quinta-feira, 14 de setembro de 2023

Pensamento do Dia

Ruke Souza

 

Na maior anistia da história, políticos dão sinal verde para festa com o fundo eleitoral

O Brasil está prestes a testemunhar o maior perdão de sua história. Não, não é o perdão de Lula ao ministro do Supremo Dias Toffoli, que embarreirou a ida do ex-presidente ao velório do irmão. Esse, ao que tudo indica, não virá tão cedo, apesar dos serviços inestimáveis do ministro ao presidente.

A anistia generosa, ampla e irrestrita que vem por aí foi orquestrada na Câmara dos Deputados e, na prática, desmantela o sistema de fiscalização dos gastos eleitorais com o dinheiro público — R$ 6 bilhões só em 2022 e mais de R$ 23 bilhões entre 2018 e 2023.

O pacote, que está sendo votado em regime de urgência, a tempo de valer já para a eleição municipal de 2024, estabelece que nenhum partido ou fundação deverá ser punido por irregularidades ou falta de prestação de contas, a menos que fique comprovado que o dinheiro público foi usado em benefício de um dirigente.

Também são perdoados todos os que não cumpriram a cota de candidaturas de negros e mulheres nas eleições de 2022.


Além disso, a prestação de contas parcial, em que os candidatos detalham gastos antes da eleição, deixará de existir. Com isso, perderemos a única chance de acompanhar como os candidatos gastam o recurso público durante a campanha.

Pela proposta, também não fica mais inelegível quem contribuir para situações que violem “os deveres de honestidade, de imparcialidade e de legalidade” contra a administração pública, como prevê a Lei da Ficha Limpa.

A lista é comprida, mas por aí já dá para ter uma ideia de como capricharam os relatores Antonio Carlos Rodrigues (PL-SP) e Danielle Cunha (União-RJ). Os dois têm suas próprias questões com regras eleitorais. Rodrigues ficou preso por um mês em 2017 por ordem da Justiça Eleitoral, depois que um delator da J&F disse ter dado dinheiro a sua campanha no caixa dois.

Dani Cunha é filha de Eduardo Cunha. Por ter sido cassado em 2016 (e em tese estar inelegível), a candidatura dele a deputado federal foi contestada no Tribunal Regional Eleitoral de SP em 2022. Ao final, ele conseguiu ser candidato, mas não se elegeu.

Rodrigues e Dani, porém, são apenas a face pública do esforço concentrado. O grupo de trabalho que elaborou os textos é coalhado de dirigentes partidários e líderes de bancada, um indicador da prioridade que a Câmara dá ao tema.

O próprio presidente, Arthur Lira (PP-AL), acompanha tudo de perto. Logo ele, que no final de julho, diante da bancada do “Roda Viva”, negou que fosse haver um “liberou geral”:

“Primeiro, nós não vamos ter nenhuma facilidade para esses gastos absurdos que determinados partidos tiveram com suas contas. (...) Não vamos mexer na questão de cota de gênero. Não vai ter desatino”, disse. “Vamos esperar o texto que a Comissão Especial vai aprovar e aí discutimos se isso vai trincar o meu legado”.

Hoje, tudo o que Lira disse que não estaria no projeto está lá. Mesmo assim, não há sinal de que ele considere que isso prejudicará seu legado.

Um dos temas que mais o empolgam é protestar contra a “criminalização da política”, que ele define como herança da Lava-Jato. Para Lira, foi a operação — e não a profusão de crimes cometidos por políticos — que abalou a representatividade das instituições.

“Transformaram denúncias que precisavam ser apuradas sob o manto da lei em verdadeiras execuções públicas”, disse no discurso de posse.

A plataforma de Lira para lidar com o problema é claríssima e vem sendo executada com apoio de todo o espectro partidário. Para acabar com a criminalização da política, basta esculhambar as leis que definem os crimes. Se acabarem com os crimes, quem será criminalizado?

Assim foi com o relaxamento da lei de improbidade administrativa, em 2022, passando pelo projeto de Dani Cunha para “proteger” políticos e até laranjas de “discriminação” e, agora, pela maior anistia eleitoral já proposta na História do Brasil.

Nas eleições de 1989, quando Paulo César Farias operou um dos maiores esquemas de caixa dois de que se tinha notícia até então, para Fernando Collor de Mello, não havia regras de financiamento eleitoral, arrecadação de recursos ou controle das despesas.

Depois do escândalo, o Congresso propôs uma lei que visava a moralizar a situação, mas era cheia de brechas. As empresas ainda podiam gastar até 2% do faturamento com doações, e nenhum candidato precisava entregar declaração de bens à Justiça Eleitoral. Foram, então, perguntar a opinião de PC.

“A hipocrisia continua”, disse ele. “Vai ser uma festa”.

PC já morreu faz tempo. Mas aposto que, se estivesse assistindo aos movimentos do Congresso, repetiria o diagnóstico.

Todos os homens de Bolsonaro

Para quem passou quatro anos circulando alegremente dos quartéis aos porões e vice-versa, os militares do governo Bolsonaro converteram-se ao mais pávido silêncio. Estão todos submersos, respirando por canudinho, de modo a que nem a menor marola chame a atenção para seus nomes na delação premiada do tenente-coronel Mauro Cid. Mas em vão. Em algum momento, terão de voltar à tona e responder por suas intimidades com o capitão.


Será fascinante ouvir os generais que se dedicaram a tentar desmoralizar o processo eleitoral acusando um suposto "código malicioso" nas urnas eletrônicas —naturalmente, só as que contivessem votos contra Bolsonaro. Eles são o ex-chefe do Gabinete de Segurança Institucional Augusto Heleno, canino inimigo do TSE e que, em seus últimos minutos no cargo, desmontou o GSI, tornando possível o 8/1; o ex-secretário-geral da Presidência Luiz Fernando Ramos, com suas solertes ameaças do tipo "Não estiquem a corda..."; e o ex-ministro da Defesa Paulo Sérgio Nogueira, gentil anfitrião em seu gabinete de Walter Delgatti, o hacker de Araraquara.

No caso das joias, temos o almirante Bento Albuquerque, ex-ministro das Minas e Energia, para quem o ingresso das pedras preciosas de Bolsonaro no país estava sob sua jurisdição — afinal, cuidava dos minérios, não?; o contra-almirante José Roberto Bueno Jr., que, para justificar a patente, foi contra a apreensão das joias pela Receita em Guarulhos; e o coronel da reserva Marcelo Costa Câmara, zeloso guardião do acervo de Bolsonaro.

Haverá também muito a ouvir do general Braga Netto, ex-chefe da Casa Civil e, pelo visto, especialista em coletes à prova de balas superfaturados, e do inesquecível general Eduardo Pazuello, nem que seja por deixar que sua pança fosse jocosamente afagada por Bolsonaro.

Tão valentes no poder, estão hoje trêmulos e mudos. Mas terão de criar coragem e se explicar.

Sermão do Bom Ladrão

Não são só ladrões, diz o Santo, os que cortam bolsas, ou espreitam os que vão se banhar para lhes colher a roupa; os ladrões que mais própria e dignamente merecem este título são aqueles a quem os reis encomendam os exércitos, ou o governo das províncias, ou a administração das cidades, os quais, já com manha, já com força, roubam e despojam os povos. Os outros ladrões roubam um homem, estes roubam cidades e reinos; os outros furtam debaixo do seu risco, estes sem temor nem perigo; os outros, se furtam, são enforcados; estes furtam e enforcam.

Pe. Antonio Vieira

As lições do onze de setembro chileno

Cinquenta anos depois do golpe de Pinochet, o Chile volta a ser um país dividido verticalmente. Como se a roda da história tivesse girado para trás, a extrema-direita faz uma releitura do trágico onze de setembro de 1973, enaltecendo a figura de Augusto Pinochet. Segundo sua versão, o ditador salvou o Chile de “uma ditadura marxista”. Na outra ponta a esquerda se nega a atender ao apelo do presidente Gabriel Boric de uma revisão crítica do governo da Unidade Popular liderado por Salvador Allende.

Não há consenso quanto a um “nunca mais”. As homenagens às vítimas de uma ditadura que assassinou quatro mil pessoas e provocou o exílio de 200 mil chilenos se deram em um Chile no qual a democracia, como valor, está em baixa. Hoje, 43% de sua população aceitaria um golpe, “dependendo da situação do país” e quase 40% culpam Allende pela ação dos militares de 1973. O negacionismo da extrema-direita tem base de massas.

Nem mesmo foi possível uma declaração de todos os partidos, afirmando o compromisso nacional com a democracia, como aconteceu quando dos quarenta anos do golpe. Dessa vez houve uma declaração do governo Boric e outra dos partidos de direita da Aliança Chile Vamos. A extrema-direita de José Antonio Kast não assinou nenhuma das duas, por ter uma posição mais radical na defesa do “legado” de Pinochet.

Entretanto, é inescapável extrair as lições da derrota da Unidade Popular por meio do gol pe acontecido no país de maior estabilidade democrática na América do Sul. Carlos Ominami, ex militante do Movimento Revolucionário, ex-ministro da Economia de Patrício Alwin e senador na transição democrática, enfrentou esse desafio sem cair no maniqueísmo:

“É certo que aqui ninguém está livre de culpas. O ponto é que as responsabilidades s&ati lde;o profundamente distintas. Há vítimas e culpadose por certo cúmplice passivos. Há uma diferença entre os graves erros do governo da Unidade Popular e os graves horrores que tiveram lugar na ditadura. Porém o anterior não exime de um juízo severo da esquerda. A maior responsabilidade foi intentar um processo de transformações profundas sem contar com uma maioria que a respaldasse”


Allende foi eleito com 36% dos votos e teve sua vitória confirmada pelo Congresso Nacional, como determinava a Constituição. Era um governo minoritário, sem o apoio majoritário dos chilenos ao seu programa de estatização dos me ios de produção, particularmente em áreas estratégicas como mineração e o sistema bancário.

Havia uma contradição entre a intenção de Allende de implantar o socialismo observando o Estado de Direito Democrático e seu programa de socialização da economia. Até hoje, um programa tão radical só foi implantado por meio de revoluções e não pela via do voto. Quando a Unidade Popular conseguiu quase 50% dos votos na eleição municipal de 1971 seu governo entendeu como um aval ao seu programa. Um ano depois esse apoio já tinha caído para 40% da populaç&ati lde;o. Quase a mesma percentagem de quando se elegeu.

A correlação de forças recomendava que a Unidade Popular deveria buscar uma aliança mais ampla. Segundo o ex-senador Ominami, “a esquerda deveria pactuar com o centro. Allende deveria pactuar com Tomic (Rodomiro Tomic, candidato da Democracia Cristã derrotado na eleição de Allende). Existia a possibilidade de acordar um programa de transformações profundas. No entanto, prevaleceu o sectarismo e uma grande falt a de lucidez, incluindo os comunistas. “Com Tomic nem a missa” dizia Luiz Corvalán, então secretário geral do PC chileno.

Refletindo sobre a experiência chilena, Enrico Berlinguer, secretário-geral do Partido Comunista da Itália, formulou sua estratégia de “compromisso histórico”. Nela alertava para a importância de não se dividir o país de forma vertical, de se evitar a formação de um bloco do centro com a extrema-direita e de que não basta va ter 50% para implementar um programa de profundas reformas. Era necessário formar um governo de uma ampla maioria”.

Espremido pelas contradições internas da Unidade Popular e sendo minoritário até mesmo no Partido Socialista que o pressionava para adotar uma estratégia mais radical, Allende cometeu os erros analisados por Berlinguer posteriormente. A “via chilena para o socialismo” se aproximava, do ponto de vista econômico mais do modelo cubano, embora tentasse implantá-lo pela via democrática. Nesse sentido, se diferenciava do modelo cubano da revolução pelas armas.

Capítulo à parte dessa tragédia é a visita de Fidel Castro ao Chile, em novembro de 1971, abso lutamente fora dos padrões diplomáticos.Fidel estendeu sua visita por 24 dias, percorrendo o país de norte ao sul, discursando em comícios, universidades, sindicatos e reunindo-se com organizações e partidos políticos de esquerda. Como notou o historiador chileno J. Fermandois, “com suas palavras e atitudes [Castro] punha expressamente em julgamento o sistema político chileno, atacava suas instituições e representantes e contribuía para acirrar os ânimos (…) Castro passou a se comportar como um ator político da vida nacional”.

Suas palavras eram a própria negação da via democrática de Allende: Ninguém pense que viemos aprender algumas das coisas que nos aconselhavam alguns “libelucho” ou alguns sisudos defensores das teorias políticas reacionárias, que achavam bom que viéssemos para aprender sobre eleições, sobre parlamento, sobre liberdade de imprensa, etc…(…) Não viemos aqui para aprender coisas caducas da história”.

Tencionava, assim, o governo Allende e passava a mensagem de que a “revolução chilena” era parte da revolução latino-americana, da qual a Revolução Cubana era um ícone. A partir de sua visita, a direita passou a disputar as ruas com a marcha das panelas vazias, e as ruas de Santiago se transformaram em palco de batalha campal entre a esquerda e a direita.

Estava pavimentado o caminho para o golpe de Pinochet, com uma base social de massas para uma ditadura sanguínea e longeva. A reconciliação dos chilenos parecia ter sido alcançada pelo período virtuoso dos governos da Concertacion Democrática, mas novos ventos desestabilizadores percorrem os Andes desde o estalido social de 2019. Mais do que nunca se impõe, como propõe Boric, extrair as lições da história para que o pinochetismo não volte ao poder, dessa vez pela via democrática.