quinta-feira, 16 de setembro de 2021

Democracia da jabuticaba

Novo relatório da Reforma Administrativa apresentado hoje pelo Dep. Arthur Maia traz incontáveis retrocessos anulando qualquer impacto fiscal e incluindo inúmeras concessões às corporações. Repito, estamos numa Democracia Jabuticaba Brasileira!
Salim Mattar, ex-secretário de Desestatização do governo de Jair Bolsonaro

Você banca Bolsonaro e não chia

Não olhe agora, mas Jair Bolsonaro, como se não bastasse, vive às custas de você desde 1973. Foi quando, aos 18 anos, ele entrou para o Exército e, como todo soldado, passou a ganhar o soldo que sustenta os militares, extraído dos nossos impostos. Enxotado da força em 1988, transferiu-se para o outro lado da vida mansa, a política. Elegeu-se vereador em 1989 e deputado federal em 1991, ambos pelo Rio, e, durante 30 anos de mamata —nunca tapou um buraco ou aprovou um projeto—, construiu notável patrimônio imobiliário.

E não apenas com seu salário e infinitos benefícios parlamentares —um deles, apartamento pago em Brasília, que ele nunca dispensou mesmo tendo imóveis lá, e que usou para “comer gente” (mulheres, presume-se). Donde você pagou por cada bimba que Bolsonaro levou para a cama no período. Não contente, Bolsonaro elegeu três filhos para eternizar a quadrilha e, entre ex-mulheres, vigaristas e laranjas, todos parentes entre si, empregou 102 pessoas, de quem, dizem, ele e os seus extorquiam 80% do salário. Dinheiro este igualmente drenado dos impostos que você deixou na fonte.


Presidente desde 2019, Bolsonaro usa todos os dias de seu mandato para nunca mais passar a faixa, e tudo pago por você. Ponha nisso a compra de políticos, PMs e juízes e as já quase mil viagens de campanha pelo país, o que exige o deslocamento da equipe que prepara sua chegada e estadia, comitiva pessoal, convidados e, por baixo, cem seguranças (aqueles sujeitos de terno mal cortado e óculos escuros, olhando para os lados, que se veem ao seu redor). Você paga por tudo isso e não chia. Paga também pela gasolina que alimenta os aviões, motos e lanchas que ele cavalga.

Ciente de que não se reelegerá, Bolsonaro precisa agora de um golpe —cujas tentativas é você também quem banca.

Um dia, Bolsonaro será preso e terá sua cadeia igualmente custeada por nós. Aí, sim.

Você foi o garçom no jantar que comemorou o acordão

O jantar comemorativo do acordão costurado pelo ex-presidente Michel Temer, que conseguiu mais uma vez manter isso aí, viu, teve como anfitrião o senhor Naji Nahas, que quebrou a Bolsa do Rio de Janeiro em 1989, acusado de comandar um esquema especulativo que usava mais de 100 laranjas para inflar os preços de ações que eram do seu interesse. O americano Bernard Madoff morreu na cadeia, com o nome enxovalhado depois que a sua bilionária pirâmide financeira desabou; o libanês-brasileiro Naji Nahas será enterrado em túmulo esplêndido, pranteado por poderosos brasileiros que com ele dividiram mesa para salvar o Brasil da honestidade e da decência.


Engana-se quem pensa que foi Jair Bolsonaro que foi feito de bobo no jantar que teve como sobremesa uma imitação do presidente da República feita por um jovem humorista, filho de um velho de guerra. Os brasileiros é que, mais uma vez, foram feitos de bobos: o acordão que salvou a pele do atual presidente da República, a pretexto de nos preservar de uma crise institucional, como se crise já não houvesse, prolonga a tragédia de um país que hoje tem renda per capita menor do que a da República Dominicana, terá perdido 600 mil vidas por causa da pandemia e conta com uma massa de desempregados e miseráveis jamais vista. Prolonga porque, para além de continuarmos a ter de suportar um energúmeno no Palácio do Planalto, a permanência de Jair Bolsonaro abre uma avenida para Lula ser eleito presidente da República em 2022, enquanto João Doria rebola na avenida Paulista, para meia dúzia de gatos pingados que se acham muito politizados ao chamar Bolsonaro de “corno”.

Com Lula, se tudo der certo, teremos um crescimento medíocre, numa casa minha vida que não tinha teto, não tinha nada, com crediários a perder de vista e um economista como Marcio Pochmann no comando do espetáculo. O sujeito quer reprisar o Brasil de “projetos grandiosos”, que nunca teve final feliz, e acha que o país tem de conquistar o “espaço sideral” para sair do atoleiro. Ele disse isto ontem, em entrevista ao UOL: “Brasil não tem GPS. Como podemos dizer que Brasil é país autônomo quanto todo o seu sistema de informação e comunicação vinculado ao espaço sideral, portanto à internet, depende de empresas que não são brasileiras?”. Estaremos perdidos também no espaço, depois de furarmos o teto com fogos de artifício.

A tragédia brasileira já está com a próxima temporada contratada, e a outra, e a outra. Quem ganha com ela é esse tipo de gente que se reuniu na casa do probo Naji Nahas, para festejar o acordão. Gente que quer o povo brasileiro apenas uniformizado de garçom, para lhe servir vinhos de 30 mil reais a garrafa — escolhidos por um especulador e pagos sempre pelo garçom.

Você é o garçom.

Por que julgamos mais duramente as decisões dos pobres

“Para vocês seria porcaria, para estes pais não era porcaria. Quando falam assim, não me ofendem, ofendem a eles.” Quando Isabel Díaz Ayuso, presidente da Comunidade de Madri, defendeu com essas palavras os menus da Telepizza para crianças vulneráveis, talvez o debate subjacente não fosse sobre a qualidade dos alimentos. Porque os especialistas não tinham dúvidas. Um estudo recentemente divulgado pela Universidade Harvard mostra que talvez o debate não fosse, na realidade, sobre o que consideramos aceitável para famílias pobres. Esse limite do aceitável é mais baixo para pessoas com menos recursos? Pesquisadoras da universidade dos EUA queriam responder a essa pergunta e as conclusões de seu trabalho são reveladoras: “Temos um padrão duplo preocupante”.


Por meio de 11 experimentos, as pesquisadoras mostram que pessoas de baixa renda são julgadas de modo mais negativo por consumirem os mesmos itens do que outras com renda mais alta, o que acrescenta uma pressão social extra às restrições materiais que já enfrentam. Mas não é por terem menos para gastar, mas porque se considera que suas despesas deveriam ser mais parcimoniosas. “Descartamos a explicação de que pessoas com renda mais alta podem consumir socialmente mais simplesmente porque podem pagar mais; pelo contrário, observamos que para as pessoas de baixa renda se considera socialmente que tenham de consumir menos porque se supõe que necessitam de menos”, diz Serena Hagerty, principal autora do artigo. Segundo Hagerty, o estudo revela que as necessidades básicas têm que ser mais básicas para os pobres.

Em um dos testes, a história de Joe é apresentada a dois grupos diferentes: para um, esse personagem tem baixa renda, para outro, tem uma boa renda. Joe ganhou 200 dólares (1.070 reais) em um sorteio, tudo bem se gastar o dinheiro em uma nova televisão? Se Joe é de baixa renda, isso é muito mais malvisto do que se tem um bom padrão de vida. Curiosamente, há um terceiro grupo, o de controle, ao qual não se conta nada sobre a situação financeira de Joe. Para este grupo, é tão admissível que o Joe neutro compre a TV como para o grupo do Joe rico. Só é malvisto pelo que tem como referência o Joe pobre.

À medida que o estudo, publicado na PNAS, vai mais fundo, os experimentos se tornam mais complexos para delinear melhor os mecanismos pelos quais as pessoas são julgadas de acordo com seus recursos. Por exemplo, em outro teste a pergunta é que cartão-presente dariam ao Joe pobre ou ao Joe rico, um de 100 dólares para comprar comida ou outro de 200 dólares para uma TV? O pobre Joe recebe principalmente o cartão da comida, enquanto o Joe rico ganha o que lhe permite comprar uma TV, ou seja, o dobro do dinheiro. No cômputo final, em média, o Joe pobre recebe 125 dólares e o rico, 152. Ou seja, mesmo quando se trata de um presente, quem tem mais, merece mais, e quem tem menos, ganha um presente inferior. Mesmo que saibam que Joe disse expressamente que gostaria de uma nova TV, os participantes do estudo dão muito menos TVs ao Joe pobre do que ao rico.

“Uma implicação desse duplo padrão é que as pessoas parecem mais confortáveis dirigindo e limitando as decisões de gastos dos pobres”, resume Hagerty. Este estudo é muito revelador no contexto atual, como indicam essas pesquisadoras, em que se discute a promoção da renda mínima em países como a Espanha. “Uma crítica potencial à renda vital mínima pode ser que as pessoas de baixa renda gastarão o dinheiro em coisas erradas”, diz Hagerty sobre o caso espanhol. “No entanto, é provável que esse medo resulte em primeiro lugar de uma visão limitada de quais produtos são considerados ‘necessários’ para pessoas de baixa renda”, diz ela.

É algo claro em outro de seus experimentos, como o que mostra 20 objetos de consumo cotidiano que uma família poderia comprar: jornais, móveis, relógios, computadores, equipamentos esportivos, etc. Em todos é mais malvista sua compra por uma família de baixa renda, exceto em um item: produtos de higiene corporal. Com essa mesma abordagem propuseram 20 critérios a serem levados em consideração por uma família que procure uma nova casa: garagem, ar-condicionado, bairro barulhento, proximidade de áreas de lazer, etc. A aquisição de todos esses itens é mais malvista quando se considera uma família de baixa renda, exceto em dois deles: que a casa esteja perto de um supermercado e do transporte público. O mais revelador é que se considera supérfluo que uma família pobre procure uma casa perto de um hospital ou em um bairro seguro, o que implica que, mesmo com pouca renda, até buscar segurança é considerado um capricho desnecessário.

A segurança como um luxo para famílias sem recursos também aparece em outro experimento do estudo, no qual se propõe a compra de um carro com um sistema de câmera traseira. Mesmo quando se explica aos participantes que é um item adicional importante para a segurança do veículo, isso é considerado menos necessário para uma família de poucos recursos. É malvisto que os pobres comprem um objeto que para os ricos é fundamental para sua segurança. De novo, não é que o rico tenha mais condição, é que os vulneráveis não merecem tanto, mesmo que esteja em jogo sua saúde.

“A principal contribuição deste estudo é que definimos as necessidades a partir dos recursos que as pessoas têm, porque o que definimos como necessário ou supérfluo muda de acordo com a renda da pessoa”, afirma o economista Luis Miller, pesquisador do CSIC. E acrescenta: “Isso tem implicações importantes, sobretudo no que chamamos de armadilha da pobreza, esse círculo vicioso que nega os recursos necessários para se ter acesso a mais recursos”.

Quando alguém critica um sem-teto ou um refugiado por ter um smartphone é porque isso é considerado um capricho desnecessário, embora para todos seja uma ferramenta imprescindível para nos relacionarmos com nossos familiares, empregadores ou clientes. Sem esse tipo de recurso, é impossível romper o círculo de que Miller fala: sem uma casa, chuveiro, telefone celular etc., é impossível conseguir um emprego que permita sair da armadilha da pobreza.

“Há a ideia de que, se você ajuda uma família, faz com que ela trabalhe menos. Um projeto de monitoramento analisou isso, e não é assim”, disse recentemente Esther Duflo, ganhadora do Prêmio Nobel de Economia. “Isso não os torna mais preguiçosos, como também lhes proporciona o bem-estar e a segurança que os tornam mais produtivos “. Todas as pessoas precisam sair da “visão de túnel” imposta pelas carências, essas penúrias que as impedem de tomar decisões calmas, como explicaram Sendhil Mullainathan e Eldar Shafir em seu livro Escassez: uma nova forma de pensar a falta de recursos na vida das pessoas e nas organizações (Editora Best Business): “A escassez arrebata nossa atenção e Isso nos proporciona um benefício muito estreito: temos um desempenho melhor ao nos ocuparmos das necessidades mais prementes. Mas, de modo mais amplo, pagamos um custo: negligenciamos outros assuntos e somos menos eficientes no resto de nossos afazeres cotidianos”. Dar uma TV ao Joe pobre talvez lhe proporcione um estímulo emocional que lhe permita acordar mais animado pela manhã. Ou não. Mas, em geral, pensamos que ele deveria se contentar com o que tem e se concentrar em comprar o imprescindível para subsistir.

Miller acredita que esses mecanismos ocorrem na Espanha de uma maneira mais sutil, porque lá as pesquisas mostram claras preferências pela redistribuição e não há com tanto peso “a figura do libertário dos EUA, aquele que diz que cada um tem o que merece”. E acrescenta: “Aqui esses mecanismos têm mais a ver com a necessidade de nos diferenciarmos dos pobres”. Segundo explica Hagerty por e-mail, a renda dos participantes do estudo não influenciou em suas opiniões: independentemente de sua renda, todos reduziam o círculo das compras aceitáveis para o Joe pobre, mesmo que pusessem em risco sua saúde, como uma cadeirinha para as crianças no carro, um bairro sem criminalidade ou acesso próximo a um posto de saúde, que são vistos quase como caprichos somente quando a pessoa tem pouca renda. “O fato de darmos menos margem de manobra às decisões dos economicamente desfavorecidos parece expressar noções mais básicas de mérito e autonomia”, diz a pesquisadora.

Voltando ao menu da Telepizza, Hagerty tem uma resposta clara à luz de seu trabalho: “Essa visão parcial da necessidade também pode explicar por que deram comida porcaria às crianças de baixa renda [em Madri], quando a mesma comida pode não ser adequada para crianças de alta renda”. E ela ressalta que suas descobertas sugerem que debates como esse estão na realidade fazendo duas perguntas diferentes que terão duas respostas substancialmente diferentes: O acesso a alimentos saudáveis é necessário? O acesso a alimentos saudáveis é necessário para as pessoas de baixa renda? “Isso precisa ser levado em consideração no debate político: como são feitas as perguntas relevantes em política e que preconceitos implícitos podem influir nas respostas?”.

Brasil do bem comemora desgraça

 


Inconstitucionalissimamente

Menino, aprendi que esta seria a maior palavra da língua portuguesa. Ao crescer, foi curioso constatar que os “palavrões” eram curtos e careciam de explicação. O inconstitucionalissimamente, porém, exigia um habitual legalismo — uma tintura de “classe” — para ser entendido. O pior é vê-lo em prática, ao vivo e em cores, pelo supremo mandatário da nação!

Para ser inconstitucional, há que, primeiro, ser constitucional. Mandamentos codificam pecados, mas as redundantes falsidades políticas são reguladas por Constituições que governam governos.

Num regime de igualdade de todos perante a lei, há também imperativo: a fidelidade ao cargo e ao programa eleitoral. A eleição é um contrato coletivo a cumprir, jamais a sabotar.


Constituir é ordenar. Um leão é símbolo da realeza porque a realeza precisa do constitucionalismo inato e fixo da fera. Um rei está para um leão, assim como a altivez e a fidelidade constitucional da fera estariam para o rei.

Foi Deus inconstitucional quando nos puniu com o dilúvio? É um caso para teólogos. Bolsonaro não é o primeiro. Pois, quando um rei trai ou abandona seu reino, como foi o caso da fuga da Corte lusa para o Brasil, há uma violenta inconstitucionalidade. A fuga de quem personificava o povo tem consequências práticas, políticas, econômicas, religiosas e morais — ou melhor, imorais para os portugueses abandonados por seu sagrado rei.

O palavrão jurídico me fez descobrir que insultos sem remédio são claros; do mesmo modo que um presidente constitucionalmente eleito que abusa dos privilégios e do imenso simbolismo do seu cargo para subvertê-lo em nome de coisa alguma atua inconstitucionalissimamente.

Bolsonaro, ao fazer cabo de guerra com o STF e o TSE, produz uma insegurança que, num mundo globalizado, pode arruinar o Brasil. Tem de ser detido ou banido do papel por — como tenho afirmado aqui — incapacidade e recusa a desempenhá-lo com o devido respeito e a obrigatória compostura demandados pelo cargo.

Em sistemas eleitorais meritocráticos e competitivos, a renúncia à Presidência é um trauma, que vivemos na triste figura de Jânio Quadros, em 25 de agosto de 1961 — quando eu, moço, realizava trabalho de campo entre os índios gaviões numa desconhecida Amazônia paraense, e os ministros militares impediram a posse do vice-presidente João Goulart, houve um procedimento inconstitucional. Romperam deliberadamente com a Constituição e introduziram um desvio pela força das armas, abandonando o campo legal-burocrático. Um “você sabe com quem está falando?” dado contra o Brasil.

O golpe é um desfecho quando dois princípios entram em choque. Um deles é “constitucional” — se morre o rei, ele é sucedido por um descendente; se o presidente abdica pela maluquice das “forças ocultas”, o vice-presidente assume o cargo. Foi exatamente isso que ocorreu em novembro de 1963, quando John Kennedy foi assassinado. A viela do golpe é a distorção de um critério constitucional, algo plausível nesta sociedade em que seguir normas é sinal de inferioridade.

Tal viés é uma sedução para ser o dono absoluto do poder. E para não aceitar a interdependência de Poderes de natureza diversa, essa essência do regime republicano. Por isso, corremos o risco de desmontar a República quando o presidente usa um “você sabe com quem está falando?” representado pela massa convocada a participar de um teatro de traição, que, felizmente, virou um blefe.

As reações ao comício golpista do dia 7 foram, digamos, cavalheirescas. Destaco como mais duras as dos ministros Fux e Barroso, diretamente ofendidos. Barroso, ademais, acentuou tanto a falta de compostura quanto a irracionalidade que um presidente eleito usa para desmoralizar o papel que desempenha.

É triste ver tanta gente golpeando um regime democrático tão duramente conquistado nesta terra de nanobarões.

P.S.: A mediação pessoal, esse ponto-chave dos sistemas republicano-familísticos, esvaziou — graças ao generoso viés poético-político do ex-presidente Michel Temer — o mal-estar do comício golpista. No Brasil, a “ação entre amigos” é, como diria Enylton de Sá Rego, o emplastro de Brás Cubas...

A covardia do pseudo macho alfa

Nada politicamente correto. Nada de bom remete a Bolsonaro. Por mais que me esforce, só vêm à mente palavras chulas, expressões torpes. Não ouso definir o modo de ser Bolsonaro, biltre que permitimos chegar à Presidência da República. Mas há uma expressão que se encaixa perfeitamente ao atual momento de capitão do mato: covarde.

Em meio à pandemia, à fome, à miséria e ao crescimento da inflação e do desemprego, Bolsonaro destinou hoje R$ 100 milhões para “o primeiro imóvel” de policiais de todas as variantes e gradações. Em suas alucinações golpistas, o capitão quer agradar aqueles que pode recrutar para protegê-lo ou assombrar as ruas.

Covarde. Bolsonaro está acuado, sabe que o cerco está se fechando. Ele, seus filhos e ex-mulher correm risco de ver escancarados escândalos de corrupção, bandeira molambenta do capitão. A CPI da Covid vai exibir mensagens sobre estreitas relações entre o lobista mór da Precisa Medicamentos, Marconny Albernaz de Faria, e boa parte da família do presidente.

Há muito mais. Novos fatos serão revelados pela CPI, e outros agentes (ex-funcionário da família falou até em traição de Ana Cristina com um bombeiro, ainda casada com Jair). Seu líder na Câmara, Ricardo Barros, enrolado até o pescoço com a Precisa e outras tramoias do Ministério da Saúde, contou com o silêncio de Bolsonaro. Crime de prevaricação.

Bolsonaro está acuado. Depois de atacar ferozmente o STF, rastejou pela Praça dos Três Poderes e publicou carta de desculpas, redigida com a caneta golpista de Temer. O arrego (ou seja lá o que for) provocou um barata voa entre seus seguidores. Estão procurando até agora o pseudo macho alfa que chamou Alexandre de Moraes de “canalha”, do alto de um palanque na avenida Paulista.

O rescaldo não podia ser pior. Segundo Índice de Popularidade Digital, medido pela Quaest e publicado pela Folha de SPaulo, a nota de Bolsonaro empurrou sua popularidade ladeira abaixo. Saiu de 81,8 pontos, após a verborragia do dia 7, e bateu 37,1 pontos, no dia 10, pior marca de 2021.

Não deu pra comemorar o fiasco do MBL. Fracasso retumbante em prol da chamada terceira via, a manifestação quis comparar Bolsonaro a Lula. Discurso repetido pelos nossos colunistas de plantão. Que perda de tempo! Nos palanques, ex-bolsonaristas, oportunistas de carteirinha. Tão covardes quanto. Tão pseudo machos alfa.
Mirian Guaraciaba

Como funciona o golpe de Bolsonaro

No golpe de Jair Bolsonaro, as instituições seguem funcionando sem funcionar contra ele. Uma Suprema Corte que, em vez de cumprir a Constituição quando o presidente a afronta em praça pública, faz mais um discurso. Uma Câmara de Deputados cujo presidente, Arthur Lira, está sentado sobre 130 pedidos de impeachment porque Bolsonaro garante a ele e a sua turma dinheiro público à vontade. Uma Procuradoria-Geral da República cujo procurador-geral, Augusto Aras, é um colaboracionista que espera ser premiado por Bolsonaro com uma cadeira no Supremo. Para que ter o trabalho de promover cenas de golpe clássico, que chamam a atenção do mundo, se é mais efetivo contar com a covardia de uns e a corrupção de outros?

O golpe usado por Bolsonaro desde que assumiu o poder, em 2019, é o da corrosão por dentro. Bem semelhante ao que sua base na Amazônia fazia ao desmatar a floresta quando ainda havia fiscalização. Em vez de fazer o que se chama de corte raso, aquele em que tudo é derrubado e vira terra arrasada —um similar aos tanques nas ruas ou aos caminhões arrebentando as portas do Supremo Tribunal Federal—, a opção é derrubar apenas as árvores nobres e manter a cobertura florestal intacta na aparência. Quem olha por cima, de um helicóptero, por exemplo, ou de uma aeronave pequena, só enxerga verde, mas por baixo a floresta está totalmente degradada. Ou, usando um exemplo urbano, mais familiar à maioria, Bolsonaro está fazendo da democracia o mesmo que acontece com alguns prédios antigos, em que a fachada neoclássica é mantida, mas o miolo foi colocado abaixo.

Bolsonaro já tinha aplicado estratégia semelhante com o Ministério do Meio Ambiente. Antes de assumir o poder, em 2018, lançou a notícia de que seu Governo não teria Ministério do Meio Ambiente. Era uma espécie de boi de piranha. Protestos surgiram de todos os lados. Ele então manteve o ministério, simulando acatar o clamor global, e colocou como ministro Ricardo Salles, um condenado por crime ambiental que promoveu a maior devassa da história da pasta, responsável pelo aumento do desmatamento e dos fogos na Amazônia. O mesmo acontece agora. Bolsonaro incita seus seguidores a se insurgir contra as instituições e especialmente contra o Supremo, mas descobre que vale mais a pena deixar funcionando o que não funciona contra ele.

Se em plena avenida Paulista, em manifestação convocada por ele no feriado de 7 de Setembro, Bolsonaro afirmou que não cumpriria decisões do Supremo Tribunal Federal e saiu impune, as instituições já dobraram os joelhos. Discurso “duro”, como fez Luiz Fux, o presidente do Supremo que depois andou por aí confraternizando com empresários golpistas, qualquer um faz. Eu mesma faço facilmente. Do Supremo se espera que faça valer a Constituição. Se não faz, já era. Bolsonaro testou e venceu. Rasgou a Constituição na Paulista e nada aconteceu. Mais uma vez, Bolsonaro pôde contar com a impunidade que o tornou presidente apesar de sua longa sequência de crimes contra o país.



Tem muita gente empenhada em dar uma aparência decente ao que aconteceu no pós-7 de Setembro. Mas o que aconteceu foi um golpe na democracia e uma vergonha do tipo vexame máximo. De uma Câmara de Deputados liderada por Arthur Lira, que vai chantagear Bolsonaro com o impeachment até não sobrar um real nos cofres públicos, nada se esperava. De Augusto Aras, o envergonhador-geral da República, também já nada se espera. Pelo menos não enquanto ele achar que tem chance de ser recompensado com uma cadeira no STF por sua traição aos princípios que criaram o Ministério Público Federal.

A tragédia que conta a destruição de uma democracia que nunca chegou aos mais pobres ganhou tons de comédia com a carta assinada por Bolsonaro dias depois, mas escrita pelo ex-presidente Michel Temer (MDB), aquele que, por sua vez, deu o golpe em Dilma Rousseff (PT). Na carta, Bolsonaro-Temer, a nova criatura missivista, dizia mais ou menos o seguinte: “Desculpa aí, pessoal. Me empolguei”.

Ávidos por seguir lucrando com Bolsonaro, políticos e empresários concluíram ao ler a carta que o presidente tinha subitamente se convertido em estadista. A maior parte dessa gente que chamam de “PIB do Brasil” são uns cretinos tão sem caráter que não consegui encontrar nenhuma palavra disponível no dicionário capaz de abarcar a grandiosidade de sua decadência. E, assim, no último domingo, uma manifestação de oposição botou apenas 6.000 pessoas na mesma avenida em que Bolsonaro tinha colocado 125.000 dias antes. Organizada pela direita e por aqueles que decidiram que agora são centro, grandes responsáveis pela ascensão de Bolsonaro ao poder, o protesto foi boicotado pelo PT, partido de Lula, e pela maior parte da esquerda. Resultado: não vingou, e os bolsonaristas rolaram de rir, no que não lhes tiro a razão. O presidente rasga a Constituição e toda a oposição que o Brasil consegue colocar nas ruas na primeira manifestação de oposição que se segue, e isso na maior cidade do país, são 6.000 gatos pingados.

É duro para a esquerda apoiar movimentos de direita que lideraram as manifestações pelo impeachment de Dilma Rousseff . No caso da milícia digital chamada Movimento Brasil Livre, que no momento tenta fazer um greenwashing, é ainda mais difícil, já que o MBL destruiu reputações usando fake news, fechou exposições de arte e colocou artistas em risco de vida ao usá-los para açular seus seguidores. É duro, mas é o que temos para o momento. Sem o impeachment de Bolsonaro, não há nem como discutir divergências de fundo —ou mesmo de raso. Todo o noticiário, as ações e os debates públicos e privados foram sequestrados pelo bolsonarismo. Nada de importante se faz ou se discute no país desde que ele assumiu e, principalmente, neste último ano. Mas a destruição da legislação ambiental e dos direitos humanos e trabalhistas, ao contrário, avança velozmente.

É claro que não é apenas por exigência de companhias de mais qualidade e por bons princípios que grande parte da esquerda se recusa a se misturar com a direita nas ruas. Parte do PT e aqueles que apoiam a candidatura de Lula já calcularam que as chances de o ex-presidente ganhar em 2022 são maiores se a disputa for com Bolsonaro. Tem gente que chama isso de estratégia política, eu acho só triste, dado o fato de que o bolsonarismo mata gente. Também me parece um tremendo equívoco. Bolsonaro só pode agradecer por essa estratégia: tem mais um ano para exterminar toda a credibilidade do processo eleitoral e das urnas eletrônicas, executando com mais êxito o manual de seu ídolo Donald Trump.

Quero lembrar que, na Amazônia, e em vários outros biomas, a base de Bolsonaro está incendiando casas de camponeses e indígenas como rotina e várias lideranças estão escondidas para não morrer. Essa é a tática para manter os opositores apavorados, mas na prática, já quase não é mais necessária. O Congresso está legalizando toda a ilegalidade, e logo será possível apenas chamar a polícia contra aqueles que protegem a floresta, porque grileiros e outros destruidores serão os cidadãos dentro da lei. Este também é o golpe. E ele avança aceleradamente enquanto Bolsonaro faz pirotecnias públicas e autoridades dão vexame com suas palavras “duras”.

O século 21 trouxe a expansão da internet e suas redes sociais e várias outras mudanças na forma como tudo e também o autoritarismo operam. Não é necessário fechar o Supremo com caminhões —ou “com um cabo e um soldado”. Basta que não funcione contra o presidente. Não é necessário fechar o Congresso, basta ter um parlamentar da estirpe de Arthur Lira como presidente da Câmara de Deputados, com poderes para barrar o impeachment. Enquanto Bolsonaro tiver dinheiro público para abastecer Lira e o Centrão, nada acontece. O mesmo vale para a imprensa. Parte da imprensa liberal tem feito um trabalho razoável para documentar o que hoje acontece no Brasil, mas quem se importa? A credibilidade da imprensa está destruída no bolsonarismo. Os seguidores de Bolsonaro não acreditam em nada do que está escrito nos jornais. Assim, não é necessário censura, como nas clássicas ditaduras do século 20.

O bolsonarismo e seus assemelhados pelo mundo destruíram a própria linguagem, tanto que fizeram o 7 de Setembro em nome da “liberdade” e da “defesa da Constituição”. É assim que se enlouquece —e se perverte— todo um povo. Seguir compreendendo o século 21 com os instrumentos de interpretação que serviam para o século 20 não vai funcionar.

As instituições mostraram, por sua falta de reação à manifestação golpista de 7 de Setembro, que estão dominadas —seja por lucro ou seja por covardia. Só vão reagir se os opositores de Bolsonaro, venham de onde venham, se juntarem nas ruas. É impeachment ou impeachment.

Bolsonaro segue a cartilha de Donald Trump, num país institucionalmente muito mais fraco que os Estados Unidos e já tendo aprendido com os erros de seu ídolo. Se Bolsonaro não for barrado, até a disputa eleitoral de 2022 tudo o que constitui a democracia, inclusive as próprias eleições, correm o risco de se tornar irrelevantes. Tanto quanto a Amazônia, a democracia poderá já ter chegado ao ponto de não retorno.