terça-feira, 9 de julho de 2019

Barbárie em tempos democráticos: Por que o Estado é responsável por tantas mortes

O Brasil vive uma contradição nas últimas décadas. Ao mesmo tempo em que a passagem da ditadura militar (1964-1985) para a democracia resultou em liberdades políticas e direitos sociais, algo que a ciência política vê com unanimidade, ela não foi capaz de garantir o mais essencial: o direito à vida. Todo o contrário. Com a chegada da democracia, o aparato repressivo do Estado deixou de mirar a oposição ao regime dos generais e se voltou para o tráfico de drogas em um momento de explosão dos crimes urbanos. Época em que o Ocidente, especialmente os Estados Unidos, declarava a chamada guerra contra as drogas nos anos 70. E aqui não foi diferente. Mais de 30 anos depois da promulgação da Constituição de 1988, os índices de violência são alarmantes: o último recorde é de 2017, ano que registrou mais de 65.605 homicídios, dos quais no mínimo 5.159 foram reconhecidamente cometidos por forças policiais, segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Por isso, dezenas de grupos de mães de jovens mortos se unem para denunciar as violações cometidas pelo Estado em nome da ordem. Algo comum em ditaduras.


Algumas questões surgem diante desse cenário. Por que o Estado brasileiro continua matando tanto em tempos democráticos? Por que ele é parte do problema e não da solução? O que deu errado na transição para a democracia para que os índices de violência aumentassem tanto? Para entender essas e outras questões, o EL PAÍS escutou especialistas em segurança pública, alguns no seminário sobre letalidade policial organizado pelo Centro de Pesquisa e Extensão em Ciências Criminais da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo nos dias 13 e 14 de junho.

Entender como as instituições operam significa também entender o que a sociedade brasileira demanda delas. E entender nossa história social e política, marcada pela violência desde que o Brasil foi ocupado durante a colonização. "Ela foi se revelando de diversas formas ao longo da História, desde a violência contra a população indígena, depois com a escravidão, com imigrantes, nos conflitos fundiários, na criminalidade urbana a partir dos anos 70 e 80...", explica o sociólogo Renato Sérgio de Lima, presidente FBSP. Hoje, mais de 500 anos depois da chegada dos portugueses, impera a máxima "bandido bom é bandido morto" na sociedade. "Crime existe em países ditos desenvolvidos. Mas, ao contrário deles, não criamos uma ética pública em que nosso limite é a não-violência. Ela nunca foi interditada nem ética nem politicamente no país", acrescenta. Significa que que a violência não só faz parte de nossa história como também a toleramos. “Só que toleramos a violência sempre com o outro, e com quem achamos que é matável”, completa.
A violência estatal no cotidiano

Considerando que a força letal muitas vezes é necessária, o que leva um policial a matar de forma ilegítima? O coronel da reserva Diógenes Lucca, que comandou a Rota, da PM de São Paulo, tem quatro hipóteses: a ideia muito presente na sociedade de que "bandido bom é bandido morto"; um sistema de segurança pública que, devido à não-regulamentação da Constituição, é pouco eficiente e "faz com o que o policial sinta que enxuga gelo com o ralo do chão entupido e a torneira aberta"; uma "subcultura silenciosa e ativa de não cumprir as normas"; e, por fim, "um sentimento de invisibilidade que o policial tem ao não ver ações tremendamente meritórias, apreensões fantásticas e investigações trabalhosas serem reconhecidas".

Samira Bueno, socióloga e diretora executiva do FBSP, argumenta que "estimulamos um quadro de guerra com fuzil, deixando os policiais também vulneráveis e esquecendo que eles têm de estar no dia a dia para garantir uma convivência pacífica". Em 2017, 367 agentes foram mortos, segundo os dados da organização que dirige. "Eles também estão perdendo, sofrendo com essa situação. Isso não é vida", acrescenta Bueno. "Estamos dando a pena de morte para que o policial decida quem vive e quem morre. E mesmo nos países que tem pena de morte existe um amplo processo legal".
Instituições arcaicas

Instituições que falham em garantir a paz têm também a ver com uma transição democrática incompleta. O sociólogo Sérgio Adorno, coordenador do Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da USP, destaca que em transições como a brasileira "há um processo de reforma das instituições, inclusive as da esfera da segurança pública e da aplicação da lei e da ordem, o que significa renovar lideranças, criar uma polícia mais profissionalizada, com uma ação regulada legalmente". No caso do Brasil, continua ele, "essa área de segurança pública ficou presa a tradições corporativas", fazendo com que a polícia "continue se imaginando como força capaz de impor a ordem a qualquer custo, inclusive com o uso da força letal, que só deve ser usada em última circunstância".

Para Samira Bueno, a transição "não teve coragem de enfrentar todas as mazelas" brasileiras. "Não alteramos os organismos e suas culturas organizacionais. Os mesmos delegados e coronéis da policia militar continuaram trabalhando. E do dia para a noite dissemos 'olha, você vai deixar de ser o braço armado do Estado, que persegue dissidente político, para garantir a ordem pública e preservar os direitos da população'. É uma transição muito mal feita", explica ela, que é também doutora em Administração Pública pela FGV. Bueno lembra que nessa mesma época crises econômicas reforçavam desigualdades, forçavam a migração em massa de pessoas para grandes cidades e geravam crescimentos urbanos desordenados, o que resultou em uma maior segregação social. "A Polícia Militar como conhecemos data de 1970. Ela é uma junção da Guarda Civil com a Força Pública, com um padrão de trabalho extremamente truculento e que passa a se dedicar ao dia a dia da criminalidade", argumenta.
Democracia x Estado de Direito

Tudo isso significa que, na prática, a democracia no Brasil não se tornou realidade? A cientista política e social San Romanelli Assumpção, do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da UERJ, discorda. "Na contramão dos discursos militantes, acho que o problema central não é de democracia", avalia. Ela argumenta que, apesar de o Brasil não ter lidado com seu legado de violações cometidas pelo Estado, conseguiu parar com a repressão política ditatorial, com a criminalização de credo político e de liberdades de expressão. "Se o conceito de democracia deixar de ser um sistema político eleitoral representativo e começar a ser o número de assassinatos cometidos pelo Estado, então vamos dizer que de 1964 a 1985 éramos mais democráticos, já que nesse período matávamos menos. Acho isso muito problemático", acrescenta. É graças a democracia, lembra ela, que "a periferia ganhou mais meios materiais e educacionais para levantar a voz".

Qual é o problema então? "Precisamos dizer que nossa democracia não conseguiu resolver um problema de Estado de Direito, um problema de violação de liberdades civis e de segurança pessoal, que é o direito à vida e a integridade física", pontualiza. "O que fazemos hoje como país é assassinato em massa, em escala numérica de crime contra a humanidade, números de países em guerra civil, e que não atinge a sociedade de maneira aleatória. Atinge sobretudo homens negros e periféricos", completa. Em 2017, mais de 75,5% das vítimas de homicídio eram jovens e negros, segundo o Atlas da Violência do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e do FBSP. Entre 2007 e 2017, a taxa de pessoas negras mortas subiu 33%. A mortalidade de não negros subiu apenas 3,3%.

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