Algumas questões surgem diante desse cenário. Por que o Estado brasileiro continua matando tanto em tempos democráticos? Por que ele é parte do problema e não da solução? O que deu errado na transição para a democracia para que os índices de violência aumentassem tanto? Para entender essas e outras questões, o EL PAÍS escutou especialistas em segurança pública, alguns no seminário sobre letalidade policial organizado pelo Centro de Pesquisa e Extensão em Ciências Criminais da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo nos dias 13 e 14 de junho.
Entender como as instituições operam significa também entender o que a sociedade brasileira demanda delas. E entender nossa história social e política, marcada pela violência desde que o Brasil foi ocupado durante a colonização. "Ela foi se revelando de diversas formas ao longo da História, desde a violência contra a população indígena, depois com a escravidão, com imigrantes, nos conflitos fundiários, na criminalidade urbana a partir dos anos 70 e 80...", explica o sociólogo Renato Sérgio de Lima, presidente FBSP. Hoje, mais de 500 anos depois da chegada dos portugueses, impera a máxima "bandido bom é bandido morto" na sociedade. "Crime existe em países ditos desenvolvidos. Mas, ao contrário deles, não criamos uma ética pública em que nosso limite é a não-violência. Ela nunca foi interditada nem ética nem politicamente no país", acrescenta. Significa que que a violência não só faz parte de nossa história como também a toleramos. “Só que toleramos a violência sempre com o outro, e com quem achamos que é matável”, completa.
A violência estatal no cotidiano
Considerando que a força letal muitas vezes é necessária, o que leva um policial a matar de forma ilegítima? O coronel da reserva Diógenes Lucca, que comandou a Rota, da PM de São Paulo, tem quatro hipóteses: a ideia muito presente na sociedade de que "bandido bom é bandido morto"; um sistema de segurança pública que, devido à não-regulamentação da Constituição, é pouco eficiente e "faz com o que o policial sinta que enxuga gelo com o ralo do chão entupido e a torneira aberta"; uma "subcultura silenciosa e ativa de não cumprir as normas"; e, por fim, "um sentimento de invisibilidade que o policial tem ao não ver ações tremendamente meritórias, apreensões fantásticas e investigações trabalhosas serem reconhecidas".
Samira Bueno, socióloga e diretora executiva do FBSP, argumenta que "estimulamos um quadro de guerra com fuzil, deixando os policiais também vulneráveis e esquecendo que eles têm de estar no dia a dia para garantir uma convivência pacífica". Em 2017, 367 agentes foram mortos, segundo os dados da organização que dirige. "Eles também estão perdendo, sofrendo com essa situação. Isso não é vida", acrescenta Bueno. "Estamos dando a pena de morte para que o policial decida quem vive e quem morre. E mesmo nos países que tem pena de morte existe um amplo processo legal".
Instituições arcaicas
Instituições que falham em garantir a paz têm também a ver com uma transição democrática incompleta. O sociólogo Sérgio Adorno, coordenador do Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da USP, destaca que em transições como a brasileira "há um processo de reforma das instituições, inclusive as da esfera da segurança pública e da aplicação da lei e da ordem, o que significa renovar lideranças, criar uma polícia mais profissionalizada, com uma ação regulada legalmente". No caso do Brasil, continua ele, "essa área de segurança pública ficou presa a tradições corporativas", fazendo com que a polícia "continue se imaginando como força capaz de impor a ordem a qualquer custo, inclusive com o uso da força letal, que só deve ser usada em última circunstância".
Para Samira Bueno, a transição "não teve coragem de enfrentar todas as mazelas" brasileiras. "Não alteramos os organismos e suas culturas organizacionais. Os mesmos delegados e coronéis da policia militar continuaram trabalhando. E do dia para a noite dissemos 'olha, você vai deixar de ser o braço armado do Estado, que persegue dissidente político, para garantir a ordem pública e preservar os direitos da população'. É uma transição muito mal feita", explica ela, que é também doutora em Administração Pública pela FGV. Bueno lembra que nessa mesma época crises econômicas reforçavam desigualdades, forçavam a migração em massa de pessoas para grandes cidades e geravam crescimentos urbanos desordenados, o que resultou em uma maior segregação social. "A Polícia Militar como conhecemos data de 1970. Ela é uma junção da Guarda Civil com a Força Pública, com um padrão de trabalho extremamente truculento e que passa a se dedicar ao dia a dia da criminalidade", argumenta.
Democracia x Estado de Direito
Tudo isso significa que, na prática, a democracia no Brasil não se tornou realidade? A cientista política e social San Romanelli Assumpção, do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da UERJ, discorda. "Na contramão dos discursos militantes, acho que o problema central não é de democracia", avalia. Ela argumenta que, apesar de o Brasil não ter lidado com seu legado de violações cometidas pelo Estado, conseguiu parar com a repressão política ditatorial, com a criminalização de credo político e de liberdades de expressão. "Se o conceito de democracia deixar de ser um sistema político eleitoral representativo e começar a ser o número de assassinatos cometidos pelo Estado, então vamos dizer que de 1964 a 1985 éramos mais democráticos, já que nesse período matávamos menos. Acho isso muito problemático", acrescenta. É graças a democracia, lembra ela, que "a periferia ganhou mais meios materiais e educacionais para levantar a voz".
Qual é o problema então? "Precisamos dizer que nossa democracia não conseguiu resolver um problema de Estado de Direito, um problema de violação de liberdades civis e de segurança pessoal, que é o direito à vida e a integridade física", pontualiza. "O que fazemos hoje como país é assassinato em massa, em escala numérica de crime contra a humanidade, números de países em guerra civil, e que não atinge a sociedade de maneira aleatória. Atinge sobretudo homens negros e periféricos", completa. Em 2017, mais de 75,5% das vítimas de homicídio eram jovens e negros, segundo o Atlas da Violência do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e do FBSP. Entre 2007 e 2017, a taxa de pessoas negras mortas subiu 33%. A mortalidade de não negros subiu apenas 3,3%.
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