mais gritante.
Para Netanyahu, a semana foi indigesta também no front interno. O conservador Yedioth Ahronoth, maior jornal do país, divulgou uma notícia sombria: “Ao meio-dia do 7 de Outubro, as Forças de Defesa de Israel (FDI) ordenaram a todas as unidades de combate em ação usar a Diretiva Hannibal, sem menção explícita ao nome. A ordem era parar ‘a qualquer custo’ toda tentativa de retorno a Gaza dos terroristas do Hamas, apesar do temor de que levavam consigo reféns.(...) Estima-se em cerca de mil os terroristas e infiltrados mortos entre o assentamento de Olaf e a Faixa de Gaza. Não está claro quantos reféns foram mortos em decorrência dessa ordem”. Perto de 70 veículos foram encontrados na mesma área, atingidos por um helicóptero de combate ou mísseis antitanque das FDI.
“Diretiva Hannibal” é o nome dado a um procedimento militar oficialmente abandonado pelas FDI em 2016. Visava a impedir a captura de soldados israelenses por tropas inimigas. Sua versão mais genérica ensinava: “A tomada de reféns precisa ser impedida por todos os meios, mesmo ao preço de alvejarmos e causarmos danos a nossas próprias forças”. Sujeitas, portanto, a interpretação e aplicação elásticas. No mês passado, o diário liberal Haaretz já havia aventado a hipótese de a Diretiva Hannibal ter sido usada no fatídico 7 de Outubro, quando 40 terroristas do Hamas foram alvejados por dois disparos de canhão numa casa em Be’eri, assentamento israelense. Havia 14 reféns civis na casa. Apenas uma saiu com vida do horror. Hadas Dagan, cujo marido foi uma das vítimas, não culpa as equipes de socorro israelenses:
— Eles também deram a vida por nós.
No centésimo dia de cativeiro para mais de 130 reféns ainda em mãos do Hamas. Quanta tragédia entrelaçada!
Relegada ao papel de cemitério do Direito Internacional, a Palestina como um todo, e Gaza em especial, pouco espera da Justiça dos homens. Só que a petição apresentada pela África do Sul pode ter desdobramentos inesperados. Como previsto, foi desconsiderada como frivolidade pelo secretário de Estado americano, Antony Blinken. Mas não por Netanyahu, que optou por apresentar sua defesa perante a Corte. Não é de hoje que lideranças israelenses se preocupam com uma eventual percepção mundial de que a opressão sofrida pela Palestina ocupada é uma forma de apartheid. O espectro de isolamento internacional semelhante ao imposto ao regime de minoria branca na África do Sul — que culminou na extinção do apartheid nos anos 1990 — sempre existiu. Et pour cause.
Desde as décadas da descolonização, dos movimentos de libertação, dos Não Alinhados e da Tricontinental, o partido de Nelson Mandela e a militância palestina andaram lado a lado.
— Nossa liberdade é incompleta sem a libertação dos palestinos — lembrou o líder negro em 1997.
Tinham em comum a revolta contra opressores que se ajudavam mutuamente. O jornalista Tony Karon, nascido na África do Sul, sionista na juventude e atual produtor na Al Jazeera, lembra seus tempos de militância anti-apartheid na Cidade do Cabo. Em artigo recente, escreveu: “Muitos de nós ficamos horrorizados quando, em 1976, Israel recebeu a visita oficial do primeiro-ministro sul-africano John Vorster, nazista convicto que trabalhou numa organização paramilitar ligada à Abwehr [serviço de inteligência militar de Hitler]”. A venda de armas de Israel para a África do Sul era segredo de polichinelo, assim como a assistência israelense à Força de Defesa do regime bôer.
A descolonização, como se sabe, não seguiu propriamente o roteiro sonhado pelo intelectual martinicano Aimé Césaire — restituir humanidade tanto ao colonizado como ao colonizador, numa mesma comunidade de pertencimento. Fracassos se acumularam, e correções de curso continuam a coalhar a caminhada com desgraças. Contudo a cartada da África do Sul, ao cobrar da Corte de Haia um posicionamento, tem o mérito de conseguir nos envergonhar pela cumplicidade mundial diante de décadas de desenraizamento e opressão de um povo. Silenciadas, gerações e gerações de palestinos tiveram existência apagada, nulificada. Gaza é apenas a aberração mais gritante.
Para Netanyahu, a semana foi indigesta também no front interno. O conservador Yedioth Ahronoth, maior jornal do país, divulgou uma notícia sombria: “Ao meio-dia do 7 de Outubro, as Forças de Defesa de Israel (FDI) ordenaram a todas as unidades de combate em ação usar a Diretiva Hannibal, sem menção explícita ao nome. A ordem era parar ‘a qualquer custo’ toda tentativa de retorno a Gaza dos terroristas do Hamas, apesar do temor de que levavam consigo reféns.(...) Estima-se em cerca de mil os terroristas e infiltrados mortos entre o assentamento de Olaf e a Faixa de Gaza. Não está claro quantos reféns foram mortos em decorrência dessa ordem”. Perto de 70 veículos foram encontrados na mesma área, atingidos por um helicóptero de combate ou mísseis antitanque das FDI.
“Diretiva Hannibal” é o nome dado a um procedimento militar oficialmente abandonado pelas FDI em 2016. Visava a impedir a captura de soldados israelenses por tropas inimigas. Sua versão mais genérica ensinava: “A tomada de reféns precisa ser impedida por todos os meios, mesmo ao preço de alvejarmos e causarmos danos a nossas próprias forças”. Sujeitas, portanto, a interpretação e aplicação elásticas. No mês passado, o diário liberal Haaretz já havia aventado a hipótese de a Diretiva Hannibal ter sido usada no fatídico 7 de Outubro, quando 40 terroristas do Hamas foram alvejados por dois disparos de canhão numa casa em Be’eri, assentamento israelense. Havia 14 reféns civis na casa. Apenas uma saiu com vida do horror. Hadas Dagan, cujo marido foi uma das vítimas, não culpa as equipes de socorro israelenses:
— Eles também deram a vida por nós.
No centésimo dia de cativeiro para mais de 130 reféns ainda em mãos do Hamas. Quanta tragédia entrelaçada!
A grande guerra
As árvores sempre amaram os homens, desde o princípio dos tempos. Confessam este amor sem parar, as horas todas do dia. Mesmo quando a luz se retira e elas desaparecem de nossa vista, continuam a dizer que nos amam, fazendo perfume para a nossa noite e música para os nossos sonhos.
Mas as árvores não são apenas os maiores artistas que existem; são também os mais sábios cientistas. Se a gente lotasse o Mineirão de cientistas, os cem mil sábios ali reunidos saberiam muito menos do que uma árvore. E a mais profunda e indispensável ciência da árvore é transformar veneno em ar puro.
Muito poucos homens, por incrível que pareça, entendem a língua das árvores. Um em mil? Talvez nem isso. Um dia, por causa dessa ignorância, reunidos numa sala fechada, os homens declararam guerra às árvores.
Observados hoje, depois que tudo aconteceu, os motivos alegados parecem ridículos. Há árvores demais no mundo, diziam. – Já começam a invadir as nossas terras. – Melhor enfrenta-las e transformá-las em objetos úteis: casas, móveis, navios, lenha. – Não podemos é permanecer de braços cruzados. – O progresso exige que acabemos com as árvores.
Argumentos, de fato, ridículos; mas os argumentos a favor de todas as outras guerras são muito parecidos, depois de vistos (como se diz) à luz da história.
Foram mobilizados facões, machados, serrotes. O mais terrível guerreiro era um que ama o combate por si mesmo, capaz de lutar indiferentemente pelo bem ou pelo mal, capaz de cozinhar para o homem, sem que esse gesto simpático signifique bondade; em outra oportunidade, esse mesmo guerreiro poderá destruir sem remorso a humanidade inteira. Seu nome é Fogo.
E a guerra começou. As árvores, que também não entendem a língua dos homens, apesar de amá-los, continuaram em paz, a fazer o que sempre fazem: sombra, flores, frutos, desenhos, poesia. E a transformar veneno em oxigênio.
Foi uma guerra feia e covarde. Todos os homens, quase todos (com exceção das pessoas de ouvido fino, que entendem a língua dos vegetais), entraram na luta de extermínio. Quem não pertencia a um exército regular, punha o machado no ombro e saia de manhã para brigar sozinho. Os mais humildes, que nem dispunham de machadinha, armavam-se de fósforo ou isqueiro. Até as crianças, as mais assanhadas e menos inteligentes, participavam da guerra, e da maneira mais diabólica: construíam balões que, levados pelo vento, causavam perdas incalculáveis ao doce e inocente inimigo.
Essa guerra foi iniciada na era da civilização, há algumas centenas de anos, quando o homem aprendeu a fazer navios ligeiros, pontes sólidas, casas confortáveis e catedrais belíssimas.
Foi iniciada e jamais teve trégua, prosseguindo até o dia de hoje, auxiliada agora pelas armas modernas, como a serra elétrica e o trator.
Desarmadas, ou armadas apenas de boa vontade, as árvores opuseram uma única resistência: foram criando outras árvores, tantas quanto podiam no furor da batalha, na esperança de que, findas as hostilidades, outras plantas crescessem e continuassem a fazer oxigênio, sombra, flores, frutos, perfume, desenhos e poesia.
Mas acontece o seguinte: como imensas florestas já tombaram na luta, dando lugar a amplidões estéreis, o número de árvores em nosso tempo é insignificante. O número de homens, pelo contrário, tornou-se (como dizem) uma verdadeira explosão.
Assim, para dizer tudo em poucas palavras, a vitória dos homens contra as árvores está muito próxima. No ritmo que vamos, em pouco tempo não ficará uma floresta em pé.
Há um único problema: estamos enfrentando agora novos inimigos, aqueles que aparecem quando as árvores morrem: os riachos e os rios estão secando-se de sede, atormentando os homens; os temporais adoidados destroem as plantações, atormentando os homens; os animais desaparecem, atormentando os homens; a terra arrebenta-se e não presta mais para nada, atormentando os homens; o sol queima as sementeiras e castiga toda a criação, atormentando os homens. Em vez de dar música nas ramagens, a ventania dá vento; em lugar de perfume, aspiramos o fumo das máquinas; em troca de poesia, vamos entrando cada vez mais por uma paisagem sem flores, sem pássaros, sem verde. E já estamos sentindo falta de ar.
Superpovoada de homens e despovoada de árvores, a própria Terra, a única que possuímos, chega ao fim e aos poucos morre.
Resultado final: as árvores perdem a guerra e os homens ganham o inferno.
Paulo Mendes Campos
Mas as árvores não são apenas os maiores artistas que existem; são também os mais sábios cientistas. Se a gente lotasse o Mineirão de cientistas, os cem mil sábios ali reunidos saberiam muito menos do que uma árvore. E a mais profunda e indispensável ciência da árvore é transformar veneno em ar puro.
Muito poucos homens, por incrível que pareça, entendem a língua das árvores. Um em mil? Talvez nem isso. Um dia, por causa dessa ignorância, reunidos numa sala fechada, os homens declararam guerra às árvores.
Observados hoje, depois que tudo aconteceu, os motivos alegados parecem ridículos. Há árvores demais no mundo, diziam. – Já começam a invadir as nossas terras. – Melhor enfrenta-las e transformá-las em objetos úteis: casas, móveis, navios, lenha. – Não podemos é permanecer de braços cruzados. – O progresso exige que acabemos com as árvores.
Argumentos, de fato, ridículos; mas os argumentos a favor de todas as outras guerras são muito parecidos, depois de vistos (como se diz) à luz da história.
Foram mobilizados facões, machados, serrotes. O mais terrível guerreiro era um que ama o combate por si mesmo, capaz de lutar indiferentemente pelo bem ou pelo mal, capaz de cozinhar para o homem, sem que esse gesto simpático signifique bondade; em outra oportunidade, esse mesmo guerreiro poderá destruir sem remorso a humanidade inteira. Seu nome é Fogo.
E a guerra começou. As árvores, que também não entendem a língua dos homens, apesar de amá-los, continuaram em paz, a fazer o que sempre fazem: sombra, flores, frutos, desenhos, poesia. E a transformar veneno em oxigênio.
Foi uma guerra feia e covarde. Todos os homens, quase todos (com exceção das pessoas de ouvido fino, que entendem a língua dos vegetais), entraram na luta de extermínio. Quem não pertencia a um exército regular, punha o machado no ombro e saia de manhã para brigar sozinho. Os mais humildes, que nem dispunham de machadinha, armavam-se de fósforo ou isqueiro. Até as crianças, as mais assanhadas e menos inteligentes, participavam da guerra, e da maneira mais diabólica: construíam balões que, levados pelo vento, causavam perdas incalculáveis ao doce e inocente inimigo.
Essa guerra foi iniciada na era da civilização, há algumas centenas de anos, quando o homem aprendeu a fazer navios ligeiros, pontes sólidas, casas confortáveis e catedrais belíssimas.
Foi iniciada e jamais teve trégua, prosseguindo até o dia de hoje, auxiliada agora pelas armas modernas, como a serra elétrica e o trator.
Desarmadas, ou armadas apenas de boa vontade, as árvores opuseram uma única resistência: foram criando outras árvores, tantas quanto podiam no furor da batalha, na esperança de que, findas as hostilidades, outras plantas crescessem e continuassem a fazer oxigênio, sombra, flores, frutos, perfume, desenhos e poesia.
Mas acontece o seguinte: como imensas florestas já tombaram na luta, dando lugar a amplidões estéreis, o número de árvores em nosso tempo é insignificante. O número de homens, pelo contrário, tornou-se (como dizem) uma verdadeira explosão.
Assim, para dizer tudo em poucas palavras, a vitória dos homens contra as árvores está muito próxima. No ritmo que vamos, em pouco tempo não ficará uma floresta em pé.
Há um único problema: estamos enfrentando agora novos inimigos, aqueles que aparecem quando as árvores morrem: os riachos e os rios estão secando-se de sede, atormentando os homens; os temporais adoidados destroem as plantações, atormentando os homens; os animais desaparecem, atormentando os homens; a terra arrebenta-se e não presta mais para nada, atormentando os homens; o sol queima as sementeiras e castiga toda a criação, atormentando os homens. Em vez de dar música nas ramagens, a ventania dá vento; em lugar de perfume, aspiramos o fumo das máquinas; em troca de poesia, vamos entrando cada vez mais por uma paisagem sem flores, sem pássaros, sem verde. E já estamos sentindo falta de ar.
Superpovoada de homens e despovoada de árvores, a própria Terra, a única que possuímos, chega ao fim e aos poucos morre.
Resultado final: as árvores perdem a guerra e os homens ganham o inferno.
Paulo Mendes Campos
Palestina: o apartheid também é farmacêutico
A Teva Pharmaceuticals, sediada em Israel e globalmente reconhecida como uma das maiores produtoras de genéricos, fabrica diversos medicamentos essenciais, incluindo versões de sais de anfetamina mistos (geralmente comercializados sob o nome comercial Adderall), fluoxetina, ibuprofeno, entre outros. Em 2022, a empresa alcançou um lucro bruto de 6.973 milhões de dólares [33,8 milhões de reais]. Como uma das maiores empresas farmacêuticas do mundo, a Teva opera instalações na América do Norte, Europa, Austrália e América do Sul, com distribuidoras autorizadas como CVS Pharmacy, Walgreens e Wal-Mart. A Teva também é uma das empresas cúmplices na restrição do fornecimento de remédios à Palestina, que aumenta a carga sobre a saúde nos territórios ocupados.
A empresa enfrentou a possibilidade de ser incluída em uma lista negra pela Organização das Nações Unidas por operar em assentamentos ilegais na Cisjordânia. Ativistas palestinos anônimos que trabalham no acesso a medicamentos informaram ao People’s Health Dispatch que a Teva continua sendo um grande fornecedor de medicamentos na Cisjordânia. Outras empresas farmacêuticas que operam na área são a Taro Pharmaceuticals (anteriormente de propriedade israelense, agora de propriedade do fabricante indiano Sun Pharmaceuticals) e a empresa americano-irlandesa Perrigo.
Por outro lado, há seis farmacêuticas palestinas, das quais cinco estão atualmente ativas. Uma está inativa na Faixa de Gaza, devido à guerra e ao bloqueio em curso, o que impede a fabricação de medicamentos. Na Cisjordânia, a Pharmacare, Al-Quds Pharmaceuticals, Birzeit Pharmaceutical Company, Beit-Jala Pharmaceutical Company e Sama Pharmaceuticals conseguem fornecer parte dos medicamentos necessários. Juntas, essas empresas fabricam apenas 50% dos remédios vendidos na Palestina.
O Protocolo de Relações Econômicas, conhecido como Protocolo de Paris, que governa as relações econômicas, dita que Israel controla todas as importações e exportações palestinas por meio de impostos e controle de fronteiras, sujeitos às políticas econômicas israelenses. Essa classificação de “importações” para os medicamentos palestinos destinados a Jerusalém Oriental ocupada restringe sua distribuição a todos os palestinos.
A fabricação de medicamentos palestinos é ainda mais limitada pelo controle de Israel sobre a importação de matérias-primas e equipamentos nos territórios palestinos ocupados. Como resultado, muitos palestinos encontram os medicamentos israelenses a preços mais acessíveis, devido às altas taxas impostas por Israel aos produtos que entram na Cisjordânia. “Portanto, vemos o povo palestino consumir medicamentos israelenses”, disse um especialista palestino em farmacêutica que preferiu permanecer anônimo.
A situação deixa a Faixa de Gaza altamente dependente de organizações humanitárias, como a Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina (UNRWA) para medicamentos. O bloqueio agrava as infecções resistentes a medicamentos, pois os protocolos para combater a condição não podem ser seguidos consistentemente devido ao fornecimento inconsistente de antibióticos.
A indústria farmacêutica também causa estragos na Palestina por meio de violações ambientais e de direitos humanos. Ingredientes farmacêuticos ativos (IFAs) poluíram a água na Palestina por meio de esgoto não tratado nos territórios ocupados, representando riscos tanto para o meio ambiente quanto para a saúde humana – levando à resistência antimicrobiana.
Relatos perturbadores sugerem que o Ministério da Saúde de Israel permitiu que grandes empresas farmacêuticas israelenses testassem produtos em prisioneiros palestinos mantidos em prisões israelenses. Essa alegação, feita pela professora Nadera Shalhoub-Kevorkian e por Mohammad Baraka, chefe do Comitê de Acompanhamento Superior para Árabes em Israel, levanta sérias preocupações éticas. Em 1997, a ex-política israelense Dalia Itzik relatou que mais de 5 mil testes haviam sido realizados nesses prisioneiros.
A recusa das autoridades israelenses em devolver os corpos de vários mártires palestinos, como Fares Baroud, levantou suspeitas de que eles foram submetidos a experimentos médicos. Em 2015, Riyad Mansour, embaixador palestino nas Nações Unidas, acusou as autoridades israelenses de retirar órgãos de corpos palestinos, possivelmente para experimentos médica – uma acusação que continua sendo feita durante o auge do conflito atual.
Israel é obrigado pela 4ª Convenção de Genebra (artigos 50, 55 e 56) a garantir o fornecimento adequado de suprimentos médicos na Palestina. No entanto, um ativista anônimo que falou com o People’s Health Dispatch afirmou que, durante conflitos, as farmacêuticas israelenses reduzem o fornecimento de medicamentos na Cisjordânia para fortalecer as reservas de medicamentos de Israel. Em Gaza, a capacidade de receber medicamentos externos é gravemente afetada pela guerra, o que significa que muitos pacientes não recebem as doses necessárias ou outras formas de cuidados de saúde.
As mesmas empresas farmacêuticas israelenses que exploram a situação nos territórios palestinos ocupados se beneficiam das políticas e incentivos fiscais dos EUA através de múltiplas vias. Ao mesmo tempo, os palestinos não recebem ajuda significativa dos EUA. Na verdade, o apoio dos EUA a essa ocupação insidiosa nega à Palestina a capacidade de prosperar. Até o momento, muito poucos políticos norte-americanos apoiaram um cessar-fogo, muitos permanecem em silêncio e vários políticos de alto perfil prometeram apoio a Israel.
A Teva Pharmaceuticals recebeu milhões de dólares em créditos fiscais e descontos de estados dos EUA ao longo dos anos. Tais subsídios são comuns nos país, uma vez que os governos estaduais fornecem benefícios fiscais para as empresas operarem no seu território. Os subsídios permitiram que a Teva obtivesse lucros maiores. A empresa anteriormente controlada por israelenses, Taro Pharmaceuticals, também se beneficiou das políticas de fabricantes de medicamentos dos EUA.
A influência da indústria farmacêutica se estende à exploração de políticas, como a reformulação de medicamentos sob a Lei de Medicamentos Órfãos [para doenças raras], permitindo que as empresas se beneficiem de créditos fiscais e exclusividade de mercado por sete anos. Isso pode resultar em preços exorbitantes de medicamentos. Por exemplo, antes de ser adquirida pela Sun Pharmaceuticals, a Taro comprou o Daranide, um medicamento para glaucoma, e o reformulou sob a Lei de Medicamentos Órfãos. O Daranide costumava custar cerca de 50 dólares por frasco, mas disparou para mais de 13 mil dólares após a reformulação. Da mesma forma, a Immunity Pharma Ltd, outra farmacêutica israelense, teve seu tratamento para esclerose lateral amiotrófica (ELA) designado como medicamento órfão.
As ações da Big Pharma estabelecem um precedente para outras indústrias conduzirem negócios às custas das vidas palestinas. Enquanto a Palestina estiver ocupada, sua indústria farmacêutica e economia nunca florescerão completamente. Para que a saúde prospere, a Palestina deve ser libertada.
A empresa enfrentou a possibilidade de ser incluída em uma lista negra pela Organização das Nações Unidas por operar em assentamentos ilegais na Cisjordânia. Ativistas palestinos anônimos que trabalham no acesso a medicamentos informaram ao People’s Health Dispatch que a Teva continua sendo um grande fornecedor de medicamentos na Cisjordânia. Outras empresas farmacêuticas que operam na área são a Taro Pharmaceuticals (anteriormente de propriedade israelense, agora de propriedade do fabricante indiano Sun Pharmaceuticals) e a empresa americano-irlandesa Perrigo.
Por outro lado, há seis farmacêuticas palestinas, das quais cinco estão atualmente ativas. Uma está inativa na Faixa de Gaza, devido à guerra e ao bloqueio em curso, o que impede a fabricação de medicamentos. Na Cisjordânia, a Pharmacare, Al-Quds Pharmaceuticals, Birzeit Pharmaceutical Company, Beit-Jala Pharmaceutical Company e Sama Pharmaceuticals conseguem fornecer parte dos medicamentos necessários. Juntas, essas empresas fabricam apenas 50% dos remédios vendidos na Palestina.
O Protocolo de Relações Econômicas, conhecido como Protocolo de Paris, que governa as relações econômicas, dita que Israel controla todas as importações e exportações palestinas por meio de impostos e controle de fronteiras, sujeitos às políticas econômicas israelenses. Essa classificação de “importações” para os medicamentos palestinos destinados a Jerusalém Oriental ocupada restringe sua distribuição a todos os palestinos.
A fabricação de medicamentos palestinos é ainda mais limitada pelo controle de Israel sobre a importação de matérias-primas e equipamentos nos territórios palestinos ocupados. Como resultado, muitos palestinos encontram os medicamentos israelenses a preços mais acessíveis, devido às altas taxas impostas por Israel aos produtos que entram na Cisjordânia. “Portanto, vemos o povo palestino consumir medicamentos israelenses”, disse um especialista palestino em farmacêutica que preferiu permanecer anônimo.
A situação deixa a Faixa de Gaza altamente dependente de organizações humanitárias, como a Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina (UNRWA) para medicamentos. O bloqueio agrava as infecções resistentes a medicamentos, pois os protocolos para combater a condição não podem ser seguidos consistentemente devido ao fornecimento inconsistente de antibióticos.
A indústria farmacêutica também causa estragos na Palestina por meio de violações ambientais e de direitos humanos. Ingredientes farmacêuticos ativos (IFAs) poluíram a água na Palestina por meio de esgoto não tratado nos territórios ocupados, representando riscos tanto para o meio ambiente quanto para a saúde humana – levando à resistência antimicrobiana.
Relatos perturbadores sugerem que o Ministério da Saúde de Israel permitiu que grandes empresas farmacêuticas israelenses testassem produtos em prisioneiros palestinos mantidos em prisões israelenses. Essa alegação, feita pela professora Nadera Shalhoub-Kevorkian e por Mohammad Baraka, chefe do Comitê de Acompanhamento Superior para Árabes em Israel, levanta sérias preocupações éticas. Em 1997, a ex-política israelense Dalia Itzik relatou que mais de 5 mil testes haviam sido realizados nesses prisioneiros.
A recusa das autoridades israelenses em devolver os corpos de vários mártires palestinos, como Fares Baroud, levantou suspeitas de que eles foram submetidos a experimentos médicos. Em 2015, Riyad Mansour, embaixador palestino nas Nações Unidas, acusou as autoridades israelenses de retirar órgãos de corpos palestinos, possivelmente para experimentos médica – uma acusação que continua sendo feita durante o auge do conflito atual.
Israel é obrigado pela 4ª Convenção de Genebra (artigos 50, 55 e 56) a garantir o fornecimento adequado de suprimentos médicos na Palestina. No entanto, um ativista anônimo que falou com o People’s Health Dispatch afirmou que, durante conflitos, as farmacêuticas israelenses reduzem o fornecimento de medicamentos na Cisjordânia para fortalecer as reservas de medicamentos de Israel. Em Gaza, a capacidade de receber medicamentos externos é gravemente afetada pela guerra, o que significa que muitos pacientes não recebem as doses necessárias ou outras formas de cuidados de saúde.
As mesmas empresas farmacêuticas israelenses que exploram a situação nos territórios palestinos ocupados se beneficiam das políticas e incentivos fiscais dos EUA através de múltiplas vias. Ao mesmo tempo, os palestinos não recebem ajuda significativa dos EUA. Na verdade, o apoio dos EUA a essa ocupação insidiosa nega à Palestina a capacidade de prosperar. Até o momento, muito poucos políticos norte-americanos apoiaram um cessar-fogo, muitos permanecem em silêncio e vários políticos de alto perfil prometeram apoio a Israel.
A Teva Pharmaceuticals recebeu milhões de dólares em créditos fiscais e descontos de estados dos EUA ao longo dos anos. Tais subsídios são comuns nos país, uma vez que os governos estaduais fornecem benefícios fiscais para as empresas operarem no seu território. Os subsídios permitiram que a Teva obtivesse lucros maiores. A empresa anteriormente controlada por israelenses, Taro Pharmaceuticals, também se beneficiou das políticas de fabricantes de medicamentos dos EUA.
A influência da indústria farmacêutica se estende à exploração de políticas, como a reformulação de medicamentos sob a Lei de Medicamentos Órfãos [para doenças raras], permitindo que as empresas se beneficiem de créditos fiscais e exclusividade de mercado por sete anos. Isso pode resultar em preços exorbitantes de medicamentos. Por exemplo, antes de ser adquirida pela Sun Pharmaceuticals, a Taro comprou o Daranide, um medicamento para glaucoma, e o reformulou sob a Lei de Medicamentos Órfãos. O Daranide costumava custar cerca de 50 dólares por frasco, mas disparou para mais de 13 mil dólares após a reformulação. Da mesma forma, a Immunity Pharma Ltd, outra farmacêutica israelense, teve seu tratamento para esclerose lateral amiotrófica (ELA) designado como medicamento órfão.
As ações da Big Pharma estabelecem um precedente para outras indústrias conduzirem negócios às custas das vidas palestinas. Enquanto a Palestina estiver ocupada, sua indústria farmacêutica e economia nunca florescerão completamente. Para que a saúde prospere, a Palestina deve ser libertada.
Candice Choo-Kang, no People’s Health Dispatch
Os ombros não suportam mais o mundo
Pouco importa, venha a velhice, que é a velhice?Teus ombros suportam o mundo, e ele não pesa mais que amão de uma criançaCarlos Drummond de Andrade, em “Os Ombros Suportam o Mundo”
Outro dia, num banco debaixo do meu prédio, degustando o prazer e maléfico desbenefício de um cigarro — por incrível que pareça chamado Harmony (?), observava uma só formiga levando sobre seus ombros uma flor maior que ela. Parecia alegre e penosa, mas executava seu trabalho comunitário. Ela carregava nos ombros seu mundo!
E nós, humanos, ao contrário do que diz o verso drummoniano, “os ombros suportam o mundo”, deixamos nesse nosso tempo presente a intrigante pergunta: os homens suportam hoje a realidade mundana, tanto a externa, factual, quanto a interna, psíquica?
As guerras; a revolta da natureza ferida; a política mercenária e perversa; o ódio predominante entre as disputas de poder; as famílias desorientadas sem parâmetro ético; a falta de instituições que não são mais referências de identificação aos jovens; a Justiça partidária e os governos extremistas tanto à direita quanto esquerda; todos estes são fenômenos humanos (será que humanos de fato?) pesados demais para que nossos ombros suportem. Daí o abandono, a angústia e a ausência de acolhimento, gerando patologias do pânico, depressões e ideações suicidas num percentual nunca visto.
As fibras musculares dão lugar a uma “fibromialgia coletiva”. Salienta nosso poeta maior, quando inicia seu poema quando afirma: “Chega um tempo em que não se diz mais: ‘meu Deus…’/Tempo em que não se diz mais: ‘meu amor’/Porque o amor resultou inútil/ E os olhos não choram… /E o coração está seco”.
Contudo, aquela formiguinha que citei no início do texto caminhava tranquila, por amor à comunidade e afeto aos seus familiares. Por uma função social que os homens da pós-modernidade aposentaram. A beleza da flor avermelhada sendo carregada emanava um sentimento de cooperação, de trabalho coletivo, e mais, de uma atitude que caiu de moda — a compaixão!
O “social-ismo” está perdendo cada vez mais para o “narci-sismo” patológico, onde o ter, a ânsia pelo poder, o dominar e o escravizar podem proporcionar momentos de prazer. Prazer esse que, no entanto, termina em desprazer, pois o “social-capitalismo” deixa a marca do vazio existencial e da depressão.
Os ombros não estão mais suportando esse mundo atual. Dia após dia, o corpo está definhando, e a alma, sofrendo. Parece que não se tem mais força para reagir, a não ser os gritos, rebanhos de gente nas ruas, sem força nos músculos da fonação para dizer: “Ai, meu Deus!”.
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