terça-feira, 9 de julho de 2019

Covardes! Covardes! Covardes!

O desarmamento mecânico foi só uma das consequências do outro. O pior é o absoluto desarmamento institucional a que estamos reduzidos. Vem vindo de longe e num crescendo há tanto tempo que anestesiou o povo e fez do brasileiro uma massa inerte. Já não se defende nem das mordidas que leva de frente. Reduzido à sobrevivência até a próxima refeição, foi devolvido à lei da selva. Está muito aquém do nível em que gestos de dignidade humana podem ser cobrados.

O grau de alienação da outra ponta é inversamente proporcional. Os predadores-alfa, com suas lagostas, seus vinhos tetracampeões e seus decretos de 16,32% no Ano da Grande Fome, rebaixaram Maria Antonieta a um símbolo de austeridade e promoveram o xerife de Nottingham a um quase mecenas. Para o Brasil de Brasília o luxo não é só constitutivo, é antes “constitucional”. Exigível por ordem judicial, é função do Estado impô-lo à favela pela força.


Quando a seção de tortura termina a volta à cela torna-se motivo de comemoração. Mas esse trilhão, se sobrar tanto, não é desmame. É só um sopro no pulmão do morto. Está mais para a bruxa engordando o dedinho de Joãozinho e Maria. Quando a reforma da Previdência foi entregue ao congresso em fevereiro já os militares, “no poder” após 33 anos de ostracismo, tinham sido (indiretamente) desembarcados dela. Morto o critério de igualdade o arbítrio, de que nascem as privilegiaturas, ganhou salvo conduto para o futuro do Brasil com o endosso presidencial à exclusão do sistema de capitalização logo nos primeiros dias dos dois meses até a CCJ mais 68 dias de Comissão Especial fazerem das palavras dele lei. No último minuto a agro-teta, o alterego do agronegócio que salva a pátria, mordeu os seus 89 bi só pra ninguém esquecer que o privilégio não tem preconceito de classe. E então lançaram-se ao leilão os estados e os municípios onde se fará o ajuste fino do que sobrar após os dois turnos, no mínimo, em cada casa do congresso, que estão na agenda do “pra já “ das nossas depressões futuras.

Não há “rachas” na privilegiatura. Só o que continua em disputa é a quem serão atirados os ossos a cada troca de turno no poder. Aos “movimentos sociais” de laboratório, a proto milícia da fase terminal das quase-democracias, ou às polícias que já engatilham aquelas “greves” que consistem em sinalizar para o crime quando estará liberado o próximo comedio em que poderá “tocar o terror” impunemente. Será, portanto, disputada com o argumento de sempre a questão filosófica sobre se são ou não são privilégios as vantagens que as polícias têm: “E então, governador, a quantos plebeus trucidados vosselência resiste”?

Mortas sem choro nem vela de tantos observadores da imprensa e seus “especialistas” das universidades públicas as pretensões revolucionárias da reforma, nada mais restava “fora da ordem”. Seguiu-se a tradicional disputa dos lobbies alguns, como é de lei, patrocinados pelo presidente da República em pessoa pois, da “direita” ou da “esquerda”, é de bom tom que eles não esqueçam “dos seus” nesta nossa democracia cordial.

A plebe do favelão nacional foi, como sempre, a única “parte” em prol da qual ninguém pediu “vantagens”, com exceção do “politicamente inábil” ministro da economia que as privilegiaturas “de direita” e “de esquerda” que se substituem no poder, igualmente virgens de qualquer experiência com as maçantes obrigações da economia não parasitária, acabam constrangidas a importar do Brasil Real.

Já é outra vez possível até atacar de frente o combate à corrupção e propor de peito aberto o restabelecimento da impunidade. Com a promoção dos hackers de aluguel e do jornalismo de banqueiro “campeão nacional” a interlocutores legítimos do processo político brasileiro, os “ganchos” para o bombardeio de saturação estão garantidos. As redações herdadas, com “autonomia” garantida pela sólida alienação dos seus patrocinadores, podem recuar do primeiro plano e concentrar-se por um tempo apenas em “repercutir” os ataques de que mesmo “fatiados” ninguém desconfia enquanto mantêm a censura para as alternativas que funcionam no mundo que funciona. Quem, na privilegiatura “de direita” ou “de esquerda”, “ganhou” ou “perdeu” cada round?

O resumo é que foi mais uma vez anunciado aos quatro ventos que quem tem lobbymonta em quem não tem, e a polícia, os paladinos dos direitos humanos e os santos de pau oco montam juntos.

Covardes! Covardes! Covardes!

É a hora mais escura do Brasil. Ilusão de noiva acreditar que qualquer coisa vai mudar antes que o poder mude de mãos. Enquanto não impusermos ao País Oficial o deslocamento do seu eixo de referências e do ponto de ancoragem dos empregos públicos as lealdades continuarão sendo as de hoje, as iniciativas para “melhorar” isto ou aquilo não passarão de paliativos e qualquer debate em torno delas apenas dados de uma autópsia que contribuirão mais para alienar que para esclarecer o país.

O mundo está aí para quem quiser conferir. Manda na própria vida e livra-se da miséria quem tem o poder de contratar E DE DEMITIR políticos (os funcionários tornam-se demissíveis por consequência) e de dar a última palavra na escolha das leis sob as quais concorda viver. Só não é escravo quem tem a garantia de que é seu o resultado do seu trabalho e que só ele tem o poder de dispor sobre o que será feito dele. Eleições distritais puras com direito a retomada de mandatos, iniciativa de propor leis combinada com direito de referendo do que vier dos legislativos e eleições periódicas de retenção de juízes põem você como referência obrigatória dos políticos, a sua satisfação como única garantia do emprego deles e, ao mesmo tempo, blinda o país contra golpes e manipulações.

A deus o que é de deus, portanto. O Brasil não precisa mais que de políticos tementes ao patrão.

E viva o 9 de julho, que já era disso que se tratava desde muito antes de 1932!

Brasil Novo (?): Do pobre para o parlamentar


Antipetismo trocou Bolsonaro pelo acostamento

Jair Bolsonaro meteu-se num círculo viciado que apequena sua Presidência. Para adular o bolsonarismo convicto, adotou uma retórica que afugentou o antipetismo que ajudara a levá-lo à Presidência. Com a popularidade em queda, exacerbou o discurso, potencializando o isolamento. Condenou-se a dialogar com um terço do eleitorado que o aprova. Sua popularidade, que era de 32% em abril, oscilou para 33% aos seis meses de governo, informa o Datafolha.

Bolsonaro virou presidente numa eleição em que o voto das pessoas que pensam como ele foi anabolizado pelo pedaço do eleitorado que não suportava a ideia de devolver o PT ao poder. No volante, não foi capaz de exibir um itinerário que estimulasse o voto de exclusão a se manter a bordo do seu governo. O antipetismo foi ao acostamento.

Para compreender adequadamente o que se passa, é preciso prestar atenção no seguinte dado: para 61% dos entrevistados, Bolsonaro fez menos do que se esperava dele no exercício da Presidência. Embora ninguém ignore que o capitão herdou um abacaxi, o discurso da herança maldita vai perdendo o prazo de validade. Impaciente, a plateia começa a cobrar resultados.

O apequenamento de Bolsonaro foi alcançado com método. O presidente começou a encolher já no dia da posse. Podendo pregar a união nacional —mesmo que da boca pra fora—, preferiu atiçar a polarização. Ao discursar no parlatório do Planalto, disse que "o povo começou a se libertar do socialismo". Não percebera que a União Soviética acabara havia 28 anos. Com sorte, talvez note que a ideologia é o caminho mais longo entre um projeto e sua realização.

O processo de encolhimento foi rápido. A reversão depende basicamente da eficiência governamental e, sobretudo, da recuperação da economia. Coisa que não acontece do dia para a noite.

Dependência digital

Um dependente químico é alguém que não consegue ficar certo tempo sem consumir sua droga, seja ela álcool, cocaína, crack, inalante, maconha ou o que for. Esse tempo varia com o dependente —um dia, duas horas, 30 minutos. Mas qualquer pessoa que precise usar tal produto para não sentir os efeitos físicos e psicológicos de sua ausência será dependente. Isso o levará a negligenciar a família e os amigos, tornar-se errático e inconfiável no trabalho e, em algum tempo, apresentar sintomas ligados à intoxicação.

É uma escalada. Seguem-se, pela ordem, o desemprego, a falência, a depressão, a subnutrição, outras doenças, a loucura e a morte.

Os mesmos sintomas assolam hoje um novo tipo de dependente: o que não consegue passar certo tempo desconectado do smartphone, tablet, notebook ou computador. É o dependente digital. O aparelho o acompanha, ligado, durante suas refeições em casa, com a família, ou na rua, a negócios ou a prazer; na conversa com os amigos; no cinema ou no teatro e, inevitavelmente, no trabalho.

Como na dependência química, chega-se a um estágio em que tudo que não diga respeito à droga se torna intolerável, como o casamento, o emprego, atender a compromissos, pagar as contas e até tomar banho. A droga se apossa. Por ela, o dependente abole o mundo ao redor.

Todo mundo hoje sabe de alguém que, tendo seu celular quebrado, perdido ou roubado, “passou mal” por ficar sem ele. Chama-se a isto síndrome de abstinência. É o que acontece com o dependente químico —a simples ideia de não ter a droga à mão para a próxima dose é aterrorizante.

Já há no Rio e em São Paulo institutos de “desintoxicação digital”. Clientes não faltarão: segundo pesquisas, o brasileiro fica conectado, em média, nove horas e 14 minutos por dia. É o terceiro país do mundo nessa estatística, atrás apenas da Tailândia e das Filipinas —por enquanto.

O guardião da fronteira e da prostituição de crianças índias

O desenho no mapa lembra uma cabeça de cachorro. É um pedaço da Amazônia brasileira incrustado entre a Colômbia e a Venezuela. Em São Gabriel da Cachoeira caberiam 90 cidades como o Rio ou 76 iguais a São Paulo. Fica à margem do Rio Negro, que vagueia 880 quilômetros até Manaus, onde vira Amazonas.

É uma base do Exército na fronteira pantanosa, de águas turvas, pouco peixe e floresta densa, dominada por grupos narcoguerrilheiros estrangeiros e facções nacionais do crime. Em torno do quartel vivem 42 mil pessoas, quase 80% indígenas na miséria.

Nessa babel de quatro idiomas (português, nheengatu, tukano e baniwa) e dezenas de dialetos, o silêncio comunitário ajuda a banalizar a prostituição de crianças indígenas.


Alguns políticos e comerciantes se habituaram a comprar a virgindade de crianças índias, com 10 a 13 anos de idade. É coisa antiga, bem conhecida na cidade, mas quase ninguém se preocupa — registrou o promotor Júlio Araújo em processo aberto a partir dos relatos publicados pelas repórteres Kátia Brasil e Elaíze Farias.

Em setembro, um dos comerciantes mais ricos e influentes, o ex-vereador Manuel Carneiro Pinto, foi condenado por prostituição infantil. Ele e os irmãos Marcelo e Arimatéia receberam penas, somadas, de 142 anos de prisão. Em abril, o comerciante Aelson da Silva foi punido com 67 anos de cárcere.

Das suas vítimas, oito já completaram 25 anos. O juiz Flávio de Freitas dimensionou nas sentenças a devastação social dos Tariana, Uanana, Tucano e Baré, humilhados.

Todos os condenados estão soltos, à espera de julgamento dos recursos. Podem continuar nas ruas, se o Supremo mudar as regras sobre prisão em segunda instância.

O silêncio comunitário fomenta a prostituição infantil. A sensação de impunidade reverbera nas esquinas da cidade, escreveu o juiz.

A Câmara de São Gabriel da Cachoeira confirma: dias atrás homenageou Manuel Carneiro Pinto, condenado a 32 anos de prisão. A Comissão Municipal da Mulher deu-lhe o título de “Guardião da Fronteira da Cabeça do Cachorro”.

Pensamento do Dia


'E agora, José?'

Há versos célebres que se transmitem através das idades do homem, como roteiros, bandeiras, cartas de marear, sinais de trânsito, bússolas — ou segredos. Este, que veio ao mundo muito depois de mim, pelas mãos de Carlos Drummond de Andrade, acompanha-me desde que nasci, por um desses misteriosos acasos que fazem do que viveu já, do que vive e do que ainda não vive, um mesmo nó apertado e vertiginoso de tempo sem medida. Considero privilégio meu dispor deste verso, porque me chamo José e muitas vezes na vida me tenho interrogado: "E agora?" Foram aquelas horas em que o mundo escureceu, em que o desânimo se fez muralha, fosso de víboras, em que as mãos ficaram vazias e atónitas. "E agora, José?" Grande, porém, é o poder da poesia para que aconteça, como juro que acontece, que esta pergunta simples aja como um tónico, um golpe de espora, e não seja, como poderia ser, tentação, o começo da interminável ladainha que é a piedade por nós próprios.

Em todo o caso há situações de tal modo absurdas (ou que o pareceriam vinte e quatro horas antes), que não se pode censurar a ninguém um instante de desconforto total, um segundo em que tudo dentro de nós pede socorro, ainda que saibamos que logo a seguir a mola pisada, violentada, se vai distender vibrante e verticalmente armar. Nesse momento veloz tocara-se o fundo do poço.

Mas outros Josés andam pelo mundo, não o esqueçamos nunca. A eles também sucedem casos, desencontros, acidentes, agressões, de que saem às vezes vencedores, às vezes vencidos. Alguns não têm nada nem ninguém a seu favor, e esses são, afinal, os que tornam insignificantes e fúteis as nossas penas. A esses, que chegaram ao limite das forças, acuados a um canto pela matilha, sem coragem para o último ainda que mortal arranco, é que a pergunta de Carlos Drummond de Andrade deve ser feita, como um derradeiro apelo ao orgulho de ser homem: "E agora, José?"

Precisamente um desses casos me mostra que já falei demasiado de mim. Um outro José está diante da mesa onde escrevo. Não tem rosto, é um vulto apenas, uma superfície que treme como uma dor contínua. Sei que se chama José Júnior, sem mais riqueza de apelidos e genealogias, e vive em São Jorge da Beira. É novo, embriaga-se, e tratam-no como se fosse uma espécie de bobo. Divertem-se à sua custa alguns adultos, e as crianças fazem-lhe assuadas, talvez o apedrejem de longe. E se isto não fizeram, empurraram-no com aquela súbita crueldade das crianças, ao mesmo tempo feroz e cobarde, e o José Júnior, perdido de bêbedo, caiu e partiu uma perna, ou talvez não, e foi para o hospital. Mísero corpo, alma pobre, orgulho ausente — "E agora, José?"

Afasto para o lado os meus próprios pesares e raivas diante deste quadro desolado de uma degradação, do gozo infinito que é para os homens esmagarem outros homens, afogá-los deliberadamente, aviltá-los, fazer deles objecto de troça, de irrisão, de chacota — matando sem matar, sob a asa da lei ou perante a sua indiferença. Tudo isto porque o pobre José Júnior é um José Júnior pobre. Tivesse ele bens avultados na terra, conta forte no banco, automóvel à porta — e todos os vícios lhe seriam perdoados. Mas assim, pobre, fraco e bêbedo, que grande fortuna para São Jorge da Beira. Nem todas as terras de Portugal se podem gabar de dispor de um alvo humano para darem livre expansão a ferocidades ocultas.

Escrevo estas palavras a muitos quilómetros de distância, não sei quem é José Júnior, e teria dificuldade em encontrar no mapa São Jorge da Beira. Mas estes nomes apenas designam casos particulares de um fenómeno geral: o desprezo pelo próximo, quando não o ódio, tão constantes ali como aqui mesmo, em toda a parte, uma espécie de loucura epidémica que prefere as vítimas fáceis. Escrevo estas palavras num fim de tarde cor de madrugada com espumas no céu, tendo diante dos olhos uma nesga do Tejo, onde há barcos vagarosos que vão de margem a margem levando pessoas e recados. E tudo isto parece pacífico e harmonioso como os dois pombos que pousam na varanda e sussurram confidencialmente. Ah, esta vida preciosa que vai fugindo, tarde mansa que não será igual amanhã, que não serás, sobretudo, o que agora és.

Entretanto, José Júnior está no hospital, ou saiu já e arrasta a perna coxa pelas ruas frias de São Jorge da Beira. Há uma taberna, o vinho ardente e exterminador, o esquecimento de tudo no fundo da garrafa, como um diamante, a embriaguez vitoriosa enquanto dura. A vida vai voltar ao princípio. Será possível que a vida volte ao princípio? Será possível que os homens matem José Júnior? Será possível?

Cheguei ao fim da crónica, fiz o meu dever. "E agora, José?"
José Saramago

Barbárie em tempos democráticos: Por que o Estado é responsável por tantas mortes

O Brasil vive uma contradição nas últimas décadas. Ao mesmo tempo em que a passagem da ditadura militar (1964-1985) para a democracia resultou em liberdades políticas e direitos sociais, algo que a ciência política vê com unanimidade, ela não foi capaz de garantir o mais essencial: o direito à vida. Todo o contrário. Com a chegada da democracia, o aparato repressivo do Estado deixou de mirar a oposição ao regime dos generais e se voltou para o tráfico de drogas em um momento de explosão dos crimes urbanos. Época em que o Ocidente, especialmente os Estados Unidos, declarava a chamada guerra contra as drogas nos anos 70. E aqui não foi diferente. Mais de 30 anos depois da promulgação da Constituição de 1988, os índices de violência são alarmantes: o último recorde é de 2017, ano que registrou mais de 65.605 homicídios, dos quais no mínimo 5.159 foram reconhecidamente cometidos por forças policiais, segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Por isso, dezenas de grupos de mães de jovens mortos se unem para denunciar as violações cometidas pelo Estado em nome da ordem. Algo comum em ditaduras.


Algumas questões surgem diante desse cenário. Por que o Estado brasileiro continua matando tanto em tempos democráticos? Por que ele é parte do problema e não da solução? O que deu errado na transição para a democracia para que os índices de violência aumentassem tanto? Para entender essas e outras questões, o EL PAÍS escutou especialistas em segurança pública, alguns no seminário sobre letalidade policial organizado pelo Centro de Pesquisa e Extensão em Ciências Criminais da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo nos dias 13 e 14 de junho.

Entender como as instituições operam significa também entender o que a sociedade brasileira demanda delas. E entender nossa história social e política, marcada pela violência desde que o Brasil foi ocupado durante a colonização. "Ela foi se revelando de diversas formas ao longo da História, desde a violência contra a população indígena, depois com a escravidão, com imigrantes, nos conflitos fundiários, na criminalidade urbana a partir dos anos 70 e 80...", explica o sociólogo Renato Sérgio de Lima, presidente FBSP. Hoje, mais de 500 anos depois da chegada dos portugueses, impera a máxima "bandido bom é bandido morto" na sociedade. "Crime existe em países ditos desenvolvidos. Mas, ao contrário deles, não criamos uma ética pública em que nosso limite é a não-violência. Ela nunca foi interditada nem ética nem politicamente no país", acrescenta. Significa que que a violência não só faz parte de nossa história como também a toleramos. “Só que toleramos a violência sempre com o outro, e com quem achamos que é matável”, completa.
A violência estatal no cotidiano

Considerando que a força letal muitas vezes é necessária, o que leva um policial a matar de forma ilegítima? O coronel da reserva Diógenes Lucca, que comandou a Rota, da PM de São Paulo, tem quatro hipóteses: a ideia muito presente na sociedade de que "bandido bom é bandido morto"; um sistema de segurança pública que, devido à não-regulamentação da Constituição, é pouco eficiente e "faz com o que o policial sinta que enxuga gelo com o ralo do chão entupido e a torneira aberta"; uma "subcultura silenciosa e ativa de não cumprir as normas"; e, por fim, "um sentimento de invisibilidade que o policial tem ao não ver ações tremendamente meritórias, apreensões fantásticas e investigações trabalhosas serem reconhecidas".

Samira Bueno, socióloga e diretora executiva do FBSP, argumenta que "estimulamos um quadro de guerra com fuzil, deixando os policiais também vulneráveis e esquecendo que eles têm de estar no dia a dia para garantir uma convivência pacífica". Em 2017, 367 agentes foram mortos, segundo os dados da organização que dirige. "Eles também estão perdendo, sofrendo com essa situação. Isso não é vida", acrescenta Bueno. "Estamos dando a pena de morte para que o policial decida quem vive e quem morre. E mesmo nos países que tem pena de morte existe um amplo processo legal".
Instituições arcaicas

Instituições que falham em garantir a paz têm também a ver com uma transição democrática incompleta. O sociólogo Sérgio Adorno, coordenador do Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da USP, destaca que em transições como a brasileira "há um processo de reforma das instituições, inclusive as da esfera da segurança pública e da aplicação da lei e da ordem, o que significa renovar lideranças, criar uma polícia mais profissionalizada, com uma ação regulada legalmente". No caso do Brasil, continua ele, "essa área de segurança pública ficou presa a tradições corporativas", fazendo com que a polícia "continue se imaginando como força capaz de impor a ordem a qualquer custo, inclusive com o uso da força letal, que só deve ser usada em última circunstância".

Para Samira Bueno, a transição "não teve coragem de enfrentar todas as mazelas" brasileiras. "Não alteramos os organismos e suas culturas organizacionais. Os mesmos delegados e coronéis da policia militar continuaram trabalhando. E do dia para a noite dissemos 'olha, você vai deixar de ser o braço armado do Estado, que persegue dissidente político, para garantir a ordem pública e preservar os direitos da população'. É uma transição muito mal feita", explica ela, que é também doutora em Administração Pública pela FGV. Bueno lembra que nessa mesma época crises econômicas reforçavam desigualdades, forçavam a migração em massa de pessoas para grandes cidades e geravam crescimentos urbanos desordenados, o que resultou em uma maior segregação social. "A Polícia Militar como conhecemos data de 1970. Ela é uma junção da Guarda Civil com a Força Pública, com um padrão de trabalho extremamente truculento e que passa a se dedicar ao dia a dia da criminalidade", argumenta.
Democracia x Estado de Direito

Tudo isso significa que, na prática, a democracia no Brasil não se tornou realidade? A cientista política e social San Romanelli Assumpção, do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da UERJ, discorda. "Na contramão dos discursos militantes, acho que o problema central não é de democracia", avalia. Ela argumenta que, apesar de o Brasil não ter lidado com seu legado de violações cometidas pelo Estado, conseguiu parar com a repressão política ditatorial, com a criminalização de credo político e de liberdades de expressão. "Se o conceito de democracia deixar de ser um sistema político eleitoral representativo e começar a ser o número de assassinatos cometidos pelo Estado, então vamos dizer que de 1964 a 1985 éramos mais democráticos, já que nesse período matávamos menos. Acho isso muito problemático", acrescenta. É graças a democracia, lembra ela, que "a periferia ganhou mais meios materiais e educacionais para levantar a voz".

Qual é o problema então? "Precisamos dizer que nossa democracia não conseguiu resolver um problema de Estado de Direito, um problema de violação de liberdades civis e de segurança pessoal, que é o direito à vida e a integridade física", pontualiza. "O que fazemos hoje como país é assassinato em massa, em escala numérica de crime contra a humanidade, números de países em guerra civil, e que não atinge a sociedade de maneira aleatória. Atinge sobretudo homens negros e periféricos", completa. Em 2017, mais de 75,5% das vítimas de homicídio eram jovens e negros, segundo o Atlas da Violência do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e do FBSP. Entre 2007 e 2017, a taxa de pessoas negras mortas subiu 33%. A mortalidade de não negros subiu apenas 3,3%.

O que faz um estadista

Quem ambiciona ser estadista deve ter clara visão de mundo e deve se perguntar se essa visão é mesmo a melhor para o país que pretende governar. Há pessoas que, diante dessa questão, respondem, sem espírito crítico, que sua visão é não só a melhor, como é inquestionável. Na verdade, quem assim se apresenta não é um estadista, mas um político medíocre, que mede o mundo pela régua curta de seus preconceitos e não tem, como consequência, rigorosamente nada de grande a oferecer ao país em termos de política, de economia e do bom funcionamento das instituições.

Um verdadeiro estadista não é o que manda, mas o que governa – e governar é tomar decisões depois de ouvir as forças políticas e sociais legítimas e procurar saber quais são as autênticas prioridades das gerações atuais, mas, principalmente, das futuras. Desse modo, é capaz de inspirar os cidadãos, mesmo aqueles que não o escolheram como presidente, a trabalhar por um país melhor. Essa é a diferença entre um projeto de construção e um projeto de destruição. Um dos grandes males do Brasil após a redemocratização tem sido a política de terra arrasada: quem assume o poder anuncia que fará tábula rasa do que veio antes, sem se importar se aquilo que veio antes é essencial para o crescimento do País.

Há governantes que vão além e interpretam o voto que receberam como uma ordem para destruir o trabalho dos antecessores e tratar a oposição como pária. O voto, segundo essa visão, estabeleceria uma conexão direta do eleitor com o eleito, tornando esse governante o único capaz de interpretar o desejo popular. Na América Latina, esse tipo de populismo já foi experimentado com dramáticas consequências, por exemplo, no Peru de Velasco Alvarado e na Venezuela de Hugo Chávez, a cuja ruína assistimos ao vivo.

Em comum na experiência desses países é que governantes medíocres que se pretendem “estadistas” não conhecem outro caminho que não seja o da demagogia para exercer o poder, atropelando as instituições democráticas e contaminando o debate político com ideologias e imposturas. Interdita-se a política e criminaliza-se o passado, como se nele residisse todo o mal. Só o “novo” é bom e redentor.

A história mostra que o País só ganhou quando foram preservados, de um governo a outro, os valores fundamentais da sociedade e revogados os costumes que jogavam governo e sociedade num círculo vicioso e corruptor. Lula da Silva soube entender essa verdade básica, mantendo na primeira parte de seu governo inicial os fundamentos que levaram à estabilidade econômica na administração anterior, de Fernando Henrique Cardoso. Quando ele se deixou levar pelo perfume inebriante do populismo e tentou convencer os brasileiros de que o legado de responsabilidade fiscal era uma “herança maldita” e, como tal, precisava ser destruído, os governos petistas abriram caminho para o desastre. O País ainda não se recuperou dessa aventura.

Vivemos situação semelhante. O presidente Bolsonaro vive repetindo que é ele o único e bom representante do povo, como se não soubesse que, pela boa doutrina constitucionalista, é o Legislativo que representa a vontade popular. O novo governo elegeu-se prometendo mudar tudo. Quando Bolsonaro decidiu encaminhar um projeto inteiramente novo de reforma da Previdência, desprezando um projeto do governo anterior que já estava com tramitação avançada, seguiu a lógica da terra arrasada, sem levar em conta as necessidades do País. A mesma lógica presidiu o desinteresse do atual governo pelos projetos deixados pela gestão anterior com vista a incentivar a retomada do crescimento. Há muitos outros exemplos dessa devastação deliberada, da política externa à educação.

Mas Bolsonaro julga que, por ter sido eleito, tem legitimidade para fazer o que seria a vontade do “povo”: acabar com tudo o que veio antes dele. “Respeito todas as instituições, mas acima delas está o povo, meu patrão, a quem devo lealdade”, escreveu nas redes sociais, esquecendo-se de que ele não foi o único eleito em 2018 – todos os parlamentares, inclusive os da oposição, também receberam votos. Deve-se dizer, aliás, que a vontade do “patrão” de Bolsonaro representa-se melhor no Congresso do que no Palácio do Planalto, que não é a “casa do povo”. Por isso, se o presidente quiser saber o que o “povo” demanda, o melhor lugar não é numa manifestação de simpatizantes na Avenida Paulista, e sim no Congresso democraticamente eleito para representar cada um de nós.