Vem, comigo!, diz Mefistófeles, o coisa-ruim germânico, ao doutor Fausto, depois que Margarida, a musa em perdição, é julgada e salva pelos céus. Assim termina a peça de Goethe que eterniza a lenda alemã; e, também, a ópera do francês Charles Gounod, meio século depois.
Sexta-feira, 26 de julho. As duas mil pessoas que lotam o Teatro Municipal ovacionam "piradamente" a cena final da ópera que comemora o aniversário da casa com sua orquestra, seu balé, seu coro e grande elenco.
O mais aplaudido, no entanto, não é o protagonista Fausto, velho sábio que comprou, do diabo, a fonte da juventude, e se danou. Nem a musa Margarida, vítima, heroína, que não traiu sua consciência. É ele, sim, Mefisto, o demo, que recebe do público os urros e hurras, os uivos e bravos.
O diabo, encarnado na pele do baixo-barítono chileno Homero Perez-Miranda, agradece na beira do palco, girando sua capa de fundo vermelho, que alterna com a fantasia de fauno chifrudo. O povo vai à loucura.
Sempre se pode dizer que a preferência pelo demo é decorrente do talento do cantor. Ou não. Afinal, o diabo, que sempre esteve em cena, vem dando, nos últimos tempos, um show. Estão dizendo, por aí, que ele é o cara.
Trabalhando nem tão duro assim, em todas as frentes, invadindo o campo sem pedir licença, bastando uns salamaleques para aumentar as apostas em sua ressurreição, o invertido vai ocupando espaços e reescrevendo a História.
Por sua folha corrida de serviços prestados às pautas mais perversas, o anjo caído vem sendo tratado como santo em ascensão. Nunca se deu tanto mole para ele. Mal-acostumado, o miúdo vai fazendo, em clima de festa, o "desmilagre" da multiplicação, pescando adeptos em todas as redes.
Surfando nas consciências e nas miopias, o diabo cresce na calada que consente; na espuma que desvia; nas cortinas de fumaça; na análise que naturaliza; na autocensura; na mania da falsa simetria; nas mãos lavadas de unhas sujas; e na sua velha aliada, a covardia.
Carlos Heitor Cony gostava de dizer que todo o mundo, mais dia, menos dia, faz um pacto com o diabo. Nem precisa chamar o bicho pelo nome: mal chega a idade da razão, numa noite de insônia, ou tarde de ressaca, o cão se insinua e toda a gente decide, em suores culpados, trocar um grande sonho por um atalho ordinário; um ideal por uma vitória oca; um princípio por um fim; um amor por um prazer; o saber pelo cinismo; a difícil paz por um caraminguá.
O problema é que, em geral, o pactuado, iludido pelo encanto pragmático do tinhoso, esquece que assinou, com gotinhas do sangue próprio, uma nota promissória anexa ao contrato. Nela, se lê, nitidamente, o preço a ser pago: uma alma.
O que assusta hoje em dia é que a venda da alma, que deveria ser uma crise, um evento decisivo, singular, único, na vida de um indivíduo, vai se tornando hábito à medida que se afrouxa a cartilha. O demo da vez passa a se justificar em nome de guerras santas herdadas de infernos passados.
Assim, vende-se e revende-se a alma em ritmo social, sob a alegação de que faz parte do jogo. Pouca gente está se dando conta, como bem ensinou Cony, de que, cedo ou tarde, Mefisto baterá suavemente à porta para recolher, com um sorriso largo, o vil mercúrio.
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