quinta-feira, 30 de setembro de 2021

Achtung, Brasil!

 


As armadilhas de dentro

A nossa tentação é quase sempre maniqueísta. A visão simples que separa os “bons” dos “maus” é sempre a mais imediata. Quanto menos entendemos, mais julgamos.

A cilada maior é acreditarmos que as armadilhas estão sempre fora de nós, num mundo que temos por cruel e desumano. Ora, por muito que nos custe, nós somos também esse mundo. E as armadilhas que pensávamos exteriores residem profundamente dentro de nós. Quebrar as armadilhas do mundo é, antes de mais, quebrar o mundo de armadilhas em que se converteu o nosso próprio olhar. Precisamos de passar um programa antivírus pelo nosso hardware mental.
Mia Couto

Anatomia de um desastre na pós-graduação brasileira

Completados mil dias no Planalto, Jair Bolsonaro não conseguiu fazer o que mais queria: destruir a democracia. No mínimo, seu fracasso dá a esperança de que tenha perdido de vez o bonde que imaginava conduzir pela contramão da história.

Isso não apequena o desastre que seu desgoverno vem provocando com a mistura tóxica de ignorância, incompetência e má-fé. Os exemplos são muitos, nem todos visíveis a olho nu. É o caso do progressivo desmanche da Capes, a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior. Subordinada ao Ministério da Educação, é peça central daquilo que o estudioso americano Jonathan Rauch chama “Constituição do conhecimento” —por fixar as instituições e normas da ciência.


Trata-se de um complexo sistema de criação de procedimentos compartilhados; avaliação e reconhecimento de credenciais acadêmicas; definição de agendas e distribuição de recursos; treinamento de novas gerações de profissionais da ciência.

Fundada há 70 anos, a Capes moldou a pós-graduação brasileira, estabelecendo suas regras, procedimentos de avaliação definidos pela comunidade acadêmica, incentivos na forma de bolsas de estudos e apoio a programas de formação pós-graduada. Hoje é responsável pela elaboração do Plano Nacional de Pós-Graduação e pela avaliação periódica e suporte permanente a 4.600 programas que oferecem 7.000 cursos de mestrado e doutorado em todas as áreas do conhecimento. Em parte graças à Capes, o Brasil dispõe de um respeitável sistema de produção de conhecimentos.

Nada disso, naturalmente, tem algum valor para um governo que despreza a ciência e promove o charlatanismo —vide o vexame da cloroquina. O orçamento da Capes, em queda livre desde 2016, encolheu cerca de 30% a partir de 2019.

A epidemia de mudanças no Ministério da Educação privou a agência de estabilidade e coerência na condução da reforma dos critérios da avaliação dos cursos, ora contestada na Justiça pelo Ministério Público Federal. Seu Conselho Superior, dissolvido no fim do ano passado, ainda não foi refeito. O mesmo ocorreu recentemente com o conselho que preside a avaliação (o CTC).

Mergulhada na sua pior crise, a Capes é hoje chefiada pela doutora Cláudia Toledo, formada em direito por um certo Instituto Toledo de Ensino, do qual foi reitora quando este virou Centro Universitário de Bauru. Também têm diploma Toledo de direito o ministro da Educação, Milton Ribeiro, e seu colega da Justiça, André Mendonça, que Bolsonaro quer emplacar no STF. Em suma, os meandros da crise na Capes podem ser obscuros, mas as suas causas são claras –e o resultado, desastroso para o país.

Energia verde é chance que o Brasil não pode deixar passar

Há dois anos, o presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, é uma espécie de líder mundial dos pecadores ambientais. Isso se deve aos ataques dele contra as autoridades e leis ambientais nacionais, sua tolerância diante do desmatamento da Amazônia e seu ostensivo desinteresse na política climática global.

Por culpa de Bolsonaro, no exterior se ignora que o Brasil é um dos países de produção energética mais sustentável, com a maior parcela (43%) de fontes renováveis em seu consumo final de energia entre os membros do G20. Sua capacidade cumulativa de energias renováveis é de 150 gigawatts, atrás apenas da China e dos Estados Unidos.


Isso ocorre porque quase dois terços da eletricidade são gerados em usinas hidrelétricas, com baixa emissão de gases-estufa. Ao mesmo tempo, cresceu significativamente a participação do vento na matriz energética nacional. Depois da China e dos EUA, nos últimos sete anos o Brasil foi quem mais investiu na energia eólica, que hoje gera 11% de sua eletricidade. Essa expansão deverá também se registrar com a energia solar.

O Ministério de Minas e Energia conta com que, até 2040, 44% da eletricidade nacional possa ser obtida do vento e do sol.

Mas o país também já produz há décadas combustíveis como o biodiesel da soja e o etanol da cana-de-açúcar, cada vez mais também de segunda geração, em que é também transformado em combustível o restante da planta já utilizada, inclusive sua celulose, de difícil processamento.

O Brasil é o número três mundial da produção de bioeletricidade, sobretudo a partir do bagaço de cana, que é empregado nas usinas como combustível. Ganha igualmente importância na produção de energia o biogás, extraído de subprodutos da agricultura ou de depósitos de lixo urbanos. Com base nessa ampla oferta de eletricidade sustentável, em breve o país poderá oferecer fontes de energia verdes, como hidrogênio ou amoníaco, a preços bastante competitivos.

O hidrogênio "verde" é produzido através da fissão eletrolítica da água, usando eletricidade de fontes renováveis. A Europa e todas as nações que procuram reduzir suas emissões de gases do efeito estufa apostam no hidrogênio verde para alcançar suas metas ambientais, no entanto não podem produzi-lo em quantidades suficientes e terão que importar.
Brasil diante de chance histórica

No entanto o Brasil não deve ser primariamente fornecedor de combustível para as indústrias do mundo: melhor seria se as empresas integrassem o hidrogênio, amoníaco ou metanol verdes em sua própria cadeia de produção em solo brasileiro e elevassem assim a geração de valor nacional.

Um exemplo é o aço "verde", fabricado com hidrogênio de fontes renováveis – a indústria siderúrgica é um dos setores com a maior taxa de emissão de dióxido de carbono e outros gases-estufa. Ou o biometano poderia substituir o gás natural na indústria química, por exemplo, para a produção de fertilizantes.

Além disso, graças a seus biocombustíveis, o Brasil poderia executar com neutralidade carbônica toda a logística de suas indústrias de exportação. No caso do aço, o minério de ferro seria transportado em trens elétricos desde a mina, no interior do país, até a usina siderúrgica alimentada a hidrogênio, no litoral. Aí, navios cargueiros movidos a amoníaco verde levariam o produto final até os portos da Europa.

Assim, o país teria uma chance única de reaquecer sua indústria, que há anos vem minguando. As empresas reconheceram esse potencial, e estão investindo. Basta apenas esperar que o governo não se ponha no caminho dessa transformação da economia, pois isso significaria deixar passar uma chance histórica.
Alexander Busch

O que diz o vento

Para o Brasil chegar afinal ao Primeiro Mundo só falta vulcão. Uns abalozinhos já têm havido por aí, e cada vez mais frequentes. Agora passa por Itu esse vendaval, com tantas vítimas e tantos prejuízos a lastimar. Alguns jornais não tiveram dúvida: ciclone. Ou tornado, quem sabe. Deve ser coisa do el niño, um fenômeno que vem pelo mar lá do Pacífico, bate nos Andes, provoca o degelo e uma sequela de cataclismos que passam pelo Brasil.

Não sei o que é pior, se furacão ou vulcão. Pior mesmo, porque conheço, é tremor de terra. Estava em Lisboa com o Vinicius de Moraes quando aconteceu o terremoto de 1968. Palavra que achei que era contra mim pessoalmente. Veio até com dois tt. Assim: terremOtto. Quando estive no Japão com o Cláudio Mello e Souza fomos perseguidos por um tufão. Mas japonês dá jeito em tudo. O voo atrasou e voltamos a Tóquio numa boa.

Shelley que me desculpe, mas vento me dá nos nervos. Desarruma a gente por dentro. Mas, em matéria de vento, poeta tem imunidades. Manuel Bandeira associou à canção do vento a canção da sua vida. O vento varria as luzes, as músicas, os aromas. E a

sua vida ficava cada vez mais cheia de aromas, de estrelas, de cânticos. O contrário do ventinho ladrão. Sabe como é que se chama vento? Com três assobios. Ou soprando num búzio. Também funciona se você invocar são Lourenço, que é o dono do vento.

Fúria dos elementos, símbolo da instabilidade, o vento é ao mesmo tempo sopro de vida. Uma aragem acompanha sempre os anjos. E foi o vento que fez descer sobre os apóstolos as línguas de fogo do Espírito Santo. Destruidor e salvador, com o vento renasce a vida, diz a “Ode to the West Wind”, de Shelley. No inverno só um poeta romântico entrevê o início da primavera. Divindade para os gregos, o vento inquieta porque sacode a apatia e a estagnação.

Com esse poder de levar embora, suponhamos que uma lufada varresse o Brasil, como na canção do Manuel Bandeira. Que é que esse vento benfazejo devia levar embora? Todo mundo sabe o mundo de males que nos oprime nesta hora. Deviam ser varridos para sempre. Se vento leva e traz, se vento é mudança, não custa acreditar que, passada a tempestade, vem a bonança. E com ela, o sopro renovador — garante o poeta. A casa destelhada, a destruição já começou. Vem aí a reconstrução.

Otto Lara Resende, Folha SP 07/10/1991