domingo, 12 de janeiro de 2020

Domingos plácidos dos desalmados

A partir do dia em que a humanidade começou a fabricar e a armazenar armamento nuclear, a questão não é a de saber se alguma dessas bombas irá explodir, mas quando. Tudo aquilo que existe, tudo aquilo que fabricamos, tem uma função, e em algum momento acabará cumprindo-a. “Ah, mas a função das bombas nucleares não é explodir, e sim dissuadir”, argumentam militares e militaristas. Sei. É como aqueles assaltantes que mostram a faca, mas não a pretendem utilizar:

 “Não mesmo, senhor doutor juiz, a faca era apenas para dissuadir.”

 “Então por que a enterrou na barriga da vítima?”

“É que não havia maneira dele se dissuadir.”

A faca serve (também) para pôr manteiga no pão. Antes de enterrar aquela faca concreta na barriga do assaltado, talvez o assaltante a tenha utilizado para cortar uma maçã, e dividi-la com o amigo. Uma bomba nuclear, pelo contrário, serve apenas para explodir e destruir. 


Penso muito nos inventores do mal. Por exemplo, o sujeito, ou sujeitos, que conceberam um tipo específico de mina antipessoal, que os militares chamam bailarina ou saltadora, programada para pular e explodir à altura dos genitais. O objetivo desse tipo de mina não é matar, mas ferir os soldados, incapacitando-os, e aterrorizando os restantes. Um soldado ferido dá muito mais trabalho do que um morto. Um soldado ferido, gritando e contorcendo-se, aterroriza muito mais. 

Como serão as manhãs de domingo dos inventores do mal, dos torturadores, dos fabricantes de armamento? Ajudarão a filha bebê a calçar os sapatinhos? Oferecerão flores à namorada? Irão à missa? Jogarão futebol com os amigos?

Talvez por um incômodo instante, distraídos, lhes exploda no cérebro uma imagem: o rosto espantado da menina que pisou uma mina e perdeu a perna. A mãe colocando flores na campa do único filho, morto na guerra. Ou não. É possível que nunca pensem nas vítimas, e placidamente atravessem as tardes, como aves sem culpa, rindo e conversando e apreciando o sol que lhes queima a pele.

Paul Tibbets, o piloto do Enola Gay, que lançou a bomba atômica sobre Hiroshima, viveu em paz consigo próprio até morrer, aos 92 anos, em novembro de 2007. Segundo confessou em diversas entrevistas, nunca pensava nas 250 mil vítimas da explosão. Não tinha tempo para isso.

Imagino Donald Trump, levantando-se da cama, na manhã em que mandou assassinar Qasem Soleimani e os membros da comitiva que o acompanhava. Pensou nas eventuais consequências do ato? Ou, estudando-se ao espelho, demoradamente, apenas se preocupou com as rugas e o falso bronzeado?

É agradável acreditar na universalidade do remorso. Contudo, da mesma forma que nem todas as pessoas têm bom ouvido para a música, também nem todas sofrem com o sofrimento que infligem a terceiros. As guerras acontecem porque colocamos no poder, ou ajudamos a colocar, pessoas assim. Não estou a falar dos desafinados — esses também têm coração. Estou a falar dos desalmados. 

Um dia, sim, repetiremos Hiroshima. Eventualmente, sem castigo e sem remorso. Para Hiroshima, como sabemos, não houve castigo nem remorso. Nem lição. Não aprendemos nada.

Nenhum comentário:

Postar um comentário