Para ser inconstitucional, há que, primeiro, ser constitucional. Mandamentos codificam pecados, mas as redundantes falsidades políticas são reguladas por Constituições que governam governos.
Num regime de igualdade de todos perante a lei, há também imperativo: a fidelidade ao cargo e ao programa eleitoral. A eleição é um contrato coletivo a cumprir, jamais a sabotar.
Constituir é ordenar. Um leão é símbolo da realeza porque a realeza precisa do constitucionalismo inato e fixo da fera. Um rei está para um leão, assim como a altivez e a fidelidade constitucional da fera estariam para o rei.
Foi Deus inconstitucional quando nos puniu com o dilúvio? É um caso para teólogos. Bolsonaro não é o primeiro. Pois, quando um rei trai ou abandona seu reino, como foi o caso da fuga da Corte lusa para o Brasil, há uma violenta inconstitucionalidade. A fuga de quem personificava o povo tem consequências práticas, políticas, econômicas, religiosas e morais — ou melhor, imorais para os portugueses abandonados por seu sagrado rei.
O palavrão jurídico me fez descobrir que insultos sem remédio são claros; do mesmo modo que um presidente constitucionalmente eleito que abusa dos privilégios e do imenso simbolismo do seu cargo para subvertê-lo em nome de coisa alguma atua inconstitucionalissimamente.
Bolsonaro, ao fazer cabo de guerra com o STF e o TSE, produz uma insegurança que, num mundo globalizado, pode arruinar o Brasil. Tem de ser detido ou banido do papel por — como tenho afirmado aqui — incapacidade e recusa a desempenhá-lo com o devido respeito e a obrigatória compostura demandados pelo cargo.
Em sistemas eleitorais meritocráticos e competitivos, a renúncia à Presidência é um trauma, que vivemos na triste figura de Jânio Quadros, em 25 de agosto de 1961 — quando eu, moço, realizava trabalho de campo entre os índios gaviões numa desconhecida Amazônia paraense, e os ministros militares impediram a posse do vice-presidente João Goulart, houve um procedimento inconstitucional. Romperam deliberadamente com a Constituição e introduziram um desvio pela força das armas, abandonando o campo legal-burocrático. Um “você sabe com quem está falando?” dado contra o Brasil.
O golpe é um desfecho quando dois princípios entram em choque. Um deles é “constitucional” — se morre o rei, ele é sucedido por um descendente; se o presidente abdica pela maluquice das “forças ocultas”, o vice-presidente assume o cargo. Foi exatamente isso que ocorreu em novembro de 1963, quando John Kennedy foi assassinado. A viela do golpe é a distorção de um critério constitucional, algo plausível nesta sociedade em que seguir normas é sinal de inferioridade.
Tal viés é uma sedução para ser o dono absoluto do poder. E para não aceitar a interdependência de Poderes de natureza diversa, essa essência do regime republicano. Por isso, corremos o risco de desmontar a República quando o presidente usa um “você sabe com quem está falando?” representado pela massa convocada a participar de um teatro de traição, que, felizmente, virou um blefe.
As reações ao comício golpista do dia 7 foram, digamos, cavalheirescas. Destaco como mais duras as dos ministros Fux e Barroso, diretamente ofendidos. Barroso, ademais, acentuou tanto a falta de compostura quanto a irracionalidade que um presidente eleito usa para desmoralizar o papel que desempenha.
É triste ver tanta gente golpeando um regime democrático tão duramente conquistado nesta terra de nanobarões.
P.S.: A mediação pessoal, esse ponto-chave dos sistemas republicano-familísticos, esvaziou — graças ao generoso viés poético-político do ex-presidente Michel Temer — o mal-estar do comício golpista. No Brasil, a “ação entre amigos” é, como diria Enylton de Sá Rego, o emplastro de Brás Cubas...
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