terça-feira, 31 de março de 2020

Imagem do Dia


Fim de um mito da ditadura

Um estudo inédito desmonta o maior argumento econômico da ditadura de 1964: o de que houve um milagre. Não houve. Dois grandes estudiosos mostram que 82% do crescimento da renda dos salários, nos primeiros anos do chamado “milagre”, foi apropriado pelos 10% mais ricos. O estudo chega no momento exato dos arremedos autoritários do presidente Bolsonaro exibidos no meio de uma pandemia. Ele se comporta como se tivesse poderes ilimitados. Na democracia não tem, felizmente. É bom que se desmonte mais um mito da ditadura: o de que ela foi boa na economia durante os anos em que houve crescimento do PIB.


Crescimento para quem? Foi isso que se perguntaram os economistas Marcelo Medeiros, professor visitante da Princeton University, e Rogério Barbosa, pós-doutorando da Universidade de São Paulo. A nota técnica a que esta coluna teve acesso com exclusividade desmonta todo o mérito econômico da ditadura. “Nossa principal conclusão até o momento é de que o crescimento de 1960 a 1970 foi altamente pró-ricos, com grandes parcelas da população tendo perdas ou permanecendo praticamente estagnadas.”

Os militares insistiram ontem em reescrever a história. A ordem do dia elogia a ditadura militar e repete o delirante argumento de que os militares defendiam a democracia quando a golpearam. É cansativo, 56 anos depois, ver as Forças Armadas se prestando a esse papel.

No domingo, depois do temerário passeio de Bolsonaro para mostrar que não seguia orientações das autoridades sanitárias do planeta, ele chegou ao Palácio e disse: “Eu estou com vontade, não sei se vou fazer, de baixar um decreto amanhã...” O decreto seria para determinar a volta de todo mundo ao trabalho contra as ordens dos governadores.

Perguntei ao ministro do STF Luiz Roberto Barroso se Bolsonaro poderia baixar esse decreto. O ministro disse que “formalmente ele pode”, mas que talvez o texto não prevaleça:

– A resposta à sua pergunta é: o presidente pode. O decreto vai subsistir? Vai depender do que o Supremo decidir.

Isso porque a Constituição diz que quem planeja as ações numa calamidade é o governo federal, mas em outro ponto diz que a saúde é um direito. Em outro artigo diz que em saúde pública o poder é compartilhado entre União, estados e municípios.

– As circunstâncias atuais do poder executivo federal reavivaram dois princípios constitucionais que estavam esmaecidos: a federação e a separação dos poderes, e deu protagonismo ao poder legislativo – disse o ministro.

Essa é a beleza da democracia. Ela, contudo, é minada diariamente pelo presidente da República, quando manda que se comemore essa data funesta ou quando faz ameaças implícitas. Por isso é sempre bom derrubar os mitos criados pelas mentiras sempre repetidas.

Cruzando mais dados do que os estudos anteriores, Medeiros e Barbosa chegaram às seguintes conclusões até o momento: “1- O crescimento foi altamente concentrado. Cerca de 82% de todo o crescimento foi apropriado por apenas 10% dos trabalhadores. 2- O crescimento econômico entre 1960 e 1970 foi pró-ricos. A economia os favoreceu desproporcionalmente e deixou os pobres para trás. 3- Houve grande aumento da desigualdade de renda”. Esse último ponto já havia sido registrado em pesquisas anteriores.

Na verdade, segundo o estudo, houve “recessão” para pelo menos um terço dos trabalhadores e houve estagnação para 40% outros. “Somados, 70% dos trabalhadores não tiveram qualquer ganho.”

Por esse motivo, dizem os professores, “não é correto chamar o período de ‘fase do milagre econômico da ditadura’. Uma expressão que descreva melhor o período seria ‘fase do crescimento pró-ricos da ditadura”. Os professores aprofundarão as análises dos períodos posteriores antes de concluir o estudo.

Nos dias dolorosos que vivemos, a população tenta se proteger de um inimigo mortal e perigoso, enquanto o presidente, um admirador da ditadura, ensaia baixar decretos para tirar poderes de governadores e diz sem qualquer simpatia à vida humana e em péssimo português: “Vocês acham que morrerão gente com o passar do tempo? Morrerão”. Para mostrar que fala sério, o governo fez ontem um teatro para mostrar que o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, fica no cargo, mas tutelado.

Tempos são os mesmos

Há 56 anos, as FA intervieram na política nacional para enfrentar a desordem, subversão e corrupção que abalavam as instituições e assustavam a população. Com a eleição do general Castello Branco, iniciaram-se as reformas que desenvolveram o Brasil
Hamilton Mourão, vice-presidente, comemorando o aniversário da "Redentora" 

Os animais e a peste

Em certo ano terrível de peste entre os animais, o leão, mais apreensivo, consultou um macaco de barbas brancas.

– Esta peste é um castigo do céu – respondeu o macaco – e o remédio é aplacarmos a cólera divina sacrificando aos deuses um de nós.

– Qual? – perguntou o leão.

– O mais carregado de crimes.

O leão fechou os olhos, concentrou-se e, depois duma pausa, disse aos súditos reunidos em redor:

– Amigos! É fora de dúvida que quem deve sacrificar-se sou eu. Cometi grandes crimes, matei centenas de veados, devorei inúmeras ovelhas e até vários pastores. Ofereço-me, pois, para o acrifício necessário ao bem comum.

A raposa adiantou-se e disse:

– Acho conveniente ouvir a confissão das outras feras. Porque, para mim, nada do que Vossa Majestade alegou constitui crime. São coisas que até que honram o nosso virtuosíssimo rei Leão.

Grandes aplausos abafaram as últimas palavras da bajuladora e o leão foi posto de lado como impróprio para o sacrifício.

Apresentou-se em seguida o tigre e repete-se a cena. Acusa-se de mil crimes, mas a raposa mostra que também ele era um anjo de inocência.

E o mesmo aconteceu com todas as outras feras.

Nisto chega a vez do burro. Adianta-se o pobre animal e diz:

– A consciência só me acusa de haver comido uma folha de couve da horta do senhor vigário.

Os animais entreolharam-se. Era muito sério aquilo. A raposa toma a palavra:

– Eis amigos, o grande criminoso! Tão horrível o que ele nos conta, que é inútil prosseguirmos na investigação. A vítima a sacrificar-se aos deuses não pode ser outra porque não pode haver crime maior do que furtar a sacratíssima couve do senhor vigário.

Toda a bicharada concordou e o triste burro foi unanimamente eleito para o sacrifício.
Aos poderosos, tudo se desculpa… Aos miseráveis, nada se perdoa.
Monteiro Lobato

O Brasil tem que parar Bolsonaro

Por insanidade, egocentrismo, cálculo político, má-fé ou tudo isso junto, na semana passada o presidente Jair Bolsonaro iniciou mais uma guerra. Disparou tiros para todo lado, alguns fatais, como o afrouxamento do isolamento social, outros nos seus próprios pés. Na tentativa de destruir desafetos, acertou a culatra ao dar palanque nacional aos governadores de São Paulo, João Doria, e do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, pré-candidatos à Presidência em 2022.

Com atuações determinadas, transparência de dados e entrevistas diárias, ambos passaram a ser vistos como dirigentes lúcidos e preocupados com a população de seus estados, em contraponto a um presidente egoísta, incapaz de perceber que a vida vale mais do que a bolsa.

Embora cuidar da saúde e costurar saídas econômicas para evitar o caos não sejam temas excludentes, o embate da semana insistiu em antagonizá-los. Com ganhos expressivos para os 24 governadores que mantiveram a decisão de obedecer às instruções da OMS de isolamento social (apenas três deles – Mato Grosso, Rondônia e Roraima voltaram atrás).

Colheram ainda o endosso da Frente Nacional de Prefeitos, que na sexta-feira enviou carta ao presidente Bolsonaro questionando as dubiedades das recomendações do governo central. Os quase 500 prefeitos de cidades onde vivem mais de 60% dos brasileiros querem saber se devem ou não suspender as restrições ao convívio social, quais as bases científicas e os instrumentos legais para fazê-lo, e se Bolsonaro assumirá o colapso do SUS depois de uma eventual suspensão do isolamento. Afirmam ainda que, a depender da resposta do governo, não restará alternativa senão recorrer à Justiça com “pedido de transferência ao presidente da República das responsabilidades cíveis e criminais pelas ações locais de saúde e suas consequências".

A manifestação dos prefeitos caiu no Planalto no mesmo dia em que bolsonaristas comemoravam as várias carreatas realizadas em seis estados e outras programadas para este domingo, em favor da reabertura do comércio. Embora os carrões demonstrassem ser um ato de patrões, isso animou Bolsonaro a dizer que são os próprios trabalhadores que querem voltar ao trabalho. “Esse negócio de confinamento aí tem de acabar. Deixem os pais, os velhinhos, os avós em casa e vamos trabalhar.”

Como faltou explicar ao entrevistador José Luiz Datena e ao público do popular Brasil Urgente de que maneira os mais novos podem ir trabalhar sem correr o risco de se infectar e transmitir o vírus para os pais, os velhinhos e os avós, a insensibilidade do presidente mais uma vez se escancarou.

Nem em sonhos Witzel e Doria contavam com tamanho impulso vindo de tantos desatinos.

Sem concordâncias e maioria em seu próprio governo – Bolsonaro admite que tem tentado convencer seus ministros a acabar com o isolamento social –, o presidente dobrou a aposta. Dispôs de cerca de R$ 5 milhões para contratar, sem licitação, a IComunicação, para, entre outras tarefas não explicitadas, divulgar a campanha “O Brasil não pode parar”. O vídeo, derrubado ontem pela Justiça, rodou no Instagram, YouTube, Facebook e Twitter.

Antes de virar slogan oficial contra o isolamento social, a frase já havia provocado engulhos ao ser dita pelo empresário bolsonarista Junior Durski: “O Brasil não pode parar por 5 ou 7 mil mortes”. O conceito imita a campanha #MilãoNãoPara (Milano non si ferma), lançada há um mês, quando a cidade italiana registrava 12 mortos e seu prefeito culpava o alarmismo da mídia pelo baque na economia local. Mais de 4,4 mil mortes depois, Giuseppe Sala fez seu mea culpa.

Voz isolada no mundo, por aqui Bolsonaro metralha no sentido inverso e, como o dono do Madero, desdenha da vida: “Infelizmente algumas mortes terão. Paciência, acontece, e vamos tocar o barco”.

Nessa altura, até os que politicamente lucram com as sandices diárias do presidente concordam com a urgência: o Brasil tem que parar Bolsonaro.
Mary Zaidan

Pensamento do Dia


Não é hora de ódio, e sim de empatia e de sofrermos abraçados à distância

Nunca a humanidade esteve tão ameaçada ao mesmo tempo. A nova epidemia golpeia toda a Terra. Nesta guerra não há privilegiados. Todos estamos ameaçados de uma só vez. Romperam-se os clichês de ricos e pobres, de reis e plebeus. Atinge o centro e a periferia das cidades. Iguala pela primeira vez senhores e escravos.

O que fazer perante este monstro? Só há dois caminhos: o de um aumento do ódio a tudo e a todos, ou o da empatia, da compaixão e de um abraço, mesmo que virtual, que una a todos em um mesmo sentimento de ser uma única família universal.

Nestas horas de angústias e temores que nos afligem, tentar politizar a tragédia que cobrará tantas vítimas é diabólico. Neste momento único de perplexidade universal, necessitamos mais do que nunca de sentimentos limpos que nos imunizem contra o ódio e o medo. Precisamos inventar palavras novas para dar nome à velha e surrada esperança.


Necessitamos de poetas de uma esperança nova, capazes de descobrir essa grande metáfora da humanidade, às vezes tão orgulhosa de si e às vezes como hoje tão impotente perante um simples vírus que a põe de joelhos.

Nem as grandes guerras do século passado que ceifaram milhões de vidas foram tão universais como esta epidemia que abraça o mundo. Possivelmente por isso nos produza uma angústia inédita. Pelo desconhecido do novo vírus e por ter apanhado a ciência e a medicina de surpresa, também elas perplexas e amedrontadas. Algo que acredito ser verdade nestas horas incertas é que a humanidade não sairá vitoriosa desta nova guerra de inimigos invisíveis e imponderáveis se aumentar os decibéis do ódio e da informação maliciosa.

Não sabemos ainda em que medida a epidemia golpeará o Brasil em relação a outros países, nem quantas vidas cobrará. Mas uma coisa é certa pelo que eu conheço e amo deste país. É que em sua imensa maioria ele conhece melhor do que muitos o que significam empatia e compaixão, especialmente entre os mais pobres, acostumados como são a viverem sem esperança e por isso mais solidários.

O Brasil não é um país de ódio. É, às vezes, de excessiva resignação perante a injustiça que o golpeia e para as quais as classes privilegiadas fecham os olhos. É a política que às vezes o envenena.

Mas esta guerra rompe de forma inédita as velhas trincheiras entre privilegiados e descendentes de antigos escravos. Nesta hora, em vez de fechar os olhos à cruel realidade que corresponde a todos, deveríamos organizar um grande abraço coletivo e simbólico, mesmo que virtual, que abranja a todos em um só desejo comum de sair deste teste melhor do que entramos, com mais vontade de nos amarmos que de nos odiarmos.

Só essa empatia universal devolverá aos que se salvarem da epidemia um coração mais sensível à dor alheia e com mais vontade de recomeçar a gostarmos da vida com uma óptica diferente da do ódio e das barreiras sociais que deveriam ser derrubadas nesta hora de dor universal.

Para situações inéditas como as que estamos vivendo, já não servem mais as velhas palavras que nos tinham ensinado. Precisamos inventar palavras novas e até sentimentos novos que reflitam o melhor do ser humano, e que o egoísmo e a ânsia de possuir e dominar possam ter ofuscado. Necessitamos mais do que nunca de grandes poetas capazes de decifrar essa grande metáfora da humanidade, às vezes tão orgulhosa de si, e outras tão impotente contra um simples vírus que a põe de joelhos.

Não é verdade que sejamos todos piores do que parecemos. Somos melhores. E às vezes são paradoxalmente as grandes tragédias que desempoeiram nossos melhores sentimentos humanos.

O escritor americano Ernest Hemingway se perguntava, no título de uma de suas obras, “por quem os sinos dobram”. Hoje, dobram em todo mundo para nos recordar que ao final, no fundo do coração humano, mais do que veneno há uma grande necessidade de amar e de desfrutar da vida.

O que fazer então nestas horas com quem, como novos cegos, continuam empenhados em semear ódios e discórdias, incapazes de se unir em uma mesma dor e medo? Para eles valeria recordar uma das frases mais sombrias e emblemáticas do profeta Jesus de Nazaré, quando disse “deixe que os mortos enterrem seus mortos” (Mt., 8,22).

A vida continuará sendo sempre mais forte que a morte.

Crise é consequência

Uma crise monetária não é a causa, mas a consequência de uma má administração político-econômica de um país. Dizendo bem… nossa crise econômica — que também é ética — se origina, fundamentalmente, no dinheiro que foi roubado
Jorge Luis Borges

O jogo do capitão

A politização da pandemia era previsível. Afinal, a tensão que alimenta as correntes pró e contra Bolsonaro está no radar da política desde a eleição de 2018. Seu comportamento açodado nos últimos tempos joga lenha na fogueira. Não há mais arquitetura diplomática capaz de uma conciliação.

De um lado, a banda da intelligentzia, liderada por cientistas e especialistas, recomenda rígida quarentena com ênfase nas pessoas com mais de 60 anos. De outro, a ideia de abrir o portão travado da economia, com a volta ao trabalho dos que não estão na área de risco, incluindo escolas e atividades produtivas.

Na primeira linha estão as principais lideranças mundiais, a partir da Organização Mundial da Saúde; a segunda tem na vanguarda de defesa o nosso presidente. Que quer um jogo com suas próprias regras. Até sua fonte de inspiração, Donald Trump, recuou de sua posição inicial de considerar passageiros os efeitos da pandemia e aceitou a quarentena nos Estados Unidos, agora o epicentro.

A tese de que a economia fechada pode ser pior que isolar a população é polêmica. A maior parte dos pensadores, incluindo economistas, aponta como absoluta prioridade "salvar vidas". Especialistas que discutam. Vejamos o que poderá ocorrer na política-eleitoral.


Primeiro, o presidente Bolsonaro perde razoável parcela de força. Os governadores lhe fazem um cerco. Seus 30% de votos arrefecem. Não teria hoje 57 milhões de eleitores. Seus exércitos nas redes sociais já não estão aguerridos como antes. Segundo, fortes parcelas das classes médias que nele votaram se distanciam. Terceiro, o Congresso, mesmo que aprove pautas de interesse do Executivo, sob a sombra do coronavírus, se mostra independente. Os presidentes do Senado e da Câmara, Davi Alcolumbre e Rodrigo Maia, condenaram com veemência a manifestação presidencial.

O capitão, parece, não mudará ação ou expressão. Os generais que o cercam se alinham, apesar do imenso esforço para interpretar sua fala. Ora, ele é contra a quarentena mesmo. O ministro da Saúde, Henrique Mamdetta, também tentou não desdizer o chefe. O chamado gabinete do ódio, composto de olavistas e do filho Carlos, dá o tom dos discursos.

O nó está feito. Como desatá-lo? Apenas o desfecho da crise contém a resposta. Se a curva da morte continuar a subir em escala acelerada, os defensores do isolamento elevarão sua expressão. A recíproca é verdadeira. Portanto, a imagem presidencial depende da evolução da crise.

Os governadores poderão se transformar em grandes cabos eleitorais das eleições de outubro, se não forem adiadas. A esfera política deverá agir com pragmatismo, levando para a balança prós e contras de Bolsonaro. E se este continuar com a animosidade, terá contra a maioria do Parlamento.

Será muito difícil o presidente subir ao pódio de 2022 se apostar no confronto, repudiando conjuntos parlamentares. Claro, 2021 poderá apresentar um PIB mais elevado. Será a esperança do capitão, que já pode inserir 2020 em seu arquivo de tempos perdidos. Mesmo com o jogo ainda no primeiro tempo, sua posição já está reservada na galeria dos líderes mais estrambóticos do planeta.

Uma data para ser lembrada como a do estupro da democracia

A ditadura militar de 1964 durou 21 longos anos – parte deles tenebrosos, com a morte e o desaparecimento de 434 pessoas e o envolvimento de 377 outras, direta ou indiretamente, em práticas de tortura e assassinato. A tortura a presos políticos e a eventuais inocentes foi adotada como política de Estado.

A liberdade e o respeito aos direitos humanos foram suprimidos no país por largo tempo. As garantias individuais, também. A Constituição foi rasgada e deu lugar a periódicos atos institucionais, o mais célebre deles o AI-5, que garantiram a continuidade do regime autoritário até ele se desmanchar.


Há dois dias, o general Hamilton Mourão, vice-presidente da República, disse que o golpe de 64, que ele não chama de golpe, é um fato que “pertence à História”. Se o reconhecesse como um fato positivo o teria dito com todas as letras, como no passado já disse. Mas seus ex-colegas de farda insistem em exaltar o feito.

Ordem do dia assinada pelo ministro da Defesa e pelos comandantes do Exército, Marinha e Aeronáutica a propósito dos 56 anos do golpe completados hoje, confirma que os militares nunca engoliram e talvez jamais venham a engolir o fato de terem rompido com a legalidade e implantado no país uma ditadura.

Custa a crer, mas a ordem que será lida e distribuídas em todos os quarteis afirma que o golpe foi um movimento que representou “um marco para a democracia”. Como um marco? Marco de quê? Da destruição dos princípios e valores que distinguem entre um país democrático e outro que não é? Nesse caso faria sentido.

Faltou um bom redator para dar um trato à nota? Ou o ministro da Defesa e os comandantes das três armas querem mesmo dizer que um dos marcos da democracia entre nós foi a intervenção armada que depôs um presidente eleito pelo povo, substituindo-o por sucessivos generais “eleitos” por um Congresso emasculado?

Diz a nota que “o Brasil reagiu com determinação às ameaças que se formavam àquela época&". Uma das utilidades do papel é que ele serve para que se escreva qualquer coisa. Que Brasil reagiu? As chamadas “forças produtoras”, a imprensa e parte da classe média assustada, como de hábito, apoiaram o golpe.

Mas daí generalizar e apresentá-las como se falassem pelo país... O povo, como em outras ocasiões históricas, uma delas a da Proclamação da República, a tudo assistiu bestificado. Povo! Como se usa seu santo nome em vão. Como a palavra povo serve para legitimar medidas que seriam para o seu próprio bem.
 
Não há um só líder político, em democracia ou ditadura, que não encha a boca para dizer que fala em nome do povo. Os mais modestos, se há algum modesto, diz que fala em nome dos seus eleitores. O presidente Jair Bolsonaro usa as duas formas de acordo com as conveniências do momento. Pura enganação.

O ex-presidente Tancredo Neves ensinava que político depois de eleições não tem mais voto – teve. Passou. A cada dia deveria se lembrar disso. Se lembrasse, cuidaria melhor do povo para reconquistar os votos que perdeu desde que o resultado da eleição foi proclamado. Bolsonaro parece não se dar conta disso.

Da ordem do dia sobre o golpe que inventou o falso “milagre econômico brasileiro”, um período que na verdade beneficiou os mais ricos em detrimento dos mais pobres, só é aproveitável o trecho que reafirma que as Forças Armadas estão “submetidas ao regramento democrático”. No que não fazem nenhum favor.

No esforço de guerra contra o coronavírus faltam os militares

E as Forças Armadas, hein? Onde estão no momento em que o país se arma com atraso para sobreviver à primeira grande onda do coronavírus? O poderoso Pentágono, sede em Washington, do Estado de Defesa norte-americano, trabalha com a hipótese de que o mundo será atingido por três ondas a intervalos regulares.

Os militares estão sendo vistos nas principais cidades dos países mais devastados pela pandemia. Patrulham ruas, aplicam as ordens de confinamento, transportam caixões com mortos. Espera-se que por aqui nada disso seja necessário. Mas quem garante? E enquanto não se souber, o que eles poderiam fazer?

Não poderiam estar sendo empregados em ações de prevenção à doença – como? Eles sabem como. Falta uma ordem do alto? Do ministro da Defesa? Ele espera uma ordem mais do alto? Do presidente Jair Bolsonaro? Mas esse não parece interessado em dar. Do ministro da Saúde? Ele não dá ordens aos militares.

Em sua recente, moderada e neutra ordem do dia, o comandante do Exército elogiou médicos e enfermeiras aos quais chamou de guerreiros da linha de frente no combate ao coronavírus. Os militares não poderiam formar linhas de trás? Eles são bem treinados para agir em situações ainda piores.

Cepa do vírus no Brasil


Tribunal do futuro

Há uma sensação de que, se Jair Bolsonaro não for amarrado a uma árvore e amordaçado antes de tomar mais medidas desastrosas, o custo em vidas —pessoas que não precisariam nem ter sido infectadas e que morrerão— será incalculável. Mas, um dia, essas vidas terão de ser calculadas. Todos os membros do governo que, por atos ou palavras, se opuseram à política de isolamento social e contribuíram para a disseminação do coronavírus serão obrigadas a pagar por isso.

Entre esses, deverão incluir-se o senador Flávio Bolsonaro e o ministro da Destruição do Meio Ambiente, Ricardo Salles. Eles postaram um vídeo do dr. Drauzio Varella gravado há dois meses, quando a situação era diferente, como se se referisse a hoje, e depois pediram "desculpas pela distração". Essa "distração" pode ter tirado de casa e exposto à doença milhares de pessoas que respeitam Drauzio Varella e seguem sua orientação.

Na apuração das cumplicidades, não poderão faltar pascácios como Regina Duarte, secretária da Cultura, e seu subordinado que lhe é superior, Sérgio Camargo, diretor da infeliz Fundação Cultural Palmares —nenhum deles agente sanitário ou sequer mata-mosquitos, mas que se apressaram a aderir à política de contaminação.

O general Augusto Heleno, chefe de um gabinete-fantasma, deveria ter refreado seu incompreensível instinto de superioridade e obedecido à quarentena que, como infectado, foi ordenado a cumprir. Ao sair de casa e roçar suas ombreiras nos colegas, pode estar lhes repassando suas patogenias. E, num nada hipotético tribunal do futuro, o próprio ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, não sairá impune se consumar a troca de seu juramento na medicina pela política irresponsável de Bolsonaro.

Aliás, chamar Bolsonaro de irresponsável também não é correto. Ele é o grande responsável pelo que vier a acontecer no Brasil —e a isso terá de responder.

Ruy Castro

‘Vão morrer, ué, lamento’

A sociedade se move. De Manaus a Porto Alegre, incontáveis voluntários, líderes religiosos, comunitários e empresariais multiplicam a coleta de alimentos e de kits de higiene para áreas onde o poder público não alcança, porque delas sempre se manteve distante — salvo nas ações de repressão policial.

São 74 milhões (37%) de brasileiros sem saneamento, parte abrigada em imóveis com mais de três por quarto, e a maioria agrupada em famílias cuja renda oscila no salário mínimo. Estão mais expostos ao vírus.

“Alguns vão morrer? Vão morrer, ué, lamento” — disse Jair Bolsonaro, semana passada, com a naturalidade de quem lava as mãos e o distanciamento, talvez consciente, de possíveis cenas de comboios de caixões, com vítimas da “gripezinha”. A lógica de Bolsonaro é a da campanha pela reeleição mesmo num cenário devastado pelo medo coletivo: “Nós não podemos parar a fábrica de automóveis porque tem 60 mil mortes no trânsito por ano, está certo?”


A maioria reage, mostram pesquisas recebidas no Planalto. Indicam um presidente em derretimento na própria base. O Datafolha (20/3) confirma: entre aqueles que assumem ter votado em Bolsonaro, 15% declararam-se arrependidos.

Não é irreversível, mas é a fotografia eleitoral mais recente. Isso equivale à perda potencial de 8 milhões de votos sobre os 57 milhões de 2018. A corrosão é visível nos estados, onde governadores têm aprovação até 30 pontos acima do presidente.

Na raiz está a imprevidência. Um mês atrás (20/2), Bolsonaro insuflava protestos contra o Congresso e o Supremo, atacava governadores ameaçados por motins de PMs e calculava eventuais prejuízos à reeleição com avanço do PIB a 2% no ano.

Enquanto isso, na Alemanha, a conservadora Angela Merkel organizava um plano emergencial de saúde pública, aumentava gastos e garantias às dívidas. Na época, o Brasil tinha 14 casos suspeitos, nenhum confirmado. Hoje, as projeções para o PIB são de -1,7% (Citi), - 2,8% (Safra) e - 3,4% (Goldman Sachs). Bolsonaro persevera na campanha. Agora caça culpados pelos próprios erros.

Denúncia papal

E isso é importante porque todos sabemos que defender as pessoas pressupõe um descalabro econômico. Seria triste se alguém fizesse o contrário, o que levaria a morte de muita gente, algo como um genocídio viral.
Já se notam algumas consequências que devem ser enfrentadas: fome, principalmente das pessoas sem trabalho fixo, violência, usura, a verdadeira praga do futuro social, criminosos desumanizados
Papa Francisco

Saúde, economia e democracia

O Brasil é uma democracia de massas, com um Estado ampliado. O presidente da República é eleito pelo voto direto, secreto e universal, assim como governadores e prefeitos, todos com atribuições bem definidas em sua esfera de poder. Ninguém pode tudo. O Estado brasileiro é uma federação, na qual a União, estados e municípios têm autonomia no exercício de seus respectivos papéis. Um complexo de leis aprovadas pelo Congresso e interpretadas pelo Judiciário limita o Executivo, em todos os níveis. Orgãos de controle, fiscalização e coerção, subordinados aos três poderes, zelam para que as regras do jogo sejam respeitadas, tanto pelos cidadãos quanto pelas autoridades.

O presidente Jair Bolsonaro tem dificuldades para operar esse complexo institucional e se relacionar com seus representantes, o que exige mais liderança do que autoridade formal, que é limitada. Essa é a causa de conflitos que não deveriam existir na resolução de graves problemas nacionais. O presidente da República prefere liderar e se legitimar pelas redes sociais, que emulam com as instituições da democracia representativa e criam um ambiente político de grande fluidez e volatilidade.

Bolsonaro tem uma concepção autoritária de poder, adquirida na Academia Militar de Agulhas Negras, na época da ditadura militar. É uma vertente do positivismo disseminado pela Escola Militar da Praia Vermelha, que inspirou a República, o “florianismo”, o movimento tenentista, a Revolução de 1930, a Intentona de 1935, o Estado Novo e o golpe militar de 1964, além de uma série de outras rebeliões e quarteladas. Parte do pressuposto de que cabe aos militares tutelar a sociedade brasileira e exercer o papel de Poder Moderador, extinto com o fim da monarquia.

Essa concepção vem de longe, mais precisamente das intervenções militares ocorridas no período regencial, que tiveram um duplo papel. De um lado, evitar a fragmentação territorial do Brasil; de outro, preservar a escravidão, alicerce econômico da monarquia, a pretexto de que a abolição desorganizaria a economia. Sua gênese é o período de grande turbulência entre a abdicação de D. Pedro I e a posse de D. Pedro II no trono do Brasil, ou seja, entre 1831 e 1840. Na Regência Trina (1831 a 1834) e na Regência Una (1834 a 1840), se digladiavam Moderados (maioria, representavam a elite e defendiam centralização), Restauradores (queriam a reunificação do Império, com a volta de D. Pedro I) e Exaltados (lutavam pela descentralização do poder).

A oposição entre restauradores e exaltados de um lado e os regentes do outro torna o cenário político bastante delicado. A partir de 1833, a situação se agravou, com revoltas nas províncias: na Cabanagem (1835-1840), no Pará, os revoltosos declararam independência; na Sabinada (1837-1838), na Bahia, defendiam um regime republicano e federalista; na Balaiada (1838-1840), no Maranhão, defendiam a abolição; na Revolta do Malês (1835), na Bahia, a independência e um regime islâmico.

No Sul, a Revolução Farroupilha ou Guerra dos Farrapos (1835-1845) foi mais longa e duradoura, sendo deflagrada por conta de aumentos de impostos. Em 20 de setembro de 1835, foi proclamada a República Rio-Grandense, tendo como líder Bento Gonçalves, que governou a província em 1837. Com o comando de Giuseppe Garibaldi, proclamaram a República Juliana em Santa Catarina. A revolta ultrapassou o período regencial e só foi finalizada no segundo reinado, com a entrada em cena do Duque de Caxias no comando das tropas imperiais. Um acordo com Bento Gonçalves, líder principal dos revoltosos, pacificou o Sul do país. Garibaldi havia sido derrotado e voltara para a Sardenha, de onde partiu para unificar a Itália.

Essa contradição entre centralização e descentralização, que o general Golbery do Couto e Silva chamou de “sístole e diástole” (contração e relaxamento dos ventrículos do coração, respectivamente), foi decisiva para os ciclos autoritários no Brasil, tendo por ápice o Estado Novo de Getúlio Vargas, após a Revolução de 1930, e a vigência do Ato Institucional nº 5, no regime militar. O Estado Novo durou de 1937 a 1945 e sucedeu, portanto, as fases do Governo Provisório (1930 a 1934) e do Governo Constitucional (1934 a 1937). A característica principal do Estado Novo era o fato de a Constituição de 1937, escrita por Francisco Campos, se inspirar no modelo nazifascista europeu, então em voga à época. O regime militar repetiu o ciclo, acabando com as eleições diretas para governadores e prefeitos, entre outras medidas, mas essa é uma história mais conhecida.

O presidente Jair Bolsonaro está em choque como os demais poderes, os governadores e os prefeitos e as autoridades da saúde pública, em todos os níveis, pois opera na lógica da centralização do poder. Esse choque nos coloca diante de três ameaças: o crescimento exponencial da epidemia de coronavírus, a recessão profunda da economia, mesmo com as medidas adotadas até agora, e o recrudescimento do viés golpista de setores da sociedade que sonham com uma intervenção militar. A escalada de uma pandemia é um cenário perigoso, que precisa será contido. Evolui por etapas: contágio comunitário, internações hospitalares, aumento dos casos de morte assistida, caos hospitalar, mortes desassistidas, colapso econômico, furtos, roubos, saques e execuções. Democracia nenhuma resiste a uma escalada dessa ordem, sem sofrer um golpe de estado ou mergulhar num ambiente de ruptura da coesão social e terror. Se prevalecer a teoria da “gripezinha”e do “resfriadinho”, contra a política de distanciamento social, a evolução da crise seguirá esse roteiro trágico. É a teoria do caos.

O que fazer com um presidente que se comporta como moleque?

Jair Bolsonaro deveria ser afastado da presidência, disse um artigo assinado por uma antropóloga brasileira no jornal Washington Post, como mostra a ilustração que abre este post. Não podemos dar ouvidos à imprensa americana, que valoriza apelos brasileiros por impeachment de Bolsonaro? Concordo com o artigo. A democracia precisa funcionar, os outros poderes precisam se manifestar. Onde estão os presidentes do Congresso e do STF? Maia, Alcolumbre, Toffoli! Não há motivo maior para impeachment do que o crime contra a humanidade. Temos um presidente censurado até pelo Twitter, por desrespeitar as regras de convívio social. 


'Bolsonaro está ameaçando o Brasil. Ele 
pode sofrer impeachment'

O presidente Donald Trump aguardou milhares de mortos para se transformar em estadista. Trump, a exemplo dos presidentes populistas inteligentes, gosta de uma guerra para liderar uma nação. Mesmo que seja uma guerra interna contra um vírus agressivo e quase terrorista. Trump sabe que não pode se omitir, perderá eleições se deixar as mortes de cidadãos americanos se multiplicarem como agora em Nova York. Imagens de americanos tombando em solo nacional, vítimas de um inimigo invisível, sem direito a despedida de parentes ou funerais, com caixões enfileirados, não fazem bem à popularidade de nenhum presidente.

Nosso populista de extrema-direita no Planalto é um capitão que foi expulso do Exército por indisciplina. Não aprendeu com a idade. É um idoso de 65 anos, faz parte do grupo de risco e sai por aí sem o menor pudor, podendo ser contaminado ou podendo contaminar seus seguidores. A mídia e a imprensa diariamente ouvem especialistas e políticos para tentar frear a influência de Bolsonaro. O duplo trabalho médico e jornalístico, todo dia, destinado a desmentir Bolsonaro, é insano. Brasileiros não podem se deixar guiar por um desvairado que não respeita a OMS nem seu ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, que reduziu muito suas aparições por não saber se continua médico ou vira puxa-saco. Bolsonaro não respeita a Fiocruz. Não respeita nossos infectologistas e médicos. Não respeita ninguém. Não pode esperar que o respeitemos.

Sair num domingo de sol, quando a população tenta obedecer às normas restritivas para se proteger e proteger o próximo, e incitar à quebra do isolamento e distanciamento social não é apenas um ato de molecagem. É uma ofensa à humanidade. E Bolsonaro - ou qualquer líder no mundo - não pode ficar acima disso. Deu uma de machão: “Enfrenta o vírus como homem, pô. Não como moleque”. Uma conclamação que deveria, por todos os cânones institucionais, ser motivo de impeachment ou camisa-de-força.

Sabemos qual é a definição de “homem” para Bolsonaro. Quanto a ser “moleque”, a definição original e fria no dicionário é “rapaz de pouca idade”, “criança que faz travessuras”. A conotação que Bolsonaro deu a moleque, ao desafiar o povo a ir para a rua, dirigindo-se a pais de família (e às mães de família) é a coloquial e negativa. Vejamos alguns sinônimos de “moleque”:canalha, pulha, abjeto, ignóbil, indecoroso, indigno, infame, mesquinho, miserável, ordinário, patife, sacana, sem-vergonha, sórdido, torpe, vil, desonesto, mau-caráter, pilantra, salafrário. Resumindo, para o dicionário Michaelis, o moleque a que se referiu Bolsonaro não é o garoto travesso mas o homem que “não tem integridade e seriedade; um velhaco”.

Hoje, Bolsonaro rodou a baiana mais uma vez, porque todo dia é dia para ele insultar a ciência e importunar o país, não respeita nem domingo nem segunda. "Vamos enfrentar o problema? Ou o problema é o presidente? Tem que trocar de presidente e resolve tudo?" Não, Bolsonaro, não resolve tudo. A pandemia não deixará de existir. A crise não sumirá. Mas não precisaremos mais ser insultados por suas declarações despropositadas, o jornalismo, os ministros e os especialistas não precisarão desperdiçar tempo todo dia desmentindo o presidente, contradizendo o presidente, explicando que o presidente não deve ser ouvido nem imitado. Um presidente que não deve ser ouvido, um presidente que precisa ser ignorado pelo bem do país...sério...já deixou de ser presidente...e passou a ser um figurante da República. Já foram dadas todas as chances para Bolsonaro agir como verdadeiro chefe da nação. Ele ignorou todas. Vamos parar de "não falar" em impeachment? 

segunda-feira, 30 de março de 2020

Pensamento do Dia


Para Trump, 200 mil mortes nos EUA são vitória. Perto do "Mito", vira Kant

A exemplo de Jair Bolsonaro, Donald Trump não dava muita bola para esse tal coronavírus. Fazia piadinhas, ironias, sugeria que isso era uma perturbação a seu governo oriunda dos democratas, que estariam tentando politizar a questão. Até que recebeu o alerta. Milhões poderiam morrer nos EUA. E ele mudou de prosa. Hoje, em todo o universo, o único negacionista é mesmo Jair Bolsonaro. Neste domingo, Trump prorrogou a quarentena até 30 de abril. Mas essa não foi a notícia mais importante — ou horripilante — do dia por lá.

No cenário mais pessimista, previa-se que a Covid-19 poderia matar até 2,2 milhões de americanos. Agora, o presidente considera que, se a doença matar 100 mil ou mesmo 200 mil, isso já será uma vitória.


“É tudo histeria e conspiração!!!” (Stuttgarter Zeitung)
Não se trata de delírio. Anthony Fauci, diretor do Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas, estima que haverá mais de 100 mil mortes nos EUA em razão da Covid-19. Informa a Folha: "Desde 2010, gripes matam entre 12 mil e 61 mil americanos por ano, de acordo com os Centros de Controle e Prevenção de Doenças dos EUA (CDC, na sigla em inglês)." Aqui no Brasil, alguns cafajestes leriam assim esses números: "Estão vendo, isso é normal..."

Ocorre que as, digamos, gripes tradicionais continuarão a fazer seus cadáveres. Mas notem que a Covid-19, na estimativa mais modesta, faria em 2020 quase o dobro de vítimas do que fizeram as outras em seu pior ano.

Como se vê, não é verdade que Bolsonaro não tenha ideias próprias e se limite a ser um capacho do presidente americano. Quando o assunto é morticínio em massa, ele tem a sua própria concepção de mundo. E faz Trump parecer um verdadeiro Kant.
Reinaldo Azevedo

Presidente acima de todos, e de tudo

É impressionante um líder colocar em risco a vida dos seus cidadãos
Steven Levitsky, autor de "Como as democracias morrem"

O clown sem graça

Ó meu ódio, ódio majestoso,
Meu ódio santo e puro e benfazejo
Cruz e Souza, "Ódio Sagrado"
.

Numa visão superficial, parece que na esquerda sobram os quadradões e na direita deitam e rolam os “de boa”. O presidente, quer dizer, me desculpem pela violação de um cargo tão sagrado, me corrijo: o presindecente apregoa por aí que o vírus made in China é bichinho bobo e que temer um inimigo miúdo desses é pura histeria. Ele se parece com amigos inconsequentes que sempre tivemos. A esquerda, nessa metáfora, é o tiozão preocupado, o que acha que nove da noite é hora avançada para moços e moças estarem pelas ruas. No caso do enfrentamento ao vírus, é melhor se trancar em casa e esperar o pior passar. Nunca fomos tão tiozões e tiazonas. Viva a caretice, que enfim encontra serventia.

Noves fora o vírus e tudo que ele nos faz enfrentar — seu contágio, de um lado, nosso caráter humano, de outro —, o fato é que, diante desse desgoverno eleito, nossos dias são dedicados a assombros, sustos e depressões. Pelo menos os meus têm sido assim. Penso que, por sorte, tenho a literatura, essa ilusão que nos fortalece ao oferecer uma realidade paralela. Quem não usufrui da arte (como “produtor” ou “consumidor”) passa um perrengue maior. Leiam! Ouçam música! Visitem virtualmente os museus! Dancem sozinhos em seus quartos!


Não estou contra este governo agora que virou modinha ser contra — modinha é esta expressão. O atual ocupante da presidência entrou no meu raio de observação quando, em seu voto no impeachment da Dilma, fez loas a um desqualificado torturador. Naquele instante, achei que o senhor deveria ter saído preso da sessão. Não saiu, o que prova que nosso acordo em torno da Anistia deixou um monte de cicatrizes e, peço desculpas pela próxima palavra, empoderou os que, a serviço do Estado, torturaram e mataram.

O sujeito em foco neste texto tem dado mostras claras de que não tem preparo nenhum, muito menos para governar. Alguns dizem que está de olho na reeleição, ouso discordar, os políticos estão sempre de olho na reeleição. Para mim, ele governa respondendo a interesses escusos, especula-se que das milícias. Soma-se a isso sua personagem popularesca. Apegado à imagem de machão e de homem do povo, ecoa impropérios, incentiva a violência, em particular contra as mulheres. A palavra incivilidade cai como uma luva sobre o desgovernante do país.

Sua atuação no dia das manifestações a seu favor deu mostras de seu descontrole. Suspeito de ser portador do vírus que, indiferente a países ricos ou pobres, tem aterrorizado o mundo, o paspalhão foi à rua cumprimentar e tirar selfies com os fãs. Merecia, novamente, sair dali preso. Passa-se mais uma vez o pano, dada a conjuntura, com álcool em gel ou com a mistura de um litro de água sanitária em três litros de água comum.

O que parecia irresponsabilidade suficiente não parou aí; no dia 22 de março, em rede nacional, o senhor jogou a ciência e toda a experiência no enfrentamento da nova doença dos países estrangeiros no lixo. Um arroubo menos que juvenil decidido na antessala da presidência, no que é chamado de escritório do ódio.

No dia 18 de março, quando sairíamos às ruas pela educação (uma das áreas mais afetadas pela política ideológica que se diz sem ideologia), os protestos, em período de recolhimento, migraram para as janelas e varandas. O panelaço — símbolo da luta contra o governo Dilma — foi resgatado por quem não admite tamanhos descalabros. Claro que, agora, àqueles que nunca se convenceram de que o atual governo poderia ser bom juntaram-se os arrependidos. O devaneio do clown (sem graça) — ou o anticlown, como sugere minha irmã Teresa Cristina, revisora de meus textos — pelas ruas, quando poderia estar contaminado pelo vírus, foi um facho de luz sobre quem acreditou que, pior do que estava (no tempo do PT), não ficaria. Ficou, ficou muito.

O risco duplo para o país

Jair Bolsonaro é o pior presidente que poderíamos ter para nos guiar na travessia desta tempestade sem precedentes. Ele sempre foi menor do que a cadeira que ocupa, mas agora revela em cada ato, palavra e decisão que conspira contra a saúde da população. Não é uma questão de gostar ou não do governante. A análise objetiva leva à conclusão de que ele hoje é um obstáculo a que o país supere a turbulência, minimizando perdas humanas e econômicas.

Nas últimas semanas, foram sucessivos episódios completamente desviantes. Açulou manifestação contra o Congresso, foi cumprimentar manifestantes em época de pandemia e que carregavam faixas hostis a lideranças políticas, fez declarações bizarras e mal informadas sobre assunto da maior gravidade. Estimulou brasileiros a não seguirem a orientação das autoridades sanitárias e enquadrou o ministro da Saúde, Luiz Mandetta, que ficou no governo, depois de “adaptar” suas opiniões, para usar a expressão da ex-ministra Marina Silva. É o soldado que marcha errado no batalhão dos governantes mundiais. Todos os outros, com maior ou menor rapidez, entenderam que nenhum líder pode pôr em risco a vida dos seus concidadãos.


Bolsonaro não faz o que faz por incompreensão do problema e dos riscos. Ele não se importa com o perigo que estamos correndo. O centro de suas atenções está apenas nele próprio e nos seus filhos. Vê em cada sombra um adversário, em cada discordante, um traidor, em cada decisão de outra autoridade, uma conspiração contra o seu poder.

Além dessa mentalidade , o presidente Bolsonaro também está fazendo um cálculo político. Ele acha que depois que o coronavírus passar -“algumas mortes terão, mas acontece, paciência”, como disse em seu português claudicante - ficará o amargo gosto da crise econômica. E ele poderá jogar todo o peso dela sobre os seus adversários políticos. Bolsonaro só pensa em reeleição e é capaz de pôr a saúde dos brasileiros em risco para chegar lá com condição de renovar seu mandato.

Mas renovar o mandato para fazer o quê? Bolsonaro não governa, nunca se aprofunda nas decisões que serão tomadas, não tem o gosto de estudar as soluções para os problemas nacionais. Seu pensamento é como a sua fala: sincopado, non sequitur, rasteiro. Chances para se tornar uma pessoa mais capaz de entender o país que ele governa ele teve. Foi de uma das melhores escolas do Exército, passou 28 anos na Câmara, em que há excelentes técnicos sobre qualquer assunto que se queira entender. Não liderou, não foi respeitado, não relatou matéria importante. Passou o tempo parlamentar em agressões aos colegas e à história, em defesas corporativas, em miudezas.

Foi eleito para governar o Brasil e poderia ter entendido qual é o comportamento correto de uma pessoa pública, mas continuou com seu circo de horrores diário. A coleção dos absurdos que disse e fez é inesgotável. O país foi se acostumando a ter um presidente com maus modos. Foi se acostumando a se perguntar: qual foi a última de Bolsonaro? Várias vezes ele atravessou linhas intransponíveis na democracia. Ele e seus filhos. Um filho, vereador do Rio, senta-se na mesa com ministros e dá ordens no Planalto, para citar um exemplo. Outro filho, deputado, ofende o maior parceiro comercial, o chanceler o defende, e o presidente tem que tentar arrumar a bagunça. O país foi aceitando o inaceitável. Nesta pandemia, no entanto, ele tem feito muito mais do que quebrar normas de condutas. Ele hoje representa uma ameaça concreta à saúde pública.

O país está lidando com um inimigo que ameaça, adoece, sufoca e mata. É da vida de pessoas que se trata. E Bolsonaro sistemática e reiteradamente subestima o perigo que nos ronda, quando deveria ser o primeiro a se perguntar o que é possível fazer para proteger ao máximo os brasileiros.

Quando as instituições brasileiras não reagem a tantos abusos, a democracia começa a morrer, o que sempre foi no fundo o seu grande projeto. Admirador confesso de ditadura e torturadores, Bolsonaro não acredita, nem respeita, os limites constitucionais. Para ele, são um estorvo. A grande pergunta é o que mais o país aceitará. E quais as cicatrizes que esse tempo deixará na democracia brasileira.
Míriam Leitão

Aberta a Era do atravessar para o outro lado da rua

A fila na farmácia não é grande. Três pessoas aguardam à porta, encostadas aos dois postes de sinalização de trânsito. O olhar é de resignação ou, melhor, de compreensão. Foi sabiamente instilado um medo coletivo que nos levou a uma aceitação como que de uma nova condição humana: o Homo Hygienicus.

Foi um longo processo em que nos fomos afastando da rua, pensando que ela era cada vez menos segura. Estava tudo errado, a rua até era mais segura que nunca, mas o medo foi denegrindo esse espaço social de excelência. O medo foi-nos retirando liberdade, desejando vigilâncias vídeo; desejando polícias brutalmente armados em cada zona mais frequentada; entrando e saindo de casa e dos centros comerciais de carro, sem ter a necessidade de por um pé que seja na rua. É verdade, estamos no momento certo para nos afastarmos. Somos agora seres afastados, mas desejosos de proximidade e de abraços.



Mais à frente, numa loja qualquer que ficou com a montra ainda a publicitar saldos que não têm lugar, as cartas acumulam-se logo à frente da porta de vidro. Não estão ali há muito tempo. O dono desse pequeno comércio ainda lá vai regularmente matar saudades e dizer a si mesmo que em breve abrirá, sabendo que não imagina se mente ou se sonha. Contudo, quer ele, quer todos os restantes, acham com a maior das naturalidades que esta era a única solução. Mais uma vez, resignados, fizemos o mais correto. E sim, foi e é o mais correto, por mais que nos invada uma nostalgia da proximidade e da rua, por mais que desejemos que esta fase de confinamento termine depressa – o que sabemos ser irreal, utópico, mesmo.

Hoje, todos estamos certos, sejamos dos que pulverizaram as redes sociais com narrativas de ódio e de medo, sejamos os que lutam contra elas, pugnando por um mundo livre e aberto. Hoje todos afirmamos que temos de ficar em casa. É a máxima igualdade levada ao altar do consenso através da real hipocrisia do método. Todos estão certos no final, mesmo sabendo eu que a forma de cá chegar foi doentia e desonesta.

Vivemos a “Era do Atravessar de Rua”. Não sabemos bem quando terminará, mas veio para ficar. Está a impor-se pelo medo do contágio, suportada pela distância da segurança social. Vamos no pequeno passeio que nos é mentalmente permitido para ir à farmácia ou buscar medicamentos, e atravessamos a rua se vemos vir alguém na nossa direção. É higiénico. É uma reação de segurança. É fruto do medo.

Aquilo que antes era apontado como forma de ofender, atravessar a rua para não se cruzar com alguém, é hoje afirmação de consciência, face aos inconscientes que seguem em frente e quase roçam no casaco do outro.

Mas o mais irónico e brutal é a forma como o perigo que é externo acaba por ser colocado em nós. Fosse o nosso inimigo um grande mamífero selvagem que nos fizesse frente… era mentalmente mais fácil lidar com esse risco. Mas não, o inimigo entra em nós, faz-se parte de nós e transforma-nos em risco. Já não é um inimigo externo, mas está potencialmente dentro de cada dos iguais a nós com que nos cruzamos. Ele torna a nossa espécie e o nosso “vizinho” impuros, indesejáveis, capazes de serem postos fora da comunidade. É a ratoeira mais inteligente em que uma espécie pode cair: ser colonizada, ser transformada em inimiga de si mesma.

Já fomos à Lua. Planeamos viagens e colónias em Marte. Fazemos Aceleradores de Partículas capazes de reproduzir os momentos imediatamente a seguir ao Big Bang. Mas somos completamente impotentes perante um ser minúsculo que é um vírus.

Bem, não será exatamente assim. Fosse esta mesma Pandemia há umas dezenas de anos e tudo seria brutalmente diferente. Pior; muito pior. Hoje temos formas de combate e de organização que nos colocam na melhor época possível para resistir a um ataque destes. Mas é sempre revelador da nossa impotência, da nossa incapacidade para a superar.

Afinal, somos apenas uma espécie que não está no topo da cadeia alimentar.

Pensamento do Dia


Memórias do grupo de risco

Nos últimos tempos, as coisas andam tão rápidas que todo dia escrevo um pouco. No final de semana, o epicentro da pandemia já havia se deslocado para os Estados Unidos, e Boris Johnson, primeiro-ministro inglês, foi contaminado pelo coronavírus.

Temo pelo Brasil. O vírus avança como em outros lugares. Somos mais vulneráveis pelas grandes concentrações urbanas, péssimas condições sanitárias. Os Estados Unidos eram o primeiro na lista de segurança sanitária no mundo: ricos e bem equipados.

Ao longo do caminho, não devemos nos concentrar apenas numa variável, o número de casos. Há outra muito importante: o índice de mortalidade.

Além de desvantagens historicamente acumuladas, temos outras de peso. O presidente da República, que deveria articular o esforço nacional, não acredita na importância da pandemia.

Bolsonaro se acha incólume porque um dia foi atleta. E estendeu essa blindagem aos brasileiros que, segundo ele, mergulham no esgoto e nada sofrem. No momento em que a Ciência tem um grande papel, Bolsonaro está cercado de terraplanistas, tornou-se uma espécie de Jim Jones, o pastor que levou seus seguidores ao suicídio coletivo.

A segunda desvantagem está no ministro da Economia, Paulo Guedes. Toda a sua história é a de luta para reduzir o papel econômico do Estado. Trabalhou no Chile de Pinochet e escreveu inúmeros artigos sobre o tema.

O dramático momento, de repente, exige uma intensa intervenção do Estado na economia. Guedes não se preparou para isso. É como se estivéssemos numa partida de futebol e resolvêssemos trocar o centroavante por um jogador de tênis.

Vera Magalhães sugeriu que escrevesse algo sobre o ano de 2020, um ano cancelado pela pandemia.

No mesmo dia, tinha conversado aqui em casa sobre uma viagem a Nova York. Quando minha mulher vai até NY, costumo vender minha câmera velha e comprar uma nova na Adorama. Rimos para não chorar: não haverá viagem, muito menos câmera, e Deus permita que haja Nova York no fim dessa estrada. O Flamengo seria campeão de tudo em 2020, mas não haverá campeões nesse tempo sinistro.

Mas vou voltar ao tema sugerido por Vera assim que a pandemia der uma trégua. No momento, tento refletir um pouco sobre ser velho em tempos de coronavírus. Aqui a dimensão transcende ao ano de 2020: o que será do resto de nossas vidas?

Toneladas de papel impresso falam da velhice. Mas a nossa é singular: acontece durante a pandemia, somos classificados como grupo de risco.

Leio notícias de que o velhinhos de comunidades serão levados para hotéis ou navios, que a polícia em São Paulo está detendo os rebeldes que saem às ruas. Tudo para o bem deles.

Passada a crise mais aguda, como será a vida dos velhos antes da chegada da vacina? Minhas leituras não estão concentradas na “Peste”, de Camus, ou no “Um diário do Ano da Peste”, de Daniel Defoe.

Nos momentos mais suaves da quarentena, volto-me para livros do tipo “Memórias de Adriano” e detenho-me em frases como esta: “Esta manhã, pela primeira vez ocorreu-me a ideia de que meu corpo, este fiel companheiro, esse amigo mais seguro e mais conhecido que a própria alma, não é senão um monstro derradeiro que acabará por devorar seu próprio dono.”

Isso é verdade para tempos normais. Como se aplica a tempos de coronavírus? Será que nossos corpos envelhecidos serão vistos como um perigo social?

Envelheci depois de muitas lutas contra preconceitos. Só me faltava essa. Quando passar a primeira onda, voltarei a sair por aí, explorando e transfigurando o mundo em imagens.

De novo, Adriano: “A impossibilidade de continuar a exprimir-se, modificar-se pela ação é talvez a única diferença entre os mortos e os vivos.”

Um corpo envelhecido não representa perigo especial. Ele contrai e transmite o coronavírus como uma criança ou um jovem.

A grande responsabilidade é evitar adoecer em tempos de grande crise para não ocupar o lugar de um mais jovem nos escassos respiradores.

Infelizmente, temos mais fuzis do que respiradores. Um padre italiano compreendeu isto e cedeu seu lugar para um jovem que tinha chances de uma vida longa e saudável.

Viver é muito perigoso e, de uma certa forma, a própria humanidade é um grupo de risco.

O amanhã do vírus

Pelo menos na imprensa e nas redes sociais a que tenho acesso, pouco ouço falar da origem do coronavírus, um assunto que devia nos interessar. Primeiro, porque conhecer o que não se conhecia é um princípio natural da cultura. Depois, porque não se pode enfrentar um inimigo dessa importância, sem saber de onde ele veio. Sobretudo se isso diz alguma coisa a respeito de sua força ou de sua estratégia.

Dizer que esse é um “vírus chinês” é um ridículo idiota, parece uma declaração de guerra à Alemanha por causa do 7 a 1. O vírus surgiu primeiro na China, mas a responsabilidade por sua existência não é só da China. Com seu gosto em nos causar mal e seu poder destruidor, o vírus é o resultado de nossos maus-tratos à Natureza, entendendo por Natureza tudo aquilo que, no nosso planeta, não seja humano.

Como outras pestes que assolaram o mundo, desde a invenção do ser humano, o vírus letal é uma arma especial da Natureza, que a usa quando erramos demais, em relação a seu bem-estar. Em 1520, quando um dos primeiros exploradores espanhóis chegou ao México, levando com ele a varíola que os locais não conheciam, a maior parte dos habitantes da América Central caiu vítima da doença. E não havia, ali, aglomerações humanas, aviões intercontinentais, cruzeiros marítimos, essas coisas nas quais a gente, em geral, costuma botar a culpa.


Só no século passado, crises epidêmicas, provocadas por vírus, mataram mais do que as bárbaras guerras mundiais dos anos 1900. Em 1918, no final da Primeira Grande Guerra, responsável por 16 milhões de mortos, a Gripe Espanhola fez mais de 50 milhões de vítimas. E o Reino Unido, potência mundial na época, perdeu, com a Gripe que não era gripe, 17% de seu PIB. Entre outras pragas, a Gripe Asiática em 1956, a Aids em 1981, o Ebola Africano em 2013 e a zika em 2015 (que fez o Brasil perder US$ 16 bilhões) assolaram nossas vidas e as vidas dos que amamos.

Podemos usar, para falar dessas epidemias, o que escreveu o combatente alemão Rudolf Höss sobre a Guerra de 18: “Na verdade, não havia um front propriamente dito. O inimigo estava em toda parte. E onde quer que houvesse um confronto, seguia-se um massacre que se estendia até a destruição completa. (...) Àquela época, eu ainda era capaz de rezar, e era o que eu fazia.”

É preciso descobrir em que estamos errando tanto em nossas relações com a Natureza. Precisamos ouvir ecologistas, filósofos, cientistas em geral, para evitar nossos assaltos à natureza da Natureza, que acabam por fazer dela uma inimiga feroz. Não se pode tratar esse assunto com palpites e mentiras, como fazem alguns de nossos líderes. A ciência anda sendo menosprezada no mundo e, sobretudo no Brasil, temos preferido lances e toques, criacionismos e terraplanismos, ideias de políticos que só pensam na ilusão dos outros e no sossego deles.

Os novos conhecimentos podem fazer dessa crise uma aurora nova. O valor da verdade, da ciência e das novas tecnologias podem nos proteger contra as farsas ideológicas que nos atrapalham tanto. A humanidade está se comunicando como nunca se comunicou antes, temos que usar isso em benefício da fraternidade, e não da guerra. Se sairmos dessa crise do coronavírus convenientemente, se usarmos o que temos e sabemos para colaborar uns com os outros, estaremos renovando a hipótese fraterna da humanidade. Uma humanidade melhor e mais solidária, que venceu junta a guerra contra o vírus.

A teoria de Renata, minha mulher, é que esse é um vírus antineoliberal. Um vírus que veio nos lembrar da democracia social que nós já tínhamos esquecido e que foi a melhor contribuição do Ocidente a uma política de solidariedade e fraternidade universais, desde o presidente Roosevelt e de Lord Keynes. Com ela, havíamos aprendido que a vida humana é mais importante que o ajuste fiscal.

Precisamos agora descarbonizar o planeta, acabar de uma vez com os combustíveis fósseis, construir um futuro de trans-humanismo e humor universal, onde a humanidade possa recomeçar com mais esperança no amanhã de cada um. Os “intelectuais necessitados” das escolas de samba, formadas em comunidades pobres, já entenderam tudo isso, mesmo que nem sempre o formulem com clareza e exatidão. No último carnaval, agremiações como Grande Rio, Viradouro e Mangueira saíram mostrando que estão preocupadas com a construção desse novo mundo. Um mundo sem vírus ou um mundo pós-vírus. No final de fevereiro, li, na seção de cartas do GLOBO, uma mensagem do leitor Roberto Ornellas, que afirmava essa preciosidade: “Mais vale Jesus na Mangueira do que na goiabeira”.

Advertência de Jeca Tatu ao presidente da República

A essa altura da carreata da ignorância, só resta ao Jeca Tatu emancipado ―representante da gente na sala de televisão da quarentena― chamar na chincha o bocó lá de Brasília. Direto da Refazenda gilbertiana, cabe ao nosso Jeca Total mostrar que até o amarelão (ancilostomose) ainda faz estrago no Vale do Ribeira e em outras freguesias desprotegidas. Só o Jeca Tatu, o guru do Almanaque Biotônico Fontoura, para contar ao espertalhão do Planalto que o brasileiro, ao contrário do que ele folcloriza, não resiste meia hora ao esgoto e à falta de saneamento.

A febre do rato (leptospirose) segue castigando nos mocambos e palafitas, adverte o Jeca, sorumbático e macambúzio, saindo de pés-descalços do “Urupês” (livro de 1918) de Monteiro Lobato. Quem tem que ser estudado, o capiau segue na prosa, é Vossa Excelência, com todo respeito deste caipira. O brasileiro pega de tudo, não me venha com seus arroubos de vilão Vaca-Brava, pois até a lepra (hanseníase), daquela mais primitiva, campeia solta no mato e nos arrabaldes.

A criatura corre do mosquito e não escapa do caramujo, foge da dengue e vem a zika, na mesma terra onde ainda persistem sarampo, caxumba e rubéola. O sujeito acha que é apenas mais uma ressaca existencialista e lá vem o diagnóstico: chikungunya na caveira. Na roça, para a tristeza do Jeca, resistem a doença de Chagas, a peste bubônica, a curuba... Agora dá licença que vou tomar meu elixir de salsa, caroba e cabacinha, ave!, tesconjuro.

Jeca Total deve ser Jeca Tatu, presente, passado, memória das enfermidades brasileiras, com sua garrafa de pinga para enxotar o saturno dos trópicos, xô melancolia, arreda tristeza, vade retro perdigotos do Belzebu, do Cramulhão, do Pé-de-Pato, do Coxo, do Temba, do Coisa Ruim, do Mafarro, do Tristonho, do Não-Sei-Que-Diga, do Que-Nunca-Se-Ri, do Pai-da-Mentira, do Capeta, do Tendeiro, do Mafarro, do Capiroto, do Diacho, do Gabinete-do-Ódio, do Rei-Diabo, do Demonião, do Satanazim, do Língua-Solta e da vasta assembleia lucrativa sem fim.

Jeca Tatu, que saiba Vossa Excelência, pode ser da roça, mas não é besta, em matéria de coronavírus rumina o seu capinzim metafísico guardado na sua choupana, pita o seu cigarrinho de palha ouvindo Cascatinha & Inhana, mais precisamente a faixa “Índia”, sou Jeca mas não sou imbecil de marcar touca, de que vale o milharal depois de bater as botas?

Preguiçoso uma disgrama, repara se fui eu e minha família que passamos uma vida toda de flozô no parlamento, com direito a esquema de “rachadinha” e quetais, mordendo um naco do contracheque dos barnabés das cercanias. Desculpa aí, presidente, não queria desafinar a viola, mas seu exército de tabaréus não toca outra moda, a não ser xingar a gente de indolente e vagaba. Nem o amigo Mazzaropi escapou dessa, foi barrado na cancela, virou comunista simplesmente por ter filmado “O Corintiano”, vê se pode! Imagina se os papa-capins tivessem visto A banda das Velhas Virgens, que fita de cinema.

No Brasil das amarelidões, Jeca Tatu pode ser a cor tingida na crônica de Renato Carneiro Campos que serviu de guia ao filme Amarelo manga, do diretor Claudio Assis: “Amarelo é a cor das mesas, dos bancos, dos tambores, dos cabos, das peixeiras, da enxada e da estrovenga. Do carro de boi, das cangas, dos chapéus envelhecidos. Da charque! Amarelo das doenças, das remelas, dos olhos dos meninos, das feridas purulentas, dos escarros, das verminoses, das hepatites, das diarreias, dos dentes apodrecidos... Tempo interior amarelo. Velho, desbotado, doente.”
Xico Sá

Brasil entregue à morte


Bolsonaro deve ser detido para não fazer tanto mal ao país

Sabe Deus o que se passa na cabeça do presidente Jair Bolsonaro. Ou nem Deus sabe, talvez só o dono da cabeça. No último sábado, autorizado por Bolsonaro, Luiz Henrique Mandetta, ministro da Saúde, apareceu na televisão e disse que o isolamento social deve ser mantido enquanto não passar a pior fase da pandemia.

Ontem, menos de 12 horas depois, Bolsonaro desfilou por galerias e ruas de Taguatinha, Ceilândia e Sobradinho, cidades do entorno de Brasília, atraiu gente, posou para fotos com seus admiradores e até com crianças, apertou mãos, e anunciou que cogita de um decreto mandando todo mundo trabalhar.



Que ordem valerá? A dada por Mandetta? Ou a que Bolsonaro poderá tomar? Qual será a reação das pessoas país a fora? Se o presidente volta a circular e diz que o coronavírus não é tão feio como parece, é razoável que muitos acreditem nele. E que o imitem. Consequências? Mais infectados, mais aspirantes à morte.

É fato que de 10 dias para cá, os brasileiros vem tapando os ouvidos ao que ele diz. No fim de semana dos dias 14 e 15, as praias do Rio, a Avenida Paulista e a Esplanada dos Ministérios, em Brasília, estiveram atulhadas de gente. Foi no dia 15 que Bolsonaro recepcionou seus devotos à entrada do Palácio do Planalto.

De lá para cá, na contramão dos seus equivalentes no resto do mundo, Bolsonaro tornou-se um grave problema sanitário para o país. Chefes de Estado, que a princípio vacilaram diante de um inimigo desconhecido contra o qual carecem de armas, aos poucos foram se ajustando à realidade. Até Donald Trump.

Sem essa de que o tempo foi curto para perceberem o que estava por vir. No dia 31 de dezembro último, jornais chineses publicaram que um novo tipo de pneumonia fora identificado em Wuan, a sétima cidade mais populosa daquele país, com cerca de 11 milhões de habitantes. O avanço da doença foi rápido.

Dali a 17 dias, o governo chinês informava que o vírus já contaminara 62 pessoas, matando duas. No dia 19 de janeiro, o número de casos de infecção saltara para 198, com quatro mortes. Um jornal francês publicou que havia cerca de 1.7 mil pessoas na China com sintomas da doença, e duas na Tailândia.

No dia 20 de janeiro, 291 chineses contaminados e seis mortos. Três dias depois, os moradores de Wuan acordaram com o comunicado de que ninguém sairia mais da cidade nem entraria. Confinamento geral e obrigatório. Exército nas ruas. Médicos de prontidão. Só funcionariam os serviços essenciais.

Aqui, estávamos a um mês do Carnaval, esquentando os tamborins, lubrificando as engrenagens dos trios elétricos e costurando as últimas fantasias. Os sambas-enredo, escolhidos há três meses, eram cantados por dançarinos e torcidas. Bolsonaro já aprontava. Dava bananas para a imprensa. Mas quem ligava? Evoé, Momo!

Apronta desde o primeiro dia no cargo. Seu discurso de posse contém todas as sementes do ódio que germinava dentro dele e dos filhos e que ele desejava inocular na maior quantidade possível de brasileiros para garantir sua reeleição em 2022. Ele, agora, luta para que não se disperse o núcleo mais resistente do seu bloco.

Daqui para frente, como será? Bolsonaro dobrará sua aposta, triplicará, com a esperança de que o coronavírus mate menos brasileiros do que indicam os cálculos do Ministério da Saúde e os estudos de duas universidades britânicas. O sistema de saúde do país poderá entrar em colapso em meados de abril.

A melhor arma de combate ao coronavírus é testar, testar, testar o maior número de pessoas. Foi o que aconselhou há algum tempo a Organização Mundial de Saúde. Mandetta discordou. Na semana passada, cedeu e anunciou a compra de 22 milhões de kits de teste que levarão dias para estarem disponíveis.

“Todos nós morreremos um dia”, saliva Bolsonaro. Ele que morra se quiser – os outros, não.