segunda-feira, 12 de agosto de 2024
O sequestro da fé
Numa tarde qualquer, um padre entra secundado por alguns policiais na casa de uma família judia e leva o filho de 6 anos. O garoto será educado pela Igreja. O pai não poderá sequer reclamar ao Papa, porque é ele quem ordena o rapto. A lei permite: não católicos não podem criar crianças na religião. “O sequestro do Papa”, obra-prima do italiano Marco Bellocchio, 84 anos, conta a história verídica de Edgardo Mortara na Bolonha do século XIX. Filho de judeus, foi batizado às escondidas por uma empregada.
Não se sequestram mais crianças para serem educadas pela Igreja (até o momento em que escrevo). Também o Papa não possui o mesmo poder absolutista. Por ceder um anel ou outro, Papa Francisco é chamado de comunista pela extrema direita. O secularismo avançou com a ciência — a expectativa de vida quase dobrou desde o rapto de Edgardo, em 1857. Nada disso parece importar.
Tipicamente humano, o avanço do conhecimento com os desafios aos dogmas bíblicos produz um reavivamento das religiões, num aguçamento de vai e volta de crenças. Já se manipulam os genes, até com a prevenção a futuras doenças, embora ainda permaneça uma religiosidade apoiada em superstições brotadas no sol do deserto oriental.
O Papa não abduz mais as crianças de famílias judias, assim como a excomunhão perdeu seu valor de face; não se queimam mais os ímpios nas fogueiras das praças e o índex de livros proibidos não incomoda os fiéis, pelo contrário, cada vez mais surge uma literatura especializada em destronar Deus (só com H: Harari, Hitchens… etc.) e ironizar os preceitos e as fantasias bíblicas (a virgindade de Maria ou a ressurreição como exemplos).
Também Jesus não tem escapado ao escrutínio da investigação histórica. Ao longo dos séculos sua epopeia foi reconstruída, com episódios cortados ou rearrumados para deixá-lo mais adequado na fita. “Heresy” (ainda inédito por aqui), da historiadora e jornalista inglesa Catherine Nixey, apoia-se em diversos relatos (tal a Bíblia) e livros banidos pela religião oficial. O avanço católico, depois de se tornar o credo de Roma no século IV, tratou de derrubar os templos pagãos e desaparecer com narrativas menos cristãs (heréticas, como diziam) de alguns de seus ícones. Mas sempre sobram testemunhas. (Você está enganado se acha que apenas os relógios Rolex unem Bolsonaro a Lula.)
Na nova obra de Nixey, cujo subtítulo é “Jesus e os outros filhos de Deus”, surgem vários episódios da vida de Cristo capazes de desorientar os pios das redes sociais. Mesmo sendo divino, escapou de ser uma flor de correção. Nixey elenca algumas versões sobre a vida de Cristo, entre as quais teria assassinado adversários e rejeitado os pais. Comenta-se ainda sobre a existência de um irmão gêmeo e de seu comportamento assaz errático com seus semelhantes — essa história de reaparecer só na Quarta de Cinzas, sei não. Como se vê, a vida não é fácil para ninguém. Não me assusto porque, afinal, ele teria vindo à Terra para ser um igual dos homens — portanto, capaz de cometer seus (digamos) deslizes. Ninguém é perfeito, diria Billy Wilder pela boca de Jack Lemmon.
Mas em nossa época digital cada um possui a sua opinião e os seus fatos. Quase todos os republicanos acreditam que Trump venceu a eleição em 2020. Outros duvidam da chegada do homem à Lua. Apesar de Nietzsche, ainda no século XIX, haver declarado que a humanidade matou Deus, os novos adventos tecnológicos não parecem arrefecer o desejo pela religiosidade. Pelo contrário.
Em nome da fé não se sequestram mais garotos porque os religiosos contemporâneos exercem seu poder por outros meios. Está tudo dominado, tudo terceirizado. Cada vez mais se dá pela lei dos homens; a partir do Estado dito laico que as mordaças são tecidas. Crenças são vertidas em legislação, sob o risco de aprisionamento. A laicidade é um sonho de verão — haja vista a tolerância com os jogadores de futebol agradecendo seus gols a alguma entidade divina ou o descaso com a perseguição aos rituais afrodescendentes.
Embora fosse útil, não é mais a economia que pauta a política — é a religião.“Deus acima de tudo” e “Deus, pátria, família” estão estampados nos discursos da extrema direita. Não adiantam os fatos — como a derrocada de Roma com a adoção do catolicismo ou o início da Revolução Industrial sem a mão pesada da igreja apostólica. Isso é História, e lá não existem milagres, só reprises: a fé dos outros que nos condenam ao atraso aumenta quando a humanidade anda mais rápido. É quando deixam de contar os dízimos e fazem leis.
Não se sequestram mais crianças para serem educadas pela Igreja (até o momento em que escrevo). Também o Papa não possui o mesmo poder absolutista. Por ceder um anel ou outro, Papa Francisco é chamado de comunista pela extrema direita. O secularismo avançou com a ciência — a expectativa de vida quase dobrou desde o rapto de Edgardo, em 1857. Nada disso parece importar.
Tipicamente humano, o avanço do conhecimento com os desafios aos dogmas bíblicos produz um reavivamento das religiões, num aguçamento de vai e volta de crenças. Já se manipulam os genes, até com a prevenção a futuras doenças, embora ainda permaneça uma religiosidade apoiada em superstições brotadas no sol do deserto oriental.
O Papa não abduz mais as crianças de famílias judias, assim como a excomunhão perdeu seu valor de face; não se queimam mais os ímpios nas fogueiras das praças e o índex de livros proibidos não incomoda os fiéis, pelo contrário, cada vez mais surge uma literatura especializada em destronar Deus (só com H: Harari, Hitchens… etc.) e ironizar os preceitos e as fantasias bíblicas (a virgindade de Maria ou a ressurreição como exemplos).
Também Jesus não tem escapado ao escrutínio da investigação histórica. Ao longo dos séculos sua epopeia foi reconstruída, com episódios cortados ou rearrumados para deixá-lo mais adequado na fita. “Heresy” (ainda inédito por aqui), da historiadora e jornalista inglesa Catherine Nixey, apoia-se em diversos relatos (tal a Bíblia) e livros banidos pela religião oficial. O avanço católico, depois de se tornar o credo de Roma no século IV, tratou de derrubar os templos pagãos e desaparecer com narrativas menos cristãs (heréticas, como diziam) de alguns de seus ícones. Mas sempre sobram testemunhas. (Você está enganado se acha que apenas os relógios Rolex unem Bolsonaro a Lula.)
Na nova obra de Nixey, cujo subtítulo é “Jesus e os outros filhos de Deus”, surgem vários episódios da vida de Cristo capazes de desorientar os pios das redes sociais. Mesmo sendo divino, escapou de ser uma flor de correção. Nixey elenca algumas versões sobre a vida de Cristo, entre as quais teria assassinado adversários e rejeitado os pais. Comenta-se ainda sobre a existência de um irmão gêmeo e de seu comportamento assaz errático com seus semelhantes — essa história de reaparecer só na Quarta de Cinzas, sei não. Como se vê, a vida não é fácil para ninguém. Não me assusto porque, afinal, ele teria vindo à Terra para ser um igual dos homens — portanto, capaz de cometer seus (digamos) deslizes. Ninguém é perfeito, diria Billy Wilder pela boca de Jack Lemmon.
Mas em nossa época digital cada um possui a sua opinião e os seus fatos. Quase todos os republicanos acreditam que Trump venceu a eleição em 2020. Outros duvidam da chegada do homem à Lua. Apesar de Nietzsche, ainda no século XIX, haver declarado que a humanidade matou Deus, os novos adventos tecnológicos não parecem arrefecer o desejo pela religiosidade. Pelo contrário.
Em nome da fé não se sequestram mais garotos porque os religiosos contemporâneos exercem seu poder por outros meios. Está tudo dominado, tudo terceirizado. Cada vez mais se dá pela lei dos homens; a partir do Estado dito laico que as mordaças são tecidas. Crenças são vertidas em legislação, sob o risco de aprisionamento. A laicidade é um sonho de verão — haja vista a tolerância com os jogadores de futebol agradecendo seus gols a alguma entidade divina ou o descaso com a perseguição aos rituais afrodescendentes.
Embora fosse útil, não é mais a economia que pauta a política — é a religião.“Deus acima de tudo” e “Deus, pátria, família” estão estampados nos discursos da extrema direita. Não adiantam os fatos — como a derrocada de Roma com a adoção do catolicismo ou o início da Revolução Industrial sem a mão pesada da igreja apostólica. Isso é História, e lá não existem milagres, só reprises: a fé dos outros que nos condenam ao atraso aumenta quando a humanidade anda mais rápido. É quando deixam de contar os dízimos e fazem leis.
A desordem está nas instituições
A democracia vive turbulências em toda a parte. A Revolução Digital trouxe benefícios jamais imaginados para a vida das pessoas, mas, ao mesmo tempo, transformou de modo radical as sociedades e as economias. Nas democracias o Poder ficou muito mais transparente e, com acesso a muito mais informação, a população multiplicou suas demandas ao Estado, colocando grandes pressões no sistema político.
Nas sociedades fechadas, governadas por regimes autoritários, sem competição política e sem liberdade de expressão, o mal-estar das pessoas não chega a se constituir em tensão social e o silêncio e o conformismo aparente dão a impressão de paz social e política. Além disso os governos são mais ativos, no sentido de que as políticas públicas são decididas sem discussão e a execução se faz sem intercorrências. São governos que podem fazer muito e podem também errar muito, e frequentemente erram, só que os erros são descobertos mais tarde.
As instituições políticas da democracia foram desenvolvidas há longo tempo, num ambiente muito diverso do que existe hoje. Confrontadas com a rapidez e a profundidade das mudanças provocadas pelas novas tecnologias da informação, as democracias estão sob duros ataques. O capitalismo sempre foi um sistema que produzia desigualdade, mas a Revolução Digital separou ainda mais as pessoas e, ao mesmo tempo, tornou estas desigualdades mais transparentes. Os governos submetidos aos processos democráticos de decidir e de executar políticas públicas são mais lentos e sujeitos a sérios impasses e paralisias. É natural que a grande maioria da população, além do temor das mudanças, se sinta desprotegida e desamparada pelo Estado. Daí para a tentação do populismo autoritário é um pulo.
Em tempos de normalidade as instituições democráticas são difíceis de reformar. O sistema partidário, o sistema eleitoral, o modo de funcionamento do Parlamento, os órgãos do Poder Judiciário, os benefícios e privilégios de toda a numerosa classe dirigente, do vereador e do juiz do pequeno município até às cúpulas dos Poderes, toda esta imensa máquina de poder sempre está confortável com o status quo e só em casos excepcionais deixa de reagir à mudanças que ponham em risco sua posição. Se essas instituições, no entanto, não forem profundamente reformadas, o antagonismo entre governo e população só tende a crescer, podendo um dia chegar a um ponto de ruptura.
Nas democracias mais amadurecidas os eleitores, ou se abstém em grande número ou têm mostrado insatisfação com os governos e uma grande dificuldade de formação de maiorias nítidas.
Á falta dessas maiorias e de consensos claros, os governos se arrastam na rotina e apelam para as polarizações estéreis que só servem para as disputas de poder e nada mais. Governos transformadores, com apoio social e capazes de compartilhar visões construtivas, estão cada vez mais raros. Sem eles as democracias deixam de funcionar.
Apesar da aparente serenidade, o Brasil é um país em crise. A economia cresce muito aquém do que seria necessário para sermos um país de uma grande maioria de classe média. Ainda por cima, vivemos no limite de uma crise fiscal e com perspectivas sombrias de crescimento futuro, em razão do declínio do investimento e do ambiente de insegurança causado por imprudências legislativas e por um Judiciário errático, para dizer o menos.
Em vários países as imperfeições da democracia em lidar com as mudanças tecnológicas e suas consequências têm provocado surtos de desordem entre a população. Entre nós a desordem provém principalmente das instituições, cujos membros distorcem as leis em seu proveito e vivem de capturar os recursos públicos em seu benefício, como demonstrou cabalmente o prof. Bruno Carazza, em seu livro recente “O país dos privilégios”.
As instituições da República, todas elas, tem funcionado de costas para o interesse público e despiedadas da maioria dos brasileiros. É preciso, no entanto, ter imaginação suficiente para que não morra em nós a esperança de que, mesmo aos poucos, essas realidades um dia serão transformadas.
Nas sociedades fechadas, governadas por regimes autoritários, sem competição política e sem liberdade de expressão, o mal-estar das pessoas não chega a se constituir em tensão social e o silêncio e o conformismo aparente dão a impressão de paz social e política. Além disso os governos são mais ativos, no sentido de que as políticas públicas são decididas sem discussão e a execução se faz sem intercorrências. São governos que podem fazer muito e podem também errar muito, e frequentemente erram, só que os erros são descobertos mais tarde.
As instituições políticas da democracia foram desenvolvidas há longo tempo, num ambiente muito diverso do que existe hoje. Confrontadas com a rapidez e a profundidade das mudanças provocadas pelas novas tecnologias da informação, as democracias estão sob duros ataques. O capitalismo sempre foi um sistema que produzia desigualdade, mas a Revolução Digital separou ainda mais as pessoas e, ao mesmo tempo, tornou estas desigualdades mais transparentes. Os governos submetidos aos processos democráticos de decidir e de executar políticas públicas são mais lentos e sujeitos a sérios impasses e paralisias. É natural que a grande maioria da população, além do temor das mudanças, se sinta desprotegida e desamparada pelo Estado. Daí para a tentação do populismo autoritário é um pulo.
Em tempos de normalidade as instituições democráticas são difíceis de reformar. O sistema partidário, o sistema eleitoral, o modo de funcionamento do Parlamento, os órgãos do Poder Judiciário, os benefícios e privilégios de toda a numerosa classe dirigente, do vereador e do juiz do pequeno município até às cúpulas dos Poderes, toda esta imensa máquina de poder sempre está confortável com o status quo e só em casos excepcionais deixa de reagir à mudanças que ponham em risco sua posição. Se essas instituições, no entanto, não forem profundamente reformadas, o antagonismo entre governo e população só tende a crescer, podendo um dia chegar a um ponto de ruptura.
Nas democracias mais amadurecidas os eleitores, ou se abstém em grande número ou têm mostrado insatisfação com os governos e uma grande dificuldade de formação de maiorias nítidas.
Á falta dessas maiorias e de consensos claros, os governos se arrastam na rotina e apelam para as polarizações estéreis que só servem para as disputas de poder e nada mais. Governos transformadores, com apoio social e capazes de compartilhar visões construtivas, estão cada vez mais raros. Sem eles as democracias deixam de funcionar.
Apesar da aparente serenidade, o Brasil é um país em crise. A economia cresce muito aquém do que seria necessário para sermos um país de uma grande maioria de classe média. Ainda por cima, vivemos no limite de uma crise fiscal e com perspectivas sombrias de crescimento futuro, em razão do declínio do investimento e do ambiente de insegurança causado por imprudências legislativas e por um Judiciário errático, para dizer o menos.
Em vários países as imperfeições da democracia em lidar com as mudanças tecnológicas e suas consequências têm provocado surtos de desordem entre a população. Entre nós a desordem provém principalmente das instituições, cujos membros distorcem as leis em seu proveito e vivem de capturar os recursos públicos em seu benefício, como demonstrou cabalmente o prof. Bruno Carazza, em seu livro recente “O país dos privilégios”.
As instituições da República, todas elas, tem funcionado de costas para o interesse público e despiedadas da maioria dos brasileiros. É preciso, no entanto, ter imaginação suficiente para que não morra em nós a esperança de que, mesmo aos poucos, essas realidades um dia serão transformadas.
O futuro da democracia
Seria, no mínimo imprudente, refletir sobre a democracia, em qualquer dimensão temporal, sem considerar, como ponto de partida, a notável lucidez do pensador e jusfilósofo Norberto Bobbio na obra seminal “O futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo”, publicada em 1986, pela editora Paz e Terra.
Entre as premissas, ele destaca o termo “transformação” dos regimes democráticos, presente nos textos que constituem o livro, e explica: “Prefiro falar em transformação, e não de crise, porque ‘crise’ nos faz pensar num colapso iminente. A democracia não goza no mundo de ótima saúde, como de resto jamais gozou no passado, mas não está à beira do túmulo”.
Na sequência, relata a resposta que deu a um estudante sobre se os Estados Unidos não deveriam ser considerados o como o país do futuro. Firme, mas sem perder a elegância, respondeu: “como país do futuro a América não me diz respeito. O filósofo não se afina com profecias […] A filosofia ocupa-se daquilo que é eternamente, ou melhor, da razão o com isto já temos muito o que fazer”, concluiu, recorrendo a Max Weber diante de semelhante indagação em relação a Alemanha: “A cátedra não existe nem para os demagogos nem para os profetas”.
Atualíssimas e pertinentes, as considerações do ilustre mestre italiano. Os regimes democráticos têm uma especial característica: extrai do que aparenta ser sua debilidade – o choque de ideias, as divergências do pluralismo, a competição pelo voto, o barulho que emana do funcionamento de pesos e contrapesos, tudo que, em certos momentos, transmite a sensação de instabilidade e fraqueza, é a força da natureza da democracia. Já o despotismo é estático, sempre igual a si mesmo, rígido não suporta pressão, não é capaz vergar: quebra a coesão social e produz vítimas.
Observam-se, ao longo do tempo, movimentos pendulares sob forma de ondas: ora, democráticas e ora, autoritárias o que aprofunda as pesquisas e os estudos da ciência política em relação à resistência da democracia diante dos riscos da aventura autoritária.
No livro Publicado em 1994 (A Terceira Onda: a democratização no final do século XX. Ed. Atica) Samuel Huntington identificou a partir de 1828 ondas de democratização, ondas reversas e a terceira onda a partir de 1974. Atualmente, o tema assume interesse especial seja pelo aumento do confronto de realidades antagônicas seja pela estratégia de corrosão das instituições que dão suporte à sociedade democrática.
Tomando-se período de 1990-2015, é possível constatar uma grande contradição: foi o quarto de século mais democrático da história mundial e o período em que ocorreu, em escala significativa, o enfraquecimento e a tomada do poder democrático, mediante a estratégia, sutil e insidiosa, de corroer por dentro as instituições que garantem a solidez da construção democrática.
Não à toa, o sociólogo e pesquisador do fenômeno contemporâneo do funcionamento das democracias, Larry Diamond (1951), denomina de “recessão democrática”, não a quantidade de autocracias implantadas, mas o processo predador de governança que legitima a farsa do discurso populista e a obra posterior de desmonte de “tudo que está aí”: um sistema corrupto e ineficiente. A rupturas institucionais dispensam o espetáculo das armas no espaço democrático das ruas.
Atualmente, vasta literatura tem se ocupado do fenômeno com forte dose advertência. Destaco o best-seller “Como as democracias morrem” (Jorge Zahar Editor Ltda. Rio de janeiro, 2018) que revela com profundidade a crise do sistema político norte-americano. Sobre o Brasil, alertaram, em debates e entrevistas, quanto aos efeitos do populismo bolsonarista. Por aqui, o oito de janeiro não vingou. Por lá, Trump está de volta, sedento de revanche e, curiosamente, com o peso da idade/experiência.
Por sua vez, o turbulento percurso da democracia brasileira de 2013 a 2023 mereceu consistente análise dos cientistas sociais, professores e colunistas políticos, Marcus André Melo e Carlos Pereira, no livro “Por que a democracia brasileira não morreu?” (Editora Schwarcz – São Paulo, 2024). Sem perder densidade acadêmica, o texto é acessível ao leitor que se interessa pela política como elemento essencial da educação cívica.
Os autores reconhecem a inexistência de um arranjo institucional que funcione de forma ideal. No caso brasileiro, explicitam as disfuncionalidades que afetam, inclusive, o nível de confiança das pessoas nas instituições (as distorções na relação entre o Poderes da República, a fragmentação partidária e o “custo da governabilidade” atrelados às raízes do clientelismo e do patrimonialismo, por sua vez, fortalecidos pela individualização da representação parlamentar).
No entanto, defendem o Presidencialismo Multipartidário como “uma coalizão de sobrevivência: não foi desenhado para gerar eficiência, mas para incluir, mesmo de forma dissipativa, os mais variados interesses sociais no jogo político”.
De outra parte, os autores dão ênfase à atuação de instituições contramajoritárias (Ministério Público, Instrumentos de controle e responsabilização dos atores políticos) e, de modo mais amplo, imprensa livre e sociedade ativa.
Assumem, portanto, o destemor de ir contra a corrente, ao atribuir a uma rede de organizações e um sistema de vetos aos excessos do poder, a proteção e o respeito à Constituição.
Voltando para concluir: e o futuro? Não custa agregar à sabedoria de Bobbio, a frase de Adam Przeworski “ama a incerteza e serás democrático”; a prescrição Jane Addams (Nobel da Paz, 1931): “a cura de todos os males da democracia é mais democracia”; o título que encerra o livro, “o paradoxo: a torcida pode vaiar, mas o jogo continua”.
Entre as premissas, ele destaca o termo “transformação” dos regimes democráticos, presente nos textos que constituem o livro, e explica: “Prefiro falar em transformação, e não de crise, porque ‘crise’ nos faz pensar num colapso iminente. A democracia não goza no mundo de ótima saúde, como de resto jamais gozou no passado, mas não está à beira do túmulo”.
Na sequência, relata a resposta que deu a um estudante sobre se os Estados Unidos não deveriam ser considerados o como o país do futuro. Firme, mas sem perder a elegância, respondeu: “como país do futuro a América não me diz respeito. O filósofo não se afina com profecias […] A filosofia ocupa-se daquilo que é eternamente, ou melhor, da razão o com isto já temos muito o que fazer”, concluiu, recorrendo a Max Weber diante de semelhante indagação em relação a Alemanha: “A cátedra não existe nem para os demagogos nem para os profetas”.
Atualíssimas e pertinentes, as considerações do ilustre mestre italiano. Os regimes democráticos têm uma especial característica: extrai do que aparenta ser sua debilidade – o choque de ideias, as divergências do pluralismo, a competição pelo voto, o barulho que emana do funcionamento de pesos e contrapesos, tudo que, em certos momentos, transmite a sensação de instabilidade e fraqueza, é a força da natureza da democracia. Já o despotismo é estático, sempre igual a si mesmo, rígido não suporta pressão, não é capaz vergar: quebra a coesão social e produz vítimas.
Observam-se, ao longo do tempo, movimentos pendulares sob forma de ondas: ora, democráticas e ora, autoritárias o que aprofunda as pesquisas e os estudos da ciência política em relação à resistência da democracia diante dos riscos da aventura autoritária.
No livro Publicado em 1994 (A Terceira Onda: a democratização no final do século XX. Ed. Atica) Samuel Huntington identificou a partir de 1828 ondas de democratização, ondas reversas e a terceira onda a partir de 1974. Atualmente, o tema assume interesse especial seja pelo aumento do confronto de realidades antagônicas seja pela estratégia de corrosão das instituições que dão suporte à sociedade democrática.
Tomando-se período de 1990-2015, é possível constatar uma grande contradição: foi o quarto de século mais democrático da história mundial e o período em que ocorreu, em escala significativa, o enfraquecimento e a tomada do poder democrático, mediante a estratégia, sutil e insidiosa, de corroer por dentro as instituições que garantem a solidez da construção democrática.
Não à toa, o sociólogo e pesquisador do fenômeno contemporâneo do funcionamento das democracias, Larry Diamond (1951), denomina de “recessão democrática”, não a quantidade de autocracias implantadas, mas o processo predador de governança que legitima a farsa do discurso populista e a obra posterior de desmonte de “tudo que está aí”: um sistema corrupto e ineficiente. A rupturas institucionais dispensam o espetáculo das armas no espaço democrático das ruas.
Atualmente, vasta literatura tem se ocupado do fenômeno com forte dose advertência. Destaco o best-seller “Como as democracias morrem” (Jorge Zahar Editor Ltda. Rio de janeiro, 2018) que revela com profundidade a crise do sistema político norte-americano. Sobre o Brasil, alertaram, em debates e entrevistas, quanto aos efeitos do populismo bolsonarista. Por aqui, o oito de janeiro não vingou. Por lá, Trump está de volta, sedento de revanche e, curiosamente, com o peso da idade/experiência.
Por sua vez, o turbulento percurso da democracia brasileira de 2013 a 2023 mereceu consistente análise dos cientistas sociais, professores e colunistas políticos, Marcus André Melo e Carlos Pereira, no livro “Por que a democracia brasileira não morreu?” (Editora Schwarcz – São Paulo, 2024). Sem perder densidade acadêmica, o texto é acessível ao leitor que se interessa pela política como elemento essencial da educação cívica.
Os autores reconhecem a inexistência de um arranjo institucional que funcione de forma ideal. No caso brasileiro, explicitam as disfuncionalidades que afetam, inclusive, o nível de confiança das pessoas nas instituições (as distorções na relação entre o Poderes da República, a fragmentação partidária e o “custo da governabilidade” atrelados às raízes do clientelismo e do patrimonialismo, por sua vez, fortalecidos pela individualização da representação parlamentar).
No entanto, defendem o Presidencialismo Multipartidário como “uma coalizão de sobrevivência: não foi desenhado para gerar eficiência, mas para incluir, mesmo de forma dissipativa, os mais variados interesses sociais no jogo político”.
De outra parte, os autores dão ênfase à atuação de instituições contramajoritárias (Ministério Público, Instrumentos de controle e responsabilização dos atores políticos) e, de modo mais amplo, imprensa livre e sociedade ativa.
Assumem, portanto, o destemor de ir contra a corrente, ao atribuir a uma rede de organizações e um sistema de vetos aos excessos do poder, a proteção e o respeito à Constituição.
Voltando para concluir: e o futuro? Não custa agregar à sabedoria de Bobbio, a frase de Adam Przeworski “ama a incerteza e serás democrático”; a prescrição Jane Addams (Nobel da Paz, 1931): “a cura de todos os males da democracia é mais democracia”; o título que encerra o livro, “o paradoxo: a torcida pode vaiar, mas o jogo continua”.
Os donos da nossa vontade
Um debate de que participei na terça (6), na Livraria da Travessa, com meus confrades Rosiska Darcy de Oliveira e Joaquim Falcão, da Academia Brasileira de Letras, e o jornalista Fernando Gabeira, tratou da ameaça que pende sobre a palavra escrita diante da inteligência artificial. Discutiu-se a diferença entre as medidas tomadas contra a palavra no decorrer da história —fechamento de gráficas, censura prévia, apreensão de livros e jornais, perseguição, prisão e até morte de escritores e jornalistas— e as atuais, incorpóreas, intangíveis e talvez inimputáveis.
A diferença é que aquelas medidas eram materiais, possíveis de ser enfrentadas. Hoje, não se trata mais de apagar a palavra, mas de nos induzir a usá-la contra nós mesmos. Uma simples consulta ao extrato bancário ou sobre qualquer assunto no celular permite aos algoritmos aprenderem instantaneamente tudo a nosso respeito e repassá-lo a um ente abstrato, que passa a decidir sobre o que queremos ou precisamos. O Google tornou-se dono da nossa vontade.
Em cerca de 400 a.C., Aristóteles codificou o silogismo, o processo em que duas premissas conduzem a um conhecimento lógico, à conclusão. Esses três elementos, as premissas e a conclusão, foram a base de tudo que fizemos até hoje. Ou até ontem porque, de repente, tornamo-nos meras extensões de um sistema binário que nos reduziu a um sim ou não, a um isto ou aquilo, sem as zonas de dúvida e de sombra que nos tornam humanos.
E o que dizer do mundo que agora cabe na palma da mão, ao alcance do dedo de uma criança, e faz com que as necessidades dessa criança sejam satisfeitas em 1 segundo, aviltando-a, dispensando-a da experiência do convívio e da socialização?
Não foi um debate exatamente otimista. Aventou-se a hipótese de termos sido invadidos por seres de outro planeta. Mas pode ser pior. Talvez eles já nos tenham roubado o planeta.
A diferença é que aquelas medidas eram materiais, possíveis de ser enfrentadas. Hoje, não se trata mais de apagar a palavra, mas de nos induzir a usá-la contra nós mesmos. Uma simples consulta ao extrato bancário ou sobre qualquer assunto no celular permite aos algoritmos aprenderem instantaneamente tudo a nosso respeito e repassá-lo a um ente abstrato, que passa a decidir sobre o que queremos ou precisamos. O Google tornou-se dono da nossa vontade.
Em cerca de 400 a.C., Aristóteles codificou o silogismo, o processo em que duas premissas conduzem a um conhecimento lógico, à conclusão. Esses três elementos, as premissas e a conclusão, foram a base de tudo que fizemos até hoje. Ou até ontem porque, de repente, tornamo-nos meras extensões de um sistema binário que nos reduziu a um sim ou não, a um isto ou aquilo, sem as zonas de dúvida e de sombra que nos tornam humanos.
E o que dizer do mundo que agora cabe na palma da mão, ao alcance do dedo de uma criança, e faz com que as necessidades dessa criança sejam satisfeitas em 1 segundo, aviltando-a, dispensando-a da experiência do convívio e da socialização?
Não foi um debate exatamente otimista. Aventou-se a hipótese de termos sido invadidos por seres de outro planeta. Mas pode ser pior. Talvez eles já nos tenham roubado o planeta.
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