domingo, 31 de março de 2019

Não foi golpe?!

Faz mais de dois anos que os inimigos da ordem e da democracia, escudados na impunidade que lhes assegura o Sr. Chefe do Poder Executivo, vêm desrespeitando as instituições, enxovalhando as Forças Armadas. Na certeza de que ele está a executar uma das etapas do aniquilamento das liberdades cívicas, as Forças Armadas não podem se silenciar diante de tal crime. Minhas tropas, numa hora dessas, marcham para o estado da Guanabara em busca de vitória
Olímpio Mourão Filho, general comandante da 4ª Região Militar, liderou a autodenominada  Operação Popeye, que largou no dia 31 dando início  em direção ao Rio de Janeiro, aonde só chegou como "libertador" em 1º de abril

Auto de fé e linchamento

Quem deseja salvar a Pátria deve pesar as próprias forças e fraquezas. Caso contrário pode acabar nas fogueiras. Após impor em Florença um regime de medo para vencer os corruptos, Savonarola foi às chamas sob vaias. No afã de eliminar todo o luxo, o frade jogou livros ao fogo e abriu sendas para fatos espantosos do século 20 na Alemanha. Profeta cuja arma era o terror, ele não contou com o cansaço popular em sua higiene política.

Quem condena sem as regras do Direito morre sem direitos. Maquiavel fala contra os justiceiros: a corrupção é fato constante mesmo entre pessoas educadas para o bem. “Em todas as cidades e povos há e sempre houve os mesmos desejos e humores, sendo fácil para quem examina com diligência o passado prever o futuro de toda república e aplicar os remédios empregados pelos antigos ou, caso não se encontre nenhum usado por eles, imaginar outros novos segundo os acontecimentos” (Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lívio, livro I).


Ética é o sistema de atitudes e hábitos que se tornam “naturais”. O povo adere a valores positivos ou negativos. Ainda segundo Maquiavel, para mudar hábitos arraigados o governante deve fingir que o costume permanece mesmo quando a sua mudança é querida nos palácios. “Quem deseja reformar o estado de uma cidade, ser aceito e manter a satisfação de todo mundo, necessita manter pelo menos a sombra dos modos antigos, de tal jeito que possa parecer ao povo que não houve mudança nas ordens, embora as novas sejam inteiramente distintas das velhas. A grande maioria dos homens se contenta com as aparências como se fossem realidades e amiúde se deixa influenciar mais pelas coisas que parecem do que por aquelas que são” (Discursos, livro I).

Gabriel Naudé usa a mesma tese para justificar os golpes de Estado.

No Brasil surgem fogueiras acesas por êmulos de Savonarola. Real ou imaginária, a corrupção é amaldiçoada por hábito, não pelos fatos. Quem estuda o empreendimento italiano chamado Mãos Limpas sabe do que falo. De tanto exorcizar a corrupção, a massa hipnotizada se contenta em moer pessoas, sem buscar novas saídas políticas e jurídicas. Brasileiros em massa assumem costumes hostis à democracia e ao Estado de Direito. Um deles é o vezo de atacar, antes do julgamento legal, reputações de acusados.

Lembremos o caso da Escola Base. A lei de Lynch cresce nas redes “sociais”, atos vis ocorrem sem informações corretas e prudência. Na internet se cumpre agora a profecia de Diderot, o grande enciclopedista do século 18: “Temos na sociedade tantos impertinentes papagaios que falam, que falam, que falam sem saber o que dizem, e mostram tanto prazer quando expandem o mal, que o maledicente ou caluniador consegue num dia mil cúmplices” (Apologia do Padre Raynal). Não devemos mascar as palavras: quem banaliza as doutrinas sobre o bem gera o mal.

O costume faz dos indivíduos impiedosas bocas do Destino. O dogmatismo das massas sustenta as piores ditaduras, à direita e à esquerda. “Nos últimos 60 anos, aproximadamente 1,5 milhão de brasileiros tomaram parte em linchamentos. No Brasil, as massas rebeladas matam, ou tentam matar, mais de um suspeito por dia”(Latin America, Awash in Crime, Citizens Impose Their Own Brutal Justice, em The Wall Street Journal, dezembro, 2018).

Os desonestos retiram das mesas o alimento necessário à vida. Larápios públicos ou particulares merecem punições. Movimentos surgiram para a luta contra o roubo dos erários. O Instituto Não Aceito Corrupção, liderado por Roberto Livianu, reúne um programa livre de partidos ou ideologias. Trata-se, naquele coletivo, de pesquisar os fatos em amplas dimensões, além de empreender análises para reduzir a sua efetividade social e política. Temos ali um esforço que merece apoio, pois combate os malefícios da corrupção sem preconceitos. Para vencer qualquer doença é preciso estudo, técnica médica, diálogo respeitoso entre o clínico e a pessoa por ele assistida. Diagnósticos parciais ou apressados causam mais dores ou mortes. Mazelas exigem cuidados não genéricos. Apelar para um só remédio significa piorar o malefício. O ressentimento das massas é desafio, impede soluções. Lutar contra a corrupção requer o contributo dos três Poderes e de setores lúcidos na sociedade. Isoladas, a promotoria ou polícia produzem resultados parciais, inoperantes.

Certas iniciativas da Justiça têm falhas na busca de combater as práticas corrosivas. A entrevista sobre a prisão de Michel Temer concedida pelo Ministério Público e pela Polícia Federal me preocupa. Antes do julgamento definitivo os acusados nela recebem epítetos infamantes, como “líderes de quadrilha”, e adjetivos depreciativos. Se posteriores à condenação definitiva, tais palavras já seriam indevidas. Até contra cidadãos de quem foi retirado o livre movimento é vetada a injúria. Acusados servem como bode expiatório para os acusadores. As falas com apodos aos políticos mostram o costume de mover ressentimentos populares.

Não é de hoje que tal hábito torce ações judiciais no Brasil. Sobral Pinto e demais causídicos, nas ditaduras do século 20, enfrentaram parquets ágeis na hora de acusar, lentos ao corrigir erros. Recordo o tratamento cruel aplicado ao magnífico reitor da Universidade de Santa Catarina dr. Luiz Carlos Cancellier, sem provas contra ele. A UFMG foi invadida e seus dirigentes, humilhados, sem provas. A corrupção (lembro Savonarola) não é vencida com autos de fé, mas com pesquisas minuciosas, cautela, respeito à Carta Magna. O linchamento impera se existe a guerra de todos contra todos.

No Estado de Direito a ira das multidões é afastada e nunca seguida pelos que têm o múnus de zelar por todos e cada um dos cidadãos. Que eles não joguem livros à fogueira, como o dominicano, sobretudo o volume da Constituição.

Bolsonaro e filhos pensam e agem como um bloco

Aqueles que ainda pensam ser possível separar o presidente Jair Bolsonaro de seus filhos, mesmo que apenas na gestão do país, é melhor ir logo tirando o cavalinho da chuva. Os Bolsonaro são um bloco único, monolítico, inseparável e inquebrantável. Suas posições são resultado de um pensamento único, elaborado ao longo de anos, e nenhum dos seus membros sobrevive sem os demais, explica Dado Salem, economista, mestre em Psicologia do Desenvolvimento e sócio da Psiconomia, empresa especializada em gerir questões complexas e sensíveis envolvendo famílias e negócios.


Salem fez um estudo sobre a família do presidente tomando por base entrevistas que cada um deu ao longo dos anos e suas manifestações nas redes sociais. Com esses elementos e com o apoio de um relatório contendo as nuvens de palavras mais repetidas por cada Bolsonaro no Twitter, elaborado em 2016 pela cientista política Mariana Cartaxo, foi possível escrutinar a raiz comum do raciocínio de Jair, Flávio, Carlos e Eduardo.

Os Bolsonaro são o que Salem chama de “família simbiótica indiferenciada”. Eles pensam, sentem e agem como um bloco. São vulneráveis quando separados e se sentem ameaçados pelo mundo externo, o que os torna ainda mais fechados. Têm tendência ao isolamento e possuem uma enorme capacidade de deteriorar relações muito rapidamente. São governados por suas reações emocionais ao ambiente e acabam gerando neles próprios uma previsível ansiedade crônica.

Em famílias assim, o pai não toma qualquer decisão sem ouvir os filhos. O que parece ser o caso de Bolsonaro. Seus filhos, por sua vez, detestam os que se aproximam demais do pai, sobretudo se enxergam nessa aproximação uma tentativa de manipular o patriarca. No caso da família em questão, os filhos têm ciúmes dos que se aproximam para ganhar luz e aparecer aos olhos do público. E torpedeiam sistematicamente o intruso.

Cada um dos filhos cumpre um papel no bloco. O Zero Um, Flávio, o mais velho, é o conciliador e o diplomata, que busca interlocutores para o grupo. “Normalmente é assim que funciona em famílias simbióticas, ao primogênito é dada essa função”, diz Dado Salem. O problema na família Bolsonaro é que Flávio acabou queimado logo na largada. O Zero Dois, Carlos, é o queridinho, o mais ligado ao pai. Tão ligado que acaba confundindo seu próprio papel, queria ser ele próprio o pai da família, o presidente da República. O Zero Três é o “intelectual”, o formulador do bloco, e como tal é respeitado pelos demais.

Nas famílias simbióticas indiferenciadas não existe separação emocional entre seus membros. Eles não são bem desenvolvidos como indivíduos. Sua reatividade emocional é intensa e pode ser disparada por qualquer faísca. Essa característica explica a demissão do ministro Bebianno e o mal-estar criado com o presidente da Câmara, deputado Rodrigo Maia. Um elo sustenta o outro, sempre. As relações externas normalmente geram angústia e ansiedade em seus elementos. Para aliviar a tensão, essas famílias geralmente tendem a ser ainda mais unidas e indissolúveis.

A leitura das nuvens de palavras produzidas a partir das suas manifestações nas redes comprova a tese do ideário único. Mariana Cartaxo apurou que as palavras que mais aparecem nos discursos de cada um dos membros do clã são muito parecidas, e três são repetidas por todos os membros da família: “Brasil”, “Contra” e “PSOL”. No caso de Flávio, que até o ano passado era deputado estadual no Rio, a palavra “Polícia” também tem destaque. Desnecessária qualquer explicação.

O resultado dessa simbiose, segundo Dado Salem, é o que todo o Brasil já viu, as decisões de Jair Bolsonaro atendem prioritariamente ao arranjo do grupo familiar. O presidente não governa sozinho, governa com seus filhos. Os ministros e demais assessores compõem o ambiente, mas quem manda são pai e filhos.

Um alerta: o Zero Quatro vem aí. Pesquisa de seu perfil nas redes revela que Renan, 21 anos, estudante de Direito, está crescendo com a mesma retórica, os mesmos slogans e os mesmos ranços dos irmãos e do pai. A única coisa que os separa dos irmãos são as mães diferentes. Mas esse é um detalhe que não significa muita coisa no universo absolutamente masculino dos Bolsonaro. Por isso também a Zero Cinco, Laura, de 8 anos, jamais emergirá.

Brasil e os idos de março


A história não pode ser apagada ou reescrita

A história de um país não pode ser apagada, sequer reescrita: é inegável que o Brasil experimentou longo período de restrição de direitos fundamentais e de repressão violenta e sistemática à dissidência política e aos movimentos sociais. Esse período merece ser recordado, mas não pelos motivos errados e, sim, como forma de valorização das conquistas sociais, especialmente aquelas consagradas pela Constituição Federal de 1988.

Foi a denominada “Constituição Cidadã” que consagrou um conjunto de garantias, direitos fundamentais e princípios que a sociedade hoje sequer imagina viver sem, como a dignidade da pessoa humana, a liberdade de expressão, de imprensa e de associação, o pluralismo político, a cidadania e a separação entre os três poderes da República.


O estado democrático de direito instituído em 1988 e gradualmente fortalecido ao longo de mais de 30 anos, aliado a diversos outros fatores de ordem social, proporcionou um amadurecimento institucional que possibilitou o desenvolvimento de um trabalho harmônico de um conjunto de instituições de fiscalização e controle no combate à corrupção. Como reflexo dessas atividades, a corrupção chegou a ser considerada a principal preocupação dos brasileiros, sendo reputada como maior problema nacional, em pesquisa divulgada em 2017, pelo Latinobarômetro.

O aumento da percepção da corrupção no Brasil nos últimos anos, período de intensas atividades realizadas pelos órgãos de persecução criminal, foi demonstrado também pela Transparência Internacional e revela claramente que, não por obra do acaso, o avanço do combate à corrupção somente foi possível graças à existência de um ambiente democrático, com respeito às liberdades individuais, com instituições funcionando de forma legítima e regular e com uma imprensa livre para investigar e noticiar à sociedade os fatos apurados.

Ao lado disso, a independência do Ministério Público e do Poder Judiciário, garantida não apenas formalmente, mas em fatos concretos, como a escolha do procurador-geral a partir de lista tríplice elaborada pelo próprio Ministério Público e a autonomia orçamentária do órgão, bem como a independência de atuação limitada apenas pela Constituição e pelas leis, constituíram parte do conjunto democrático que impulsionou o combate à corrupção no Brasil.

Esse desenvolvimento progressivo do combate à corrupção foi viabilizado, ainda, por diversas criações e alterações legislativas supervenientes à Constituição Federal de 1988, como a Lei de Improbidade Administrativa (1992), a Lei de Acesso à Informação (2011), a Lei das Organizações Criminosas (2013), a Lei Anticorrupção (2013) e a alteração da Lei de Lavagem de Dinheiro em 2012, demonstrando a relevância da atuação de todos os três poderes da República, com respeito aos princípios constitucionais da separação e da independência entre eles, e a delimitação do sistema de freios e contrapesos, também para a luta contra a corrupção e impunidade.

A verdade é que o trabalho de combate à corrupção, longe de se encerrar com o processo e julgamento dos responsáveis pelos crimes de corrupção, reflete direta e indiretamente na construção de um país melhor, mais justo e igualitário, onde a lei tenha a mesma validade para todos e prevaleça o respeito às instituições democraticamente constituídas, às garantias e liberdades constitucionalmente asseguradas e ao pluralismo de ideias.

Jerusa Burmann Viecili, procuradora da Operação Lava Jato, em Curitiba

Godzilla no México

Considere isto, meu filho: as bombas caíam
sobre a cidade do México
mas ninguém se dava conta.
O ar carregou o veneno através
das ruas e das janelas abertas.
Você estava acabando de comer e via na tv
os desenhos animados.
Eu lia no quarto ao lado
quando soube que íamos morrer.
Apesar da tontura e da náusea me arrastei
até a sala e te encontrei no chão.
Nos abraçamos. Você perguntou o que estava acontecendo
e eu não disse que estávamos no programa da morte
mas sim que íamos começar uma viagem,
mais uma, juntos, e que não tivesse medo.
Ao ir embora, a morte nem sequer
fechou nossos olhos.
O que somos?, você me perguntou uma semana ou um ano depois,
formigas, abelhas, cifras equivocadas
na grande sopa apodrecida do acaso?
Somos seres humanos, meu filho, quase pássaros,
heróis públicos e secretos.
Roberto Bolaño

Desemprego cresce, dívida atinge R$ 5,3 trilhões e o governo não se manifesta

Pesquisa do IBGE com base no índice de fevereiro revela que o desemprego voltou a subir no país e está atingindo 13 milhões de brasileiros e brasileiras. Esse número representa uma diferença para menos de cerca de 1 milhão de postos de trabalho que desapareceram do mapa estatístico. Reportagem de Daiane Costa, O Globo edição de sábado, desenvolve de forma bastante ampla as implicações do resultado negativo. Entre eles a faixa dos que estão procurando trabalho, e não encontrando, revelam sinais de desalento.

A interpretação de estatísticas representa, quando procedente, uma atmosfera difícil, à primeira vista, de ser notada numa primeira leitura. Na minha opinião já na segunda leitura pode-se chegar a conclusões melhores e mais claras.

Por exemplo: admitamos que no mês de março o desemprego tenha ficado estacionado. Mas em fevereiro recuou. Se em março registrar algum impulso positivo, se comparado a fevereiro representa um avanço. Porém se comparado a janeiro representa um retrocesso.


Portanto, em matéria de comparações, há necessidade fundamental de se cotejar números de períodos iguais ao longo do ano. Representa o seguinte: pode haver algum índice ilusório quando se coteja, por exemplo, realidade de março em relação a de fevereiro. Mas é preciso comparar também quanto a situação de janeiro.

Outra coisa. É indispensável quando se manipula uma estatística comparar seu resultado percentual e também o quanto representa em relação ao total da matéria.

Assim, se o Produto Interno Bruto cresceu 2%, indispensável dizer-se o que representa o avanço em número absolutos como em relação ao aumento do número de habitantes etc.

Esta fórmula era sempre defendida pelo ministro Roberto Campos que destacava a exigência de se comparar percentagens com seu efeito em números absolutos. Tenho a impressão que seu neto, Roberto Campos Neto, presidente do Banco Central, situa-se dentro do mesmo pensamento crítico para chegar a um resultado verdadeiro.

Na mesma edição de O Globo, página 20, matéria redigida com base em resultado do Banco Central acentua que a dívida pública do país saltou em março para 5,3 trilhões de reais. Sobre esse endividamento, o governo paga juros anuais, taxa Selic, de 6,5%. Nos últimos 10 anos, a dívida pública triplicou. Hoje representa 77% do PIB. A tendência aponta para um aumento ainda maior nos próximos meses, em decorrência de o governo estar capitalizando juros. Isto é, fornecendo mais papeis ao mercado em face de não possuir recursos para pagar cerca de 300 bilhões de reais por ano.

Chama atenção o fato de o governo condicionar a estabilização financeira à reforma da Previdência e omitir que o problema principal não está na Previdência e sim na dívida pública.

Quando se trata de reduzir encargos com pessoal, o caminho é sempre mais curto para o governo. Mas quando se trata de interesse dos bancos, a coisa muda de figura.

Celebração do golpe subverte a disciplina militar

Um presidente da República não é apenas uma faixa. É preciso que por trás do pedaço de pano exista uma noção qualquer de honra. Incapaz de elevar sua própria estatura, Jair Bolsonaro rebaixou o Brasil ao ordenar a celebração do aniversário do golpe de 1964. Ao afirmar que não houve ditadura, ofendeu a memória dos mortos e a alma dos vivos.

Se ficasse nisso, já seria aviltante. Mas houve mais. Ao apelidar de "probleminhas" os crimes do regime militar, Bolsonaro atribuiu ares de normalidade a atrocidades como a tortura. Com tanto desapreço pelo ser humano e pelo bom senso, o chefe supremo das Forças Armadas põe em risco a própria disciplina militar. Uma assombração que se imaginava exorcizada é catapultada da história para o cotidiano.

Banalizaram-se no Brasil as chamadas GLOs, operações de garantia da lei e da ordem. Consistem no emprego das Forças Armadas em ações de segurança pública. No Rio de Janeiro, evoluiu-se no ano passado para uma intervenção federal na segurança, uma espécie de GLO hipertrofiada. A chegada das tropas às favelas e aos fundões pobres das grandes cidades costuma ser festejada. Mas às vezes a coisa desanda.

No final do ano passado, por exemplo, ganhou as manchetes um desses casos em que o caldo entornou. Numa incursão noturna na favela carioca da Penha, militares prenderam sete pessoas. Quatro delas contaram posteriormente, em depoimentos formais, que foram torturadas nas dependências de um quartel da 1ª Divisão do Exército.

De acordo com os depoimentos, o grupo foi mantido no quartel por cerca de 18 horas. A certa altura, conduziram-se os presos para uma "sala vermelha". Ali, foram submetidos a um interrogatório para identificar traficantes. Tomaram "madeiradas" nas costas e na cabeça. Foram chicoteados com fios elétricos. Só depois da sova foram levados à delegacia, sendo detidos sob a acusação de traficar drogas.

Abriram-se dois inquéritos —um no Ministério Público Federal, outro no Comando Militar do Leste. O inquérito militar foi fechado em fevereiro, já sob Jair Bolsonaro. Em vez de atestar a inocência cabal dos acusados, a investigação concluiu que não há "provas da materialidade e nem indícios suficientes de autoria relativos aos crimes de tortura e maus tratos".

Responsável pela apuração, o coronel Eduardo Tavares Martins anotou não ter enxergado "na conduta dos militares os elementares integrativos do delito de tortura e maus tratos, tudo não passando da dinâmica de confronto entre supostos traficantes e militares do Exército". As conclusões foram avalizadas pelo general Antonio Manoel de Barros.

Para os padrões de Bolsonaro, a "dinâmica do confronto" que levou os presos a se sentirem torturados numa "sala vermelha" dentro de um quartel do Exército seria apenas mais um "probleminha" negligenciável. O presidente da República, como se sabe, é o comandante constitucional das Forças Armadas. Suas palavras, quando soam desajuizadas, enviam sinais errados para a tropa.

Qualquer criança de cinco anos percebe que um chefe supremo que fala como se desejasse acobertar violências estimula a indisciplina militar. A lógica do "probleminha" conduz a um vale-tudo que justifica das transgressões internas à atuação das milícias. No limite, fardas menos esclarecidas podem explodir uma outra bomba num Riocentro qualquer, no pressuposto de que a iniciativa será comemorada.

Quem observa de longe fica tentado a concluir que o despautério de Bolsonaro não visa apenas a revisão de atrocidades históricas. Mira também a legitimação de sandices contemporâneas. Por sorte, há juízas em Brasília. A doutora Ivani Silva da Luz, titular da 6ª Vara da Justiça Federal da capital, proibiu na noite desta sexta-feira a celebração do aniversário de 55 anos do golpe militar. A decisão não altera a conturbação mental do presidente da República. Mas preserva a sanidade do país.