domingo, 12 de janeiro de 2020

Máquina de mentiras de Bolsonaro quer enganar seus próprios apoiadores

A turma do governo se emplumou na virada do ano para fazer uma comparação que parecia impressionante. Auxiliares de Jair Bolsonaro divulgaram que o custo das viagens do presidente em seu primeiro ano havia sido de R$ 8 milhões, ao passo que Dilma Rousseff havia gastado R$ 483 milhões em 2014.

A intenção era louvar o chefe e sua capacidade de gestão, em contraste com a gastança desenfreada dos “esquerdopatas”. A ministra Damares Alves escreveu: “Vamos deixar o povo julgar”. Mas era tudo mentira.


Os governistas emparelharam coisas totalmente diferentes. A cifra de Dilma englobava os gastos com passagens de todos os servidores do governo, enquanto o número de Bolsonaro levava em conta só as viagens do presidente. No ano passado, na verdade, o valor total destinado a passagens foi de R$ 421 milhões, segundo o Portal da Transparência.

A máquina de propaganda do bolsonarismo se alimenta de mentiras, informações distorcidas, dados maquiados e comparações esdrúxulas. A função desse mecanismo não é só confundir o debate público, mas principalmente enganar os próprios apoiadores do governo.

Em certas situações, o presidente elabora mentiras sob medida para suas bases. Criticado por seguidores, ele inventou que sofreria um impeachment se vetasse a destinação de R$ 2 bilhões para o fundo eleitoral.

A desonestidade chega a níveis ridículos. Na sexta (10), Eduardo Bolsonaro reclamou que os incêndios florestais na Austrália não receberam do Instituto Chico Mendes a mesma atenção dada às queimadas na Amazônia. Não deveria ser preciso explicar que o órgão ambiental federal não tem nenhuma relação com desastres em outros países.

Bolsonaro e sua equipe não espalham absurdos para fazer com que seus críticos mudem de ideia. O objetivo é convencer simpatizantes de que o governo vai bem e fazer com que eles mesmos espalhem essas lorotas de baixa qualidade. O presidente, nesse caso, trata seus apoiadores como se fossem ingênuos ou idiotas.

Degradação da Amazônia já chegou a ponto irrecuperável

Professor na Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos, o engenheiro florestal brasileiro Paulo Brando costuma usar uma analogia simples do mundo financeiro para explicar a importância da preservação da Amazônia. Ele convida o interlocutor a imaginar uma conta poupança. "Bem grande, cujos juros geram bastante dinheiro. Mas em vez de dinheiro, nela há um estoque de carbono. Ou seja, os juros são a capacidade de absorção de mais carbono."

"Quanto mais você tira o dinheiro, menos juros essa conta rende. No caso das queimadas na Amazônia, estamos tirando a capacidade de absorção do carbono. Então basicamente os incêndios florestais somos nós queimando dinheiro", compara o cientista.

Na sexta-feira, o periódico científico Science Advances trouxe uma pesquisa conduzida por Brando, na qual ele modelou os cenários da floresta brasileira diante das queimadas e do aquecimento global. E o futuro não é nada animador. A Amazônia caminha para o colapso, diz o pesquisador.

"No pior dos cenários, 16% da floresta serão queimados daqui para a frente até 2050. Junto a outros fatores de degradação, isso vai interagir com o clima", afirma ele, à DW Brasil. "Estamos jogando uma roleta russa ambiental. Não sabemos qual é o número [a data exata do colapso], mas estamos chegando cada vez mais perto. Se chegarmos, a coisa vai para o buraco. O fogo é catalisador do processo."

A pesquisa mostra que os níveis de desmatamento e o cenário previsto para o aquecimento global irão contribuir para intensificar ainda mais as queimadas na Amazônia.

Em agosto do ano passado, a floresta brasileira teve uma quantidade de incêndios bem acima da média. No período, foram registrados 30.901 focos de incêndio – a média registrada entre 1998 e 2018 para o mesmo mês era de 25.853. Comparando somente com o mês de agosto do ano anterior (10.421 focos de incêndio), a alta foi de 196%.

"O resultado desse processo é que, com a intensificação do fogo, haverá mais emissão de carbono na atmosfera. O desmatamento interage com mudanças climáticas e pode aumentar ainda mais a área queimada e as emissões pelo fogo", comenta Brando. Trata-se de um ciclo vicioso, diz.

"Nosso estudo prevê o impacto disso na floresta. A Amazônia se protege do fogo porque tem um sub-bosque úmido, que não deixa as folhas secarem. A proteção da floresta é este sub-bosque. Quando há uma seca, uma temperatura mais alta, as plantas podem ficar estressadas hidricamente e jogar folhas para reduzir esse estresse. Com isso, entra mais luz, seca o sub-bosque e acaba essa proteção." Então, conforme explica o cientista, o fogo gerado nas zonas desmatadas, por ação humana, "escapam e invadem a área de floresta primária".

Segundo Brando, o estágio desse processo já é tão grave que, mesmo se todo o processo de desmatamento fosse interrompido hoje, o índice de incêndios prováveis para as próximas décadas seria reduzido em apenas 50%. "Se compararmos a Amazônia que existia na primeira década dos anos 2000 e a que deve existir em 2050, a área queimada quase dobra", afirma.

De acordo com a pesquisa, a degradação da Amazônia já chegou a um ponto irrecuperável. "Em nossas simulações, a floresta não consegue se recuperar totalmente mais, mesmo em uma condição sem nenhum fogo", pontua. "Mesmo que haja, na natureza, uma tendência de recuperação, [no atual estágio] isso não é suficiente, porque as mudanças climáticas não permitem. Então tem mais carbono ficando na atmosfera."

"Os cenários futuros de clima gerados por modelos climáticos, que têm incertezas, sugerem que, no futuro, devido ao aumento de temperatura de de concentração de dióxido de carbono, a floresta pode entrar em colapso, por não conseguir mais absorver mais carbono – e passar a emitir carbono", comenta o climatologista e meteorologista José Marengo, coordenador-geral de Pesquisa e Desenvolvimento, do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden).

Segundo ele, isso significa a transformação de uma floresta sempre verde numa área florestal do tipo secundária ou mesmo na chamada savanização da Amazônia, ou seja, numa "vegetação tipo cerrado".

"[Esse cenário] pode agravar a situação atual de aquecimento global", completa o climatologista. "Podemos ter um clima mais seco, quente. E isso pode favorecer mais o risco de fogo e queimadas, que no final liberam ainda mais dióxido de carbono."

De acordo com o climatologista Carlos Nobre, pesquisador da Universidade de São Paulo (USP), a floresta "não perturbada" tem absorvido nas últimas décadas uma quantidade que varia entre 1 bilhão e 2 bilhões de toneladas de gás carbônico por ano.

"Globalmente, as atividades humanas emitem cerca de 40 bilhões de toneladas por ano", afirma ele. "Portanto, a Amazônia retira da atmosfera entre 2,5% e 5% de todo o dióxido de carbono emitido. Se ela se tornar uma fonte de carbono, tanto pelo seu desmatamento, pelo aumento da destruição da floresta pelo fogo, quanto pelo próprio aumento da morte de árvores devido às mudanças climáticas, perde-se este importantíssimo serviço ecossistêmico para o planeta."

Os incêndios ocorridos em 2019, concordam os especialistas, estiveram diretamente ligados à ação humana. "2019 não foi um ano anormalmente seco, como foi 2016, na Amazônia. Ainda assim, os desmatamentos e as queimadas induzidas diretamente por ações humanas aumentaram muito. O número de queimadas e a área queimada na Amazônia brasileira quase dobraram em 2019 em relação a 2018 e foram até bem maiores do que em 2016, ano de uma seca extrema", diz Nobre.

"Isto é, o aumento de queimadas não pode ser atribuído somente a fatores de secas extremas. A ação humana em desmatar e colocar fogo para abrir novas áreas para a agropecuária contribuem muito para o aumento das queimadas", acrescenta.

Segundo o climatologista, também o tradicional uso do fogo na agricultura tropical contribui para uma maior ocorrência de queimadas. "Muitas das áreas de florestas que pegam fogo são contíguas a áreas de agricultura. É o fogo para limpar a pastagem ou resíduos de culturas agrícolas escapam e propagam pelo chão da floresta. Podem propagar por centenas de metros no chão da floresta, queimando a biomassa da serrapilheira, mas também afetando árvores e aumentando a mortalidade de muitas árvores, que vão morrendo em anos subsequentes", explica.

"As queimadas na Amazônia são maiormente geradas pelo homem, e com atmosfera e superfície secas o fogo se propaga rapidamente. O ano 2019 é sim uma mostra do que pode acontecer se aquecimento global aumenta e se desmatamento aumenta, mas não podemos dizer que a situação de 2019 vai se repetir em todos os anos seguintes", acrescenta Marengo.
Deutsche Welle

Relaxe


Menos textos, solução de Bolsonaro para o Brasil

Responsável pela educação de 01, 02 e 03, cavalheiros conhecidos pela cultura, pelo domínio da língua e pela riqueza intelectual, o presidente Jair Bolsonaro promete entregar em 2021 novos livros didáticos, mais adequados à formação de jovens produtivos e moralmente sadios. Os brasileiros têm sólidos motivos, portanto, para otimismo em relação a este ano, ao ano seguinte e, de modo mais amplo, ao futuro do País, se as novas diretrizes forem preservadas. O ministro da Educação, Abraham Weintraub, certamente contribuirá para o sucesso da revolução educacional. Horizontes serão ampliados e os brasileiros, seguindo o exemplo do ministro, poderão escrever “imprecionante” e “paralização”, livrando-se da mediocridade das normas ortográficas.

O educador Bolsonaro anunciou no dia 3 de janeiro, na saída do Palácio da Alvorada, o compromisso de renovação dos livros didáticos. “Os livros hoje em dia, como regra, é um montão, um amontoado... Muita coisa escrita, tem que suavizar tudo aquilo”, explicou o presidente, segundo a transcrição publicada pela imprensa. Mais dedicado à oralidade do que à escrita, ele compõe, no entanto, um par muito harmonioso com o ministro da Educação. “Falando em suavização”, continuou o presidente, “estou vendo uma cabeça branca ali, estudei na cartilha Caminho Suave. Você não esquece. Não esse lixo que, como regra, está por aí. Essa ideologia de Paulo Freire.”


A preocupação com os grandes desafios brasileiros e com a insegurança global pode ter induzido a alguma confusão. Embora Paulo Freire seja considerado patrono da educação brasileira, suas ideias estão longe de ser dominantes. As escolas se distinguem também pelos métodos e estilos. Além disso, Paulo Freire notabilizou-se principalmente pela aplicação de suas ideias à educação de adultos. Ele recomendava levar em conta a experiência do grupo, suas condições de vida, suas preocupações e seu vocabulário. Bolsonaro, tanto quanto se sabe, nunca foi aluno de um desses cursos. Nenhuma pessoa bem formada a partir da leitura de uma boa cartilha precisaria disso.

Pouco propenso a exibicionismo, o presidente Jair Bolsonaro tem sido parcimonioso na referência a livros, a autores e a obras de arte. Não costuma ilustrar suas ideias com citações. Refere-se a Marx, de vez em quando, para condená-lo, mas sem jamais mencionar diretamente algum texto, digamos, do Manifesto Comunista, da Contribuição à Crítica da Economia Política ou d’O Capital. Tampouco se refere diretamente aos escritos de Paulo Freire, talvez por precaução. Mas dificilmente a citação de textos poderia contribuir para a difusão de obras nocivas à juventude, à prosperidade nacional e à vida cristã. Quem seria tentado a conhecer livros como Pedagogia do Oprimido, Educação como Prática de Liberdade e Pedagogia da Autonomia, obras de um sujeito classificado por Bolsonaro como energúmeno?

O público mais atento ao formador moral e intelectual de 01, 02 e 03 dificilmente seria atraído por esse engano. Esse público é certamente parcimonioso no uso do tempo dedicado à leitura e sabe evitar o perigo. Quanto às pessoas menos prevenidas, é preciso continuar a instruí-las sobre as armadilhas frequentemente ocultas entre capas e contracapas.

Ao criticar os livros didáticos em uso no Brasil, o presidente Jair Bolsonaro deu algumas pistas de seus planos salvadores. Esses livros, disse ele, têm “muita coisa escrita”. É preciso, portanto, suavizá-los. O aprendizado segundo o método Bolsonaro será facilitado e aperfeiçoado, portanto, com redução da “coisa escrita”. Convém ler menos para aprender o necessário e conveniente à civilização em construção no Brasil. A maioria dos brasileiros já pouco se dedica à leitura. É preciso difundir essa qualidade – a cuidadosa distância dos livros – e estendê-la, tanto quanto possível, aos universitários.

Se o ministro Weintraub foi suficientemente cauteloso, outros também poderão ser. O governo tem um bom conjunto de exemplos. Além de Weintraub, há a ministra Damares Alves e o ministro de Relações Exteriores, defensor de uma diplomacia cristã para um Estado laico. Ele cita livros de vez em quando, mas parece ter sido pouco prejudicado intelectual, moral e ideologicamente por seu uso. Mas nem todos têm essa capacidade. Por isso é necessário ajudá-los a evitar os perigos.

O presidente educador e seus principais auxiliares têm a seu favor, no entanto, um fato muito auspicioso e nem sempre lembrado. Paulo Freire escreveu muito e alguns de seus textos são longos. Algumas obras de Marx são enormes e complicadas. No Brasil, muitos comunistas nunca leram O Capital. Algumas das principais obras de Sartre, como O Ser e o Nada, são assustadoramente extensas. Mas também entre os chamados liberais há autores perigosos, especialmente porque fingem aproximar-se de valores do Ocidente. É o caso de pensadores como John Rawls, Ronald Dworkin, Robert Dahl, Herbert L. A. Hart e Amartya Sen. Convém ser muito cuidadoso em relação a este último. Ganhador do Nobel de Economia, pode atrair a atenção de jovens desprevenidos. Mas todos esses, felizmente, são autores de textos longos e nem sempre simples, embora com frequência bem escritos – pelos padrões anteriores aos bolsonarianos e weintraubianos.

Ainda no dia 3, horas depois das palavras sobre os livros didáticos, o presidente Bolsonaro apoiou, por meio de nota do Itamaraty, a ação do presidente Donald Trump contra o general iraniano Qassim Suleimani. O governo brasileiro foi muito mais ousado, nesse momento, que os da Europa Ocidental. Preocupadas com as exportações para o mundo muçulmano, figuras importantes do agronegócio pediram cautela ao presidente Bolsonaro. Que são, no entanto, alguns bilhões de dólares diante dos valores cristãos encarnados pelo presidente americano? Certamente faltou a esses líderes a educação agora prometida pelo discípulo de Trump.

A China põe fim à pobreza em 2020?

Fazer previsões é tarefa reconhecidamente arriscada. Mas neste caso é possível ousar: em 2020 a China declarará ter acabado com a pobreza no país,</a> atingindo meta adotada em 2015. Mesmo que alguns questionem critérios e dados, é espetacular a trajetória do país rumo a uma “sociedade moderadamente próspera”, objetivo chinês do momento.

A China resgatou mais de 850 milhões de pessoas da pobreza desde o início das reformas econômicas em 1978, segundo o Banco Mundial. É mais do que toda a população da América Latina.

A China tinha 10 milhões de pessoas abaixo da linha internacional de pobreza em 2015, segundo o Banco. Coincidentemente, o Brasil (em 2017) também tinha seus 10 milhões de habitantes vivendo com até US$ 1,90 por dia. A diferença é que na China esse número corresponde a 0,7% da população e no Brasil, a 4,8%.

O desafio para a China passará a ser as 373 milhões de pessoas vivendo com até US$ 5,50  por dia (2015). É muitíssimo, mas o progresso é inegável: em 1981, 98,3% da população chinesa vivia com menos que isso e, em 2015, 27,2%.


O mundo se orgulha do progresso feito no combate à pobreza, a ONU trompeteou o cumprimento da meta de desenvolvimento do milênio nessa área. Mas os dados agregados escondem o fato de que se trata de um fenômeno sobretudo chinês. A China sozinha responde por mais de 70% da redução global da pobreza desde os anos 1980.

O crescimento econômico foi o grande remédio antipobreza na China. Deng Xiaoping definiu a meta de quadruplicar, até 2000, o PIB chinês e o PIB per capita da China de 1980. Como disse a Economist, Deng se mostrou espetacularmente correto. Em 1995 o PIB havia crescido quatro vezes em termos reais e, em 1997, o PIB per capita também. Novas metas de crescimento foram anunciadas e atingidas. Crescimento não explica tudo, mas sem ele não há esperança.

Tampouco o crescimento é livre de problemas: degradação ambiental, desigualdade e corrupção são efeitos colaterais que o país hoje luta para combater. Cada vez mais se falará na China de qualidade em vez de velocidade do crescimento —especialmente porque é impossível manter as taxas do passado.

O governo chinês adota critério diferente para medir pobreza, que acaba sendo mais rigoroso que o padrão internacional. Segundo o governo, no final de 2018 ainda havia 16,6 milhões de pessoas nessa condição (mais que os 10 milhões pela régua do Banco Mundial em 2015). Alguns especialistas opinam que, para tirar esta última leva da pobreza, a China teria que crescer pelo menos 6,2% em 2019 e 2020, o que talvez seja ambicioso demais nas atuais circunstâncias.

Em 2019, o combate à pobreza rendeu o Prêmio Nobel de Economia a três estudiosos do assunto. Na ocasião, a imprensa chinesa publicou um artigo que lá pelas tantas dizia que quem realmente merecia o Nobel era a China —porque fez a coisa acontecer na prática. 

Certamente o mundo não está disposto a comprar tudo o que o governo chinês vê como história de sucesso, mas em matéria de luta contra a pobreza a China é provavelmente imbatível. Ao final de 2020, pode escrever, haverá comemoração. Além de combater a pobreza, anunciar o cumprimento de metas é especialidade local.
Tatiana Prazeres, Senior fellow na Universidade de Negócios Internacionais e Economia

O diabo agradece

Vem, comigo!, diz Mefistófeles, o coisa-ruim germânico, ao doutor Fausto, depois que Margarida, a musa em perdição, é julgada e salva pelos céus. Assim termina a peça de Goethe que eterniza a lenda alemã; e, também, a ópera do francês Charles Gounod, meio século depois.

Sexta-feira, 26 de julho. As duas mil pessoas que lotam o Teatro Municipal ovacionam "piradamente" a cena final da ópera que comemora o aniversário da casa com sua orquestra, seu balé, seu coro e grande elenco.

O mais aplaudido, no entanto, não é o protagonista Fausto, velho sábio que comprou, do diabo, a fonte da juventude, e se danou. Nem a musa Margarida, vítima, heroína, que não traiu sua consciência. É ele, sim, Mefisto, o demo, que recebe do público os urros e hurras, os uivos e bravos.

O diabo, encarnado na pele do baixo-barítono chileno Homero Perez-Miranda, agradece na beira do palco, girando sua capa de fundo vermelho, que alterna com a fantasia de fauno chifrudo. O povo vai à loucura.

Sempre se pode dizer que a preferência pelo demo é decorrente do talento do cantor. Ou não. Afinal, o diabo, que sempre esteve em cena, vem dando, nos últimos tempos, um show. Estão dizendo, por aí, que ele é o cara.

Trabalhando nem tão duro assim, em todas as frentes, invadindo o campo sem pedir licença, bastando uns salamaleques para aumentar as apostas em sua ressurreição, o invertido vai ocupando espaços e reescrevendo a História.

Por sua folha corrida de serviços prestados às pautas mais perversas, o anjo caído vem sendo tratado como santo em ascensão. Nunca se deu tanto mole para ele. Mal-acostumado, o miúdo vai fazendo, em clima de festa, o "desmilagre" da multiplicação, pescando adeptos em todas as redes.

Surfando nas consciências e nas miopias, o diabo cresce na calada que consente; na espuma que desvia; nas cortinas de fumaça; na análise que naturaliza; na autocensura; na mania da falsa simetria; nas mãos lavadas de unhas sujas; e na sua velha aliada, a covardia.

Carlos Heitor Cony gostava de dizer que todo o mundo, mais dia, menos dia, faz um pacto com o diabo. Nem precisa chamar o bicho pelo nome: mal chega a idade da razão, numa noite de insônia, ou tarde de ressaca, o cão se insinua e toda a gente decide, em suores culpados, trocar um grande sonho por um atalho ordinário; um ideal por uma vitória oca; um princípio por um fim; um amor por um prazer; o saber pelo cinismo; a difícil paz por um caraminguá.

O problema é que, em geral, o pactuado, iludido pelo encanto pragmático do tinhoso, esquece que assinou, com gotinhas do sangue próprio, uma nota promissória anexa ao contrato. Nela, se lê, nitidamente, o preço a ser pago: uma alma.

O que assusta hoje em dia é que a venda da alma, que deveria ser uma crise, um evento decisivo, singular, único, na vida de um indivíduo, vai se tornando hábito à medida que se afrouxa a cartilha. O demo da vez passa a se justificar em nome de guerras santas herdadas de infernos passados.&nbsp;

Assim, vende-se e revende-se a alma em ritmo social, sob a alegação de que faz parte do jogo. Pouca gente está se dando conta, como bem ensinou Cony, de que, cedo ou tarde, Mefisto baterá suavemente à porta para recolher, com um sorriso largo, o vil mercúrio.

Pensamento do Dia


Domingos plácidos dos desalmados

A partir do dia em que a humanidade começou a fabricar e a armazenar armamento nuclear, a questão não é a de saber se alguma dessas bombas irá explodir, mas quando. Tudo aquilo que existe, tudo aquilo que fabricamos, tem uma função, e em algum momento acabará cumprindo-a. “Ah, mas a função das bombas nucleares não é explodir, e sim dissuadir”, argumentam militares e militaristas. Sei. É como aqueles assaltantes que mostram a faca, mas não a pretendem utilizar:

 “Não mesmo, senhor doutor juiz, a faca era apenas para dissuadir.”

 “Então por que a enterrou na barriga da vítima?”

“É que não havia maneira dele se dissuadir.”

A faca serve (também) para pôr manteiga no pão. Antes de enterrar aquela faca concreta na barriga do assaltado, talvez o assaltante a tenha utilizado para cortar uma maçã, e dividi-la com o amigo. Uma bomba nuclear, pelo contrário, serve apenas para explodir e destruir. 


Penso muito nos inventores do mal. Por exemplo, o sujeito, ou sujeitos, que conceberam um tipo específico de mina antipessoal, que os militares chamam bailarina ou saltadora, programada para pular e explodir à altura dos genitais. O objetivo desse tipo de mina não é matar, mas ferir os soldados, incapacitando-os, e aterrorizando os restantes. Um soldado ferido dá muito mais trabalho do que um morto. Um soldado ferido, gritando e contorcendo-se, aterroriza muito mais. 

Como serão as manhãs de domingo dos inventores do mal, dos torturadores, dos fabricantes de armamento? Ajudarão a filha bebê a calçar os sapatinhos? Oferecerão flores à namorada? Irão à missa? Jogarão futebol com os amigos?

Talvez por um incômodo instante, distraídos, lhes exploda no cérebro uma imagem: o rosto espantado da menina que pisou uma mina e perdeu a perna. A mãe colocando flores na campa do único filho, morto na guerra. Ou não. É possível que nunca pensem nas vítimas, e placidamente atravessem as tardes, como aves sem culpa, rindo e conversando e apreciando o sol que lhes queima a pele.

Paul Tibbets, o piloto do Enola Gay, que lançou a bomba atômica sobre Hiroshima, viveu em paz consigo próprio até morrer, aos 92 anos, em novembro de 2007. Segundo confessou em diversas entrevistas, nunca pensava nas 250 mil vítimas da explosão. Não tinha tempo para isso.

Imagino Donald Trump, levantando-se da cama, na manhã em que mandou assassinar Qasem Soleimani e os membros da comitiva que o acompanhava. Pensou nas eventuais consequências do ato? Ou, estudando-se ao espelho, demoradamente, apenas se preocupou com as rugas e o falso bronzeado?

É agradável acreditar na universalidade do remorso. Contudo, da mesma forma que nem todas as pessoas têm bom ouvido para a música, também nem todas sofrem com o sofrimento que infligem a terceiros. As guerras acontecem porque colocamos no poder, ou ajudamos a colocar, pessoas assim. Não estou a falar dos desafinados — esses também têm coração. Estou a falar dos desalmados. 

Um dia, sim, repetiremos Hiroshima. Eventualmente, sem castigo e sem remorso. Para Hiroshima, como sabemos, não houve castigo nem remorso. Nem lição. Não aprendemos nada.

Suicídio lento e agoniante

O ecocídio nos mostrará que estamos errados. E chegará o apocalipse. A mãe natureza sempre nos ensina. Muitas vezes, penso que aceitar a mudança climática é como aceitar o final de cada um de nós individualmente, a nossa própria morte
Paul Kingsnorth, "Confessions of a Recovering Environmentalist" ("Confissões de um ecologista sob reabilitação")

'Mad Max' já não se passa no futuro

Nos primeiros três filmes da série apocalíptica australiana Mad Max, lançados nos anos setenta e oitenta, os guerreiros da estrada lutavam por gasolina. No quarto, Mad Max: Estrada da Fúria, que chegou aos cinemas em 2015, a guerra é por água. Não existe uma causa única que explica a onda de incêndios que atingiu a Austrália, os mais devastadores da história do imenso país, mas a seca e as temperaturas extremas são as principais, consequências diretas da mudança climática. A crise que o país sofre já estava em sua literatura e em seu cinema: a diferença é que agora parece que o futuro mais alarmante chegou.


“A ficção pós-apocalíptica mudou para a seção de atualidade”, diz um cartaz na livraria do povoado de Cobargo, em Nova Gales do Sul, que estava no epicentro dos incêndios. O escritor australiano Richard Flanagan contou essa história em um artigo no The New York Times chamado ‘A Austrália comete um suicídio climático’ para descrever a sensação de que uma espécie de armagedom havia se abatido sobre seu país, com 26 mortos, milhões de hectares destruídos – somente em Nova Gales do Sul foi queimada uma superfície equivalente à Dinamarca –, milhões de animais mortos, milhares de pessoas presas nas praias, encurraladas entre as chamas e o mar, esperando ser resgatadas, e um ar irrespirável em suas principais cidades, normalmente arejadas, arborizadas e praieiras.

Flanagan afirma que a situação em seu país parecia uma mistura de Mad Max com A Hora Final, um filme de ficção científica dos anos cinquenta, em plena Guerra Fria, em que um desastre nuclear acabou com a humanidade e somente um punhado de humanos sobrevive em uma praia australiana. Também cita os pintores flamengos Bruegel e Bosch, o que não deixa de ser curioso porque principalmente o primeiro encarna a chamada Pequena Era do Gelo, com suas paisagens geladas nos Países Baixos, que refletem a brutal queda de temperaturas que o mundo viveu no século XVII. A ficção australiana soube refletir o ameaçador futuro que surge em um horizonte cada vez mais próximo.

Nos primeiros filmes de Mad Max, protagonizados por Mel Gibson e dirigidos por George Miller, a grande questão era a gasolina: em um mundo destruído por um apocalipse nuclear, o combustível havia se transformado no bem mais precioso. Bandos de selvagens lutam contra grupos de humanos que tentam reconstruir algo parecido a uma civilização. Quando Miller retomou a série em 2015, entretanto, com um filme que apareceu em muitas listas do melhor da década, a questão crucial dessa vez era a água.

O grupo de fugitivos que foge do malvado feio e deformado – todos os malvados do filme são herdeiros do vilão do segundo, o grande Humungus – não vai à procura de gasolina, e sim de um mundo verde que aparece em suas lendas. Quando o encontram, está totalmente destruído pela seca e um solo ácido e só então percebem que todo o poder do vilão está em que ele controla a água, um imenso aquífero que raciona de maneira mesquinha. De fato, em uma das primeiras cenas do filme, uma multidão andrajosa se amontoa com panelas imundas para recolher a pouca água que lhes é jogada de uma montanha.

A seca e o controle da água também protagonizam a estupenda minissérie australiana Mystery Road, de 2013. É um relato sombrio em que um inspetor aborígene e uma capitã da polícia local investigam um desaparecimento em um povoado do deserto australiano, o interminável outback. A água, novamente, volta a estar no centro da intriga, de fato é um bem tão valioso que todos os poços têm câmeras. As imagens de reses caminhando sobre a terra rachada, onde antes havia água, resume o que se chamou de A Grande Seca, que entre 2003 e 2012 deixou sem chuva uma boa parte do país.

E o título do primeiro romance de Jane Harper diz tudo, uma autora britânica radicada na Austrália: A Seca (Editora Morro Branco). Um policial volta ao seu povoado, cheio de fantasmas de seu passado, para investigar um crime e percebe que as paisagens de sua infância foram devoradas pela seca, entre elas um rio que desapareceu. Fora da ficção, a historiadora australiana Rebecca Jones escreveu um livro chamado Slow catastrophes: Living with drought in Australia (Lenta Catástrofe: viver com a seca na Austrália), publicado em 2017 pela Universidade Monash, em que estuda oito famílias de fazendeiros e criadores de gado, entre 1870 e 1950. O centro de seu relato é, naturalmente, como sobreviver à seca.

“Ferir a terra é ferir-se a si mesmo”, diz um personagem do grande relato de viagens pela Austrália de Bruce Chatwin, O Rastro dos Cantos (Companhia das Letras), para resumir a relação que os aborígenes tinham com a natureza que os cercava. “A terra deve permanecer intacta: tal como era no Tempo do Sonho, quando os antepassados deram vida ao mundo com sua canção”, diz Arkadi, um australiano de origem ucraniana, que conhecia como ninguém a cultura dos primeiros povoadores da ilha. Esse sonho se quebrou para se transformar em um presente de fogo e destruição que muitos pensavam pertencer ao futuro.
Guillermo Altares

A economia da compaixão

A subversiva e natalina economia da compaixão é um modo popular e necessário de enfrentar as irracionalidades sociais do nosso capitalismo subdesenvolvido porque não realizado na sua plenitude. Pelo caminho que vamos, não o será nunca. A compaixão é o recurso usado por almas caridosas para o reparo tópico, em nome de todos, das injustiças sociais praticadas no interesse de poucos.

Não estou fazendo a censura e a recusa da compaixão. A obra dos últimos guardiães da decência e do respeito pela condição humana que, com ela, amparam os desvalidos do economismo sem pé nem cabeça. As vítimas dos gestores caros que não avaliam as consequências de sua opção de fazer dos outros pessoas baratas.

Gente que acha que sabe ganhar dinheiro, mas que não sabe distribuir justiça nem sabe reconhecer direitos que, embora omitidos na lei, nascem com as pessoas. Caso do direito à vida, à alimentação, ao abrigo, ao trabalho. Já para não falar na liberdade, no direito à esperança, ao respeito, à educação, ao livro, à arte, à música, à poesia, à fé não mercantilizada. Manifestações que têm sentido na ótica crítica da economia moral.

Às bravatas e à petulância dos gestores que na economia não medem os ganhos descomunais pela régua social e que pensam a vida pelo metro do ego voraz e insaciável, opõe-se o silêncio do gesto solidário dos que ainda pensam a vida de todos como a vida do próximo. Pautam-se por regras pré-modernas de teor humanístico que, trazidas para a atualidade, funcionam como contraponto crítico da economia moderna. É a mão na consciência que o frio e mero cálculo do lucro não conhece nem sabe o que é nem ensinam nas escolas de economia.

Talvez porque, em minha idade, eu tenha mais tempo para andar por aí e prestar atenção naquilo que o tempo me permite ver melhor e mais atentamente, vejo muitas manifestações desse outro Brasil que já foi mais visível do que é hoje. Não só, mas meu principal laboratório de observação é a cidade de São Paulo, lugar extremo das consequências sociais da economia da indiferença. Mas também de suas injustiças mais escandalosas.


É a metrópole, provavelmente, com maior número de seres humanos descartáveis, os sem lugar e sem destino. Os seres humanos que o acaso da loteria do desemprego e do abandono, do ganho insuficiente, do prato vazio, do teto descoberto lançou na vitrina do que dizemos não ser e somos. O mostruário das vítimas do “e eu com isso?”.

Porque elas acumulam o bom e o ruim, as cidades são o mirante das contradições sociais. Mas também das ações dispersas dos que tentam contorná-las e atenuar o drama cotidiano das vítimas das iniquidades do cálculo de custo sem responsabilidade social.

Tenho visto muita coisa por aí. Os que saem à noite, em grupos, para servir um lanche quente, uma caneca de café com leite e um pão com manteiga ou uma refeição aos que têm fome. As instituições que recebem para o almoço ou para o jantar os que carecem do pão nosso de cada dia.

Ou bons restaurantes do centro da cidade que, passada a hora do almoço da clientela habitual, fecham as portas e abrem a porta lateral para receber moradores de rua e servir-lhes a comida. Os que na cracolândia, muitas vezes os próprios drogados, ainda têm o discernimento da solidariedade, do amparo e da proteção aos mais frágeis no meio daquela dolorosa agonia que os vitima e mata lentamente.

Os que, uma vez por semana, vão a certos pontos da cidade, com tesoura e navalha, cortar cabelo e fazer a barba dos pobres de rua para restituir-lhes a fisionomia perdida na desfiguração do desamparo. Para que possam ser olhados no rosto e reconhecidos como seres humanos. Ou possam se olhar no espelho e descobrir que ainda estão vivos.

Gente que ainda segura a mão dos desvalidos, que a sociedade soltou à beira do precipício do cada um por si e Deus por todos. Gente de prontidão pelo próximo e semelhante. Gente subversiva que questiona na prática a sociedade iníqua do lucro pelo lucro, que em nome dos outros tem vergonha da miséria descabida e desnecessária.

Moradores de rua que têm mais amigos nos cães do que naqueles que por omissão e ambição são os responsáveis pela cidade que dorme a céu aberto, em noites de estrelas, de frio ou de chuva. Os que não têm onde reclinar a cabeça. Cães tão amigos que a eles dedicam seus donos o pouco que conseguem para levá-los ao veterinário e mantê-los bem e vivos.

Muitos preferem ficar nas ruas porque nelas têm o amparo de uma sociabilidade comunitária, de trocas de favores e de informações sobre a cidade residual e oculta que os ampara. Coisas como onde ficam os cemitérios com os melhores banheiros ou túmulos vazios para passar uma noite, como o do Araçá.
José de Souza Martins