sábado, 18 de maio de 2019

Brasil, a Geni dos brasileiros

Não há novidade alguma na obsessão brasileira pelo fracasso. Você não precisa ler nenhum sociólogo de passeata para constatar o fenômeno. Cada passo à frente corresponde a uns dez para trás – e andar de lado é progresso arrojado. Por uma razão miseravelmente simples: tacar pedra, aqui, é salvo-conduto.

Por que trabalhar dobrado para construir, num lugar onde destruir é muito mais charmoso, além de bem mais fácil? Você está cansado de saber que numa nação infantilizada fazer cara de nojo para governo é sucesso garantido. Arregaçar as mangas pelo bem comum e correr o risco de tomar uma chapa branca na testa? Deixa de ser otário.

Esse componente tão dramático quanto corriqueiro do caráter nacional já deu as caras, sem a menor inibição, inúmeras vezes. Uma das mais impressionantes se deu logo após a eleição de Lula, em 2002.

Desafiado publicamente por Pedro Malan a esclarecer se sua plataforma era a demagogia dos calotes e bravatas contra a elite malvada ou o cumprimento de contratos e a responsabilidade fiscal, Lula se comprometeu com a segunda opção. E cumpriu. Iniciou seu governo com uma equipe econômica de alto nível, chefiada por Antonio Palocci – cuja gestão foi reconhecida por dez entre dez expoentes do setor – e Henrique Meirelles no Banco Central.

Estavam dadas as condições para um novo ciclo virtuoso, depois das crises de energia (doméstica) e da Rússia (internacional) que travaram na virada do século a linha ascendente do Plano Real. Lula era um líder popular mostrando senso de pragmatismo para unir a estruturação econômica e o resgate social – enfim, para unir o país.

E o que fez o país? Fez o que faz sempre: sabotou.

A fritura de Palocci não demorou a começar e vinha de todos os lados (isso te lembra alguma coisa?). Corneteiros e cassandras brotavam no meio empresarial, na imprensa, nas artes, na política – inclusive no PT, o partido governante. Aliás, os tucanos fizeram a mesma coisa com Fernando Henrique e Malan – porque, como já foi dito, aqui fazer cara de nojo para governo é investimento. Mesmo se você estiver no governo.

O Plano Real triunfou apesar dos tucanos – que até o apoiaram majoritariamente na decolagem (covardia não é burrice), mas atrapalharam tanto no nascedouro quanto na sustentação. Malan passou oito anos sendo demitido na imprensa – e adivinha a origem dessas sementinhas? Uma equipe de abnegados executou o maior plano econômico da história enquanto o presidente era chamado todo dia de elitista, neoliberal (o fascista da época) e reacionário por ter se aliado a Antonio Carlos Magalhães, o Toninho Malvadeza. Identificou o padrão?

Voltando a Lula, aquela configuração que prometia unir o país (ahaha) logo virou tiro ao alvo: MST querendo mais grana, PT querendo mais cargo, PSOL nascendo para sua vida gloriosa de virgem do puteiro, tucano querendo o poder de volta, empresário “moderno” querendo dinheiro de graça e fritando o ministro da Fazenda que buscava a modernização. O vice-presidente, que era empresário, atacava dia sim, outro também, a política macroeconômica do seu próprio governo. Crise, teu nome é Brasil.

Segundo vários representantes da intelectualidade nacional, o presidente dos pobres estava vendendo a alma ao diabo. Veríssimo se declarava decepcionado com a adesão de Lula ao superávit primário… (Parece piada, e é, mas aconteceu). O país só se acalmou quando conseguiu interromper essa gestão virtuosa e abrir caminho para o maior assalto da história.

Aí sobreveio uma década de paz. Em meio à roubalheira e à depravação institucional não se viu nem passeata cenográfica pela educação.

Pega daí, caro leitor: boa equipe, chance de reconstrução, cara de nojo, decepção… Só continua chamando isso aqui de nação quem confunde rima com solução.

Nota antropológica: FHC e vários outros que combateram a praga nacional dos falsos virtuosos hoje estão na orquestra da crise. Que lugar está reservado para esses personagens na história do Brasil? Pergunta no Posto Ipiranga.

Brasil à Porta da Esperança


Bolsonaro virou presidente de desenho animado

Com a impopularidade em alta, a economia em baixa, o Congresso em pé de guerra, as ruas em ebulição e o Ministério Público em vias de apalpar os dados bancários e fiscais de Flávio, seu filho Zero Um, Jair Bolsonaro parece ter perdido o chão. Despacha no Planalto como uma caricatura, não como um presidente. Vive uma rotina de desenho animado.

Eleito para governar, Bolsonaro espalhou em grupos de WhatsApp um texto apócrifo que apresenta o Brasil como um país "ingovernável" fora dos "conchavos" não republicanos. O texto avalizado pelo presidente sustenta basicamente que não é possível governar sem ceder aos interesses de corporações políticas, sindicais, togadas e empresariais.

Nos desenhos, quando acaba o chão, os personagens continuam caminhando no vazio. Só despencam quando olham para baixo e se dão conta de que estão pisando em nada. Bolsonaro, nariz sempre empinado, evita olhar para baixo. Após distribuir o texto sobre a ingovernabilidade, soltou uma nota. Nela, diz que seu modo de governar desagrada aos "grupos que no passado se beneficiavam de relações pouco republicanas." Disse que espera "contar com a sociedade".

Em sintonia com o óbvio, o ministro Paulo Guedes disse nesta semana no Congresso que a economia está no abismo. Mas Bolsonaro continua caminhando sobre o nada com a língua engatilhada. Parece convencido de que conseguirá atravessar o abismo terceirizando todas as culpas e, sobretudo, evitando olhar para baixo.

A ameaça de Bolsonaro

Ao “contar com a sociedade” para enfrentar o “sistema”, Jair Bolsonaro repete o roteiro de outros governantes que, despreparados para a vida democrática, flertaram com golpes em nome da “salvação” nacional.

O presidente Jair Bolsonaro considera impossível governar o Brasil respeitando as instituições democráticas, especialmente o Congresso. Em sua visão, essas instituições estão tomadas por corporações – que ele não tem brio para nomear – que inviabilizam a administração pública, situação que abre caminho para uma “ruptura institucional irreversível” – conforme afirma em texto que fez circular por WhatsApp ontem, corroborando-o integralmente, como se ele próprio o tivesse escrito.

Ao compartilhar o texto, qualificando-o de “leitura obrigatória” para “quem se preocupa em se antecipar aos fatos”, Bolsonaro expressou de maneira clara que, sendo incapaz de garantir a governabilidade pela via democrática – por meio de articulação política com o Congresso legitimamente eleito –, considera natural e até inevitável a ocorrência de uma “ruptura”.


Não é de hoje que o presidente se mostra inclinado a soluções autoritárias. Depois da posse, Bolsonaro mais de uma vez manifestou desconforto com a necessidade de lançar-se a negociações políticas para fazer avançar a agenda governista no Congresso. Confundindo deliberadamente o diálogo com deputados e senadores com corrupção, o presidente na verdade preparava terreno para desqualificar os políticos e a própria política – atitude nada surpreendente para quem passou quase três décadas como parlamentar medíocre a ofender adversários e a louvar a ditadura militar. Não por acaso, o próprio Congresso parece ter desistido de esperar que Bolsonaro se esforce para dialogar e resolveu tocar por conta própria a agenda de reformas.

Desde sua posse como presidente, Bolsonaro vem demonstrando um chocante despreparo para o exercício do cargo, mas o problema podia ser contornado com a escolha de ministros competentes. Com exceção de um punhado de assessores que realmente parecem saber o que fazem, porém, o governo está apinhado de sabujos cuja única função ali parece ser a de confirmar os devaneios do presidente, dos filhos deste e de um ex-astrólogo que serve a todos eles de guru, dando a fantasias conspiratórias ares de realidade.

O texto que Bolsonaro divulgou – recomendando que fosse passado adiante – diz que “bastaram cinco meses de um governo atípico, ‘sem jeito’ com o Congresso e de comunicação amadora para nos mostrar que o Brasil nunca foi, e talvez nunca será, governado de acordo com o interesse dos eleitores”. Segundo o texto, o presidente “não aprovou nada, só tentou e fracassou” porque “a agenda de Bolsonaro não é do interesse de praticamente nenhuma corporação”. Nas atuais circunstâncias, “a continuar tudo como está, as corporações vão comandar o governo Bolsonaro na marra” – e, “na hipótese mais provável”, diz o texto, “o governo será desidratado até morrer de inanição, com vitória para as corporações”. Mas diz também que é “claramente possível” que o País fique “ingovernável”, igualando-se à Venezuela. Aí entraria a tal “ruptura institucional” de que fala o texto chancelado por Bolsonaro – que o usou para ilustrar o risco que diz correr de ser assassinado pelo “sistema”.

Isso é claramente uma ameaça à Nação. Conforme se considere o estado psicológico de Bolsonaro e de seus filhos, a ameaça pode ser o tsunami de uma renúncia ou o tsunami de um golpe de Estado em preparação. Pois o presidente não apenas distribuiu o texto, como mandou seu porta-voz dizer que, embora esteja “colocando todo o meu esforço para governar o Brasil”, a “mudança na forma de governar não agrada àqueles grupos que no passado se beneficiavam das relações pouco republicanas”. Em seguida, fez um apelo às ruas: “Quero contar com a sociedade para juntos revertermos essa situação” – e já no próximo dia 26 está prevista a realização de uma manifestação bolsonarista, contra ministros do Supremo Tribunal Federal e a favor do pacote anticrime do ministro da Justiça, Sergio Moro.

Ao “contar com a sociedade” para enfrentar o “sistema”, Bolsonaro repete o roteiro de outros governantes que, despreparados para a vida democrática – em que a vontade do presidente é limitada por freios e contrapesos institucionais –, flertaram com golpes em nome da “salvação” nacional. Se tudo isso não passar de mais um devaneio, já será bastante ruim para um país que mergulha cada vez mais na crise, que tem seu fulcro não nas misteriosas “corporações” – as suas “forças ocultas” –, mas na incapacidade do presidente de governar.

Com Bolsonaro, Brasil perde ainda mais influência mundial

Deveria ser uma cerimônia de premiação do presidente brasileiro nos EUA como Personalidade do Ano – e acabou sendo uma suja batalha política. A Câmara de Comércio Brasil-Estados Unidos queria homenagear nesta semana o presidente Jair Bolsonaro no Museu Americano de História Natural, em Nova York, junto com o secretário de Estado americano, Mike Pompeo. O evento de gala anual, generosamente patrocinado por empresas brasileiras e americanas, é uma festa de rotina em que investidores e empresários comparecem buscando o acesso exclusivo aos premiados.

Mas desta vez tudo deu errado. Primeiro os patrocinadores do museu pressionaram e exigiram o cancelamento do jantar – devido ao conteúdo populista de direita e misantropo das opiniões de Bolsonaro. Quando a cerimônia de premiação foi transferida para um hotel, os primeiros patrocinadores retiraram o apoio. Aí o prefeito de Nova York, Bill de Blasio, entrou na discussão: o presidente brasileiro não era bem-vindo "por causa de seus pontos de vista homofóbicos e racistas".


Por causa da resistência, os diplomatas de Bolsonaro transferiram o evento para Dallas, no Texas, onde a visita de 24 horas do presidente brasileiro quase não chamou a atenção. De Blasio ironizou, afirmando que Bolsonaro é covarde demais para aparecer em Nova York.

A atitude do prefeito de Nova York pode ser explicada principalmente pelo ângulo da política interna. Como membro do Partido Democrata, ele quer polir sua reputação como um verdadeiro ativista dos direitos humanos. O fato de não hesitar em insultar o presidente democraticamente eleito do Brasil mostra, acima de tudo, como o Brasil perdeu força no exterior. Pois não se sabe de protestos de De Blasio contra a presença em Nova York de ditadores economicamente influentes do Extremo Oriente e do Oriente Médio.

Mas também nenhum defensor conservador de Bolsonaro nos EUA veio a público para se solidarizar com ele. Como um cão escorraçado, o presidente brasileiro teve que pegar seu prêmio na província americana. Nenhum representante político e de negócios de alto nível dos EUA conseguiu ser persuadido a comparecer à reunião no Texas.

O Brasil está perdendo rapidamente importância na política mundial. Embora isso não tenha começado com a posse de Bolsonaro, sua presidência está acelerando esse processo. A influência internacional do Brasil começou a diminuir há cerca de cinco anos, juntamente com o declínio da economia brasileira. Até então, o Brasil se valia de sua soft power para conseguir alcançar suas metas em política externa – em contraste com o hard power da Rússia, dos EUA ou da China.

Joseph Nye, um especialista americano em relações internacionais, cunhou os termos: segundo ele, um país trabalha com hard power quando impõe sua liderança global sobretudo através de sua força econômica, financeira e militar. Os diplomatas do Brasil tradicionalmente trabalham com soft power – nos anos 2000, reforçado por sua forte presença como a oitava maior potência econômica e provedora de alimentos para o mundo, como um importante fornecedor de matérias-primas industriais e energia.

O Brasil convencia seus parceiros de negócio com a credibilidade de seus diplomatas, com sua imagem positiva de uma cultura tropical multiétnica capaz de superar contrastes – entre negros e brancos, pobres e ricos, desenvolvidos e subdesenvolvidos. No debate climático e no comércio mundial, o Brasil alcançou surpreendentes êxitos diplomáticos porque seus diplomatas conseguiram forjar alianças – através dos continentes e entre países industrializados, emergentes e em desenvolvimento.

Mas o soft power do Brasil vem desacelerando há algum tempo: por um lado, porque o país se tornou, no auge de seu sucesso econômico, há dez anos, cada vez mais um concorrente dos países industrializados nos setores agrícola, de energia e de matérias-primas – potência econômica não combina bem com soft power tropical. Com o declínio econômico, o poder de persuasão do Brasil perdeu ainda mais força: um soft power sem dinâmica econômica também não é convincente.

Agora, a perda de imagem do Brasil se acelerou: o presidente Bolsonaro continua, na sua política interna e externa, a polarização que prometeu na campanha eleitoral – e por causa da qual muitos brasileiros votaram nele. Com a sua clara opção por um esquema amigo-inimigo na política externa, nenhuma aliança global surpreendente pode mais ser forjada. Os brasileiros terão que se conformar com o fato de que não mais serão, como no passado, recebidos em todos os lugares de braços abertos.
Deutsche Welle

Nota de esclarecimento


'Mas os piratas existem!'

Lembram-se de 2010? Há quase dez anos a economia brasileira crescia 7,6%, embalada pelo excepcional quadro global e pelas políticas de expansão do governo, sobretudo do crédito dos bancos públicos. Esse artigo não é sobre nada disso.

Em 2010, meu filho, que acaba de completar 15 anos, idade dos alunos avaliados pelo Pisa, exame que mede a qualidade da educação em mais de 70 países elaborado pela OCDE, estudava em uma escola particular no Rio de Janeiro. Era a hora da história, aquele momento em que as crianças sentam-se ao redor da professora para ouvi-la contar sobre aventuras e fantasias. Ela havia escolhido uma história sobre piratas, aqueles de perna de pau, olho de vidro, cara de mau. Corte dessa cena.

Tomada seguinte: em 2010, os piratas da costa da Somália corriam os mares a pleno vapor, capturando mercadorias e embarcações. Vocês devem se lembrar do filme que contou parte dessa história bem real — "Capitão Phillips", lançado em 2013, protagonizado por Tom Hanks. Pois em 2010, os piratas da Somália estavam por toda parte. Nas manchetes dos jornais, na televisão, nas conversas entre familiares e amigos. O adolescente de agora que então tinha 5 aninhos sempre foi garoto atento. Os piratas bem reais da Somália atiçaram sua imaginação de menino.



Retomo a cena na escola. Quando acabou a história, alguém perguntou para a professora se os piratas existiam. A professora disse que não, piratas são da imaginação, da fantasia. Imagino que ela se referia aos de perna de pau, olho de vidro, por aí vai. A resposta não agradou um de seus alunos, que rapidamente disse: “Mas os piratas existem!”. Quando a professora insistiu que não, eram apenas personagens em uma história, ele retrucou: “E os da Somália?”. Silêncio. Ele ficou tão contrariado com esse silêncio que a primeira coisa que me contou quando chegou em casa foi o que havia passado na escola. Eu já sabia que a educação no Brasil, mesmo nas supostas melhores escolas particulares, deixava a desejar. Essa história, entretanto, virou espécie de mito familiar sobre as imensas lacunas da educação brasileira, lacunas que atingem a todos, dos mais pobres à elite.

Aos fatos. No último exame Pisa para o qual temos os dados completos, o de 2015 — o exame é aplicado a cada três anos e ainda não temos as informações de 2018 —, o desastre da educação no Brasil ficou mais uma vez explícito. O Pisa define sete níveis de proficiência em três áreas: ciências, matemática, e leitura. Os níveis mais baixos são o 1a e o 1b, que retratam a incapacidade de alcançar o nível mínimo de proficiência, considerado como o alcance do nível 2. O Pisa também traz informações sobre o nível socioeconômico dos alunos avaliados em cada país, definido por meio de um índice com metodologia clara. Desse modo, é possível avaliar o desempenho nas três áreas das diferentes classes sociais. Agora, preparem-se.

Comecemos pela matemática. Segundo os dados do Pisa, em 2015 86% dos alunos de nível socioeconômico mais baixo não alcançaram o nível 2; 83% dos alunos de classe média baixa e média não alcançaram o nível 2; 72% dos alunos de níveis socioeconômicos mais altos não alcançaram o nível 2.

Nas ciências, 72% dos alunos de nível socioeconômico mais baixo não alcançaram o nível 2. Isso se compara a 60% para a classe média baixa e para a classe média, e a 35% para os níveis socioeconômicos mais altos. A desigualdade em ciências é clara, mas o resultado é desastroso para um país que será atingido em breve pelas mudanças no mercado de trabalho provenientes dos avanços tecnológicos que exigirão alto grau de proficiência em matemática e ciências.

Por fim, o trágico acidente de leitura. São 65% de analfabetos funcionais nos níveis socioeconômicos mais baixos, 53% nas classes médias e 32% entre os filhos das elites do país. Repito: um terço dos filhos da elite brasileira são, pelo Pisa, analfabetos funcionais.

Está aí a pirataria cometida por governos sucessivos, acentuada pela atual guerra ideológica do bolsonarismo, que tem a educação como alvo, e um ministro da pasta sem preparo ou estratégia. Deixo-os com o verbete.

Pirataria: crime de depredação cometido no mar de lama contra embarcações e passageiros responsáveis pelo futuro da nação.
Monica de Bolle

Impeachment de Bolsonaro entra no radar

Se o presidente Jair Bolsonaro continuar a ouvir apenas a horda de malucos que o cerca, não conclui o seu mandato. Já cometeu, e deixei isto claro há algum tempo nesta coluna, uma penca de crimes de responsabilidade. Aliás, ele falou nesta quinta (16) a palavra "impeachment" pela primeira vez.

Falta que o ambiente político degenere o suficiente para que perca o apoio de ao menos um terço da Câmara. Os dois terços do Senado viriam por gravidade. Observem que falo em conclusão do "mandato", não do "governo". Este ainda não começou. Nem vai.

Aquele que ocupa a cadeira de presidente da República nunca soube por que queria o mandato. Ou por outra: não tinha uma prefiguração afirmativa de razões para comandar o país. O cargo lhe serve apenas para se vingar de seus inimigos ideológicos ou do fiscal do Ibama que um dia o multou.

É raso e mesquinho, no sentido original dessa palavra. A mistura de ignorância com poder é sempre perigosa porque torna as pessoas arrogantes e destrutivas. Uma imagem: o sujeito chega diante de um quadro de Picasso e diz: "Isso eu também faço".

A estupidez não reconhece competências, história, técnica, saber acumulado. Lembrando tirada do jornalista H. L. Mencken, tornada já quase um clichê, figuras com essas características têm sempre na ponta da língua uma resposta simples e errada para problemas difíceis.

Converso com muita gente que está surpresa com a ruindade do governo. Quem acompanha o que escrevo nesta Folha e em meu blog ou o que falo em meu programa de rádio sabe que estou assistindo a um filme previsível —e daqueles ruins, com roteiro desconjuntado, tiradas momescas e bufões da pior espécie.

Se muitos recorreram a seu pretenso liberalismo para votar em Bolsonaro em nome do mal menor, afastei de mim esse cálice. O conjunto das minhas convicções liberais sempre me blindou de tipos como esse. Há muitos anos, escrevi em minha página, no auge dos embates com o petismo, que "nem tudo o que não é PT me serve".

Ora, não há como ser "mal menor" uma personagem que não entende os fundamentos da democracia e que demonstra, desde sempre, a clara intenção de recorrer às licenças civilizatórias que o regime oferece para solapar as suas bases. Não! Ele nunca me serviu! Nem em nome do antipetismo.

Ademais, convenham, e disto também já tratei aqui antes ainda de ele ser eleito: quem o escolheu queria consagrar aquelas boçalidades que dizia. Havia outros meios de ser antipetista: Henrique Meirelles, Geraldo Alckmin, até João Amoêdo, que exercita, assim, um bolsonarismo mais light —sem o trabuco na mão ao menos.

Bolsonaro serviu como uma espécie de prova dos noves para testar convicções realmente liberais. Havia muitos que disfarçavam a condição de reacionários delirantes vestindo esse uniforme. Nesse particular sentido, ele serviu para tirar muita gente do armário.

Meu senso moral impediu-me de escolher, ainda que como instrumento de uma luta contra um suposto mal maior, aquele que fez, por exemplo, a apologia do estupro e da tortura sob o pretexto de exercer as garantias previstas no artigo 53 da Constituição. Eis o exemplo escancarado do uso de uma prerrogativa da democracia para agredir seus fundamentos.

Sim, chegou a hora de fazer esse debate no Brasil. E vem com atraso. Há muito estamos confundindo um modo de escolher governos —por meio de eleições— com a democracia, que, com efeito, vive uma crise mundo afora. Esta é mais do que o sufrágio, por mais livre que seja.

Esse regime também compreende um conjunto de valores. Se uma maioria se estabelece para sufocar liberdades e para discriminar e silenciar minorias, receba um outro nome qualquer. Democracia nunca! Ou teríamos de conferir o diploma de heróis da liberdade a Erdogan, a Putin e aos aiatolás do Irã.

Volto lá ao começo. Não estou me oferecendo para ser o conselheiro de Bolsonaro em lugar de Olavo de Carvalho. Estou a fazer um registro. Por estupidez política, a reforma da Previdência, que até há um mês poderia servir de correia de transmissão para um segundo mandato, agora vai atuar, ainda que necessária, para corroer o que resta de popularidade ao governo.

O Planalto, por intermédio dos seus incendiários, acordou as muitas e justas insatisfações de brasileiros das mais diversas extrações. O próprio Bolsonaro, seus filhos, Carvalho, este espantoso Abraham Weintraub... Essa gente toda é, para esse governo, o que o esquerdista Movimento Passe Livre foi para o governo Dilma. Tentando animar seus fanáticos, deu unidade ao coro dos contrários.

Lembro-me de um post que escrevi no dia 10 de março de 2015. A então presidente Dilma falava "impeachment" pela primeira vez.

A longa temporada ainda no inferno

A estrada é longa para latino-americanos, africanos e boa parte dos países asiáticos, que ainda elegem ou legitimam, ou por bem ou sob pressão, títeres de interesses escusos, bandidos disfarçados de políticos, ladrões de cofres públicos, traficantes dos sonhos e do futuro de seus povos
Fred Navarro

Bolsonaro pede socorro

A que serve o texto de Paulo Portinho, 46 anos, professor de finanças e filiado no Rio de Janeiro ao partido NOVO, compartilhado ontem nas redes sociais pelo presidente Jair Bolsonaro?

Serve para justificar o fracasso do governo Bolsonaro até aqui. E para culpar pelo fracasso as corporações, o Congresso, os partidos políticos e até Supremo Tribunal Federal.

Foi por isso que Bolsonaro o distribuiu aos cuidados de quem pudesse interessar, delegando mais tarde ao seu porta-voz oficial a tarefa de ler uma explicação que ele ofereceu para ter feito o que fez:

“Venho colocando todo o meu esforço para governar o Brasil. Os desafios são inúmeros e a mudança na forma de governar não agrada àqueles grupos que no passado se beneficiavam das relações pouco republicanas. Quero contar com a sociedade para juntos revertermos essa situação e colocarmos o país de volta ao trilho do futuro promissor. Que Deus nos ajude”.


Em resumo, Bolsonaro endossa o que Portinho escreveu e pede diretamente à sociedade que o ajude a reverter a situação para pôr o país de “volta ao trilho do futuro promissor”.

É um pedido de socorro justo quando ele está acuado por derrotas colhidas no Congresso, a falta de dinheiro para fazer qualquer coisa, o ronco das ruas insatisfeitas e os rolos do seu filho Flávio.

Como candidato a presidente, Bolsonaro se disse disposto, caso fosse eleito, a quebrar “o sistema”. Como presidente, acusa “o sistema” de querer quebrá-lo, inviabilizando o seu governo.

De fato, o maior responsável por sua desgraça é ele mesmo. Candidatou-se só para ajudar à eleição dos filhos. A facada e a fraqueza dos demais candidatos o empurraram para o alto. 

Aí o resto é história conhecida. Não estava pronto para ser presidente. Não tinha um projeto para o país. Carecia de nomes para compor o governo. E não queria, como não quer, compartilhar o poder.

A política não admite vácuo. Na ausência de um governo que saiba o que fazer, o Congresso se prepara para funcionar como uma espécie de governo paralelo, impondo sua agenda à falta de outra.

No que vai dar tudo isso? Numa crise institucional? Em mais um impeachment? Na renúncia forçada ou voluntária de um presidente sem condições para tocar suas tarefas? Em conflitos de ruas?

Desde antes da posse de Bolsonaro houve um esforço considerável de todas as partes envolvidas no jogo do poder para normalizá-lo como se isso fosse possível. Não deu certo até agora. Dará? Ninguém sabe.

Segue o baile, como costuma repetir o vice-presidente Hamilton Mourão.

Pensamento do Dia


Teto de gasto racha, governo se perde

Alguma coisa acontece no coração quando a gente chega à encruzilhada que dá numa recessão. Mais ainda quando se notam as notícias de maio:

1) o teto de gastos do governo começa a trincar. Admite-se aqui e ali a ideia de rever o congelamento da despesa federal antes da data prevista, 2026;

2) a rachadura é um efeito do desespero que bate na praça, dada a frustração até das expectativas reduzidas de crescimento da economia;

3) o governo não tem controle algum do que se passa no Congresso e não parece capaz ou preocupado de formar coalizão majoritária;

4) medidas do presidente são barradas por inépcia intelectual, jurídica e política;

5) o presidente está mais perturbado do que de costume por causa da investigação das contas de seu clã e, em especial, de seu filho Flavio.

Economistas-padrão, ditos "ortodoxos", passam por um processo que em inglês tem o nome sugestivo de "soul searching", o que se traduz de modo mais chocho por "exame de consciência" ou "análise introspectiva". A retomada do crescimento deu chabu além da conta razoável dos erros de estimativa, mesmo considerados choques recentes. O pessoal está, pois, em terapia.

A conversa sobre taxas de juros altas demais entrou no debate corriqueiro de economistas reputados. Um ou outro admite até que se reveja a proibição de aumentar a despesa do governo federal além do nível registrado em 2017. A mesma conversa rola pelo Congresso desde o início do mês, muito mais animadamente por lá, é claro.

O objetivo das mudanças seria permitir um aumento do investimento público e, segue o argumento, estimular algum crescimento. Mesmo com a aprovação da mudança previdenciária, não haverá dinheiro para o governo gastar mais em obras nos próximos muitos anos.

Enfim, o teto está rachando porque o plano deu errado. Seria um sufoco quase impossível mantê-lo até 2026 mesmo se a reforma previdenciária tivesse sido aprovada em 2017 e se o crescimento tivesse voltado como previsto. Nada disso aconteceu. O teto perdeu pilares.

A condição estrita para essas mudanças de política macroeconômica (juros, gastos) seria, claro, a aprovação de uma reforma dura da Previdência. Ainda assim, a conversa mudou. Não quer dizer que rever o teto seja viável, econômica ou politicamente.

Primeiro, a revisão do teto exige mudança constitucional. Segundo, os economistas de Bolsonaro são adversários convictos dessa ideia. Terceiro, a ideia de mexer no teto ainda é muito minoritária e anátema. Quarto, o plano em si não é trivial, para dizer o mínimo.

Mais gasto com investimento implica, pelo menos de início, mais déficit e aceleração do crescimento da dívida pública. Assim, o efeito imediato do gasto extra poderia ser aumento do risco-país, desvalorização da moeda e, pois, alta de juros no mercado, o que anularia o efeito do aumento de gasto. A mera menção de um projeto de revisão do teto pode causar pânico financeiro.

Além do mais, para fazer diferença, o aumento da despesa federal em obras teria de chegar pelo menos a meio ponto do PIB (uns R$ 40 bilhões): o dobro do gasto previsto para este ano. O governo teria projetos bastantes e de qualidade?

No entanto, começam a soprar outros ventos políticos no debate da política econômica, as ruas rugem um pouco e a descrença na capacidade do presidente se dissemina, assim como o sentimento de "ninguém aguenta mais".
Vinicius Torres Freire

Só xingando

Calma, gente! Bomba atômica? Tirar dinheiro da educação? Puta que pariu, esse pessoal perdeu a noção. Enquanto isso, os municípios tentam cuidar da fila do SUS…
Alexandre Kalil (PSD), prefeito de Belo Horizonte

Desrespeito

Quanta gente nas ruas de mais de 200 cidades. E pessoas, via-se claramente, inteiramente focadas em reclamar e exigir que o governo leve muito a sério seu problema mais urgente: a Educação.

Não podemos continuar a desprezar os gravíssimos problemas das gerações que se sucedem ignorando o básico. Não podemos levar a sério Ministros da Educação que não conseguem compreender que aprender a pensar e a raciocinar é tão importante quanto saber ler, escrever e contar.


Educar é abrir uma janela para a criança aprender a ver o mundo e assim poder escolher o caminho que seguirá mais tarde. Como disse Margaret Mead, a grande antropóloga americana, é preciso ensinar às crianças como pensar e não sobre o que pensar.

O grande segredo é conseguir que a criança ame aprender. Desse modo, ela não se cansará de estudar e logo verá que a vida é uma jornada e não apenas um destino.

Todos os que passamos por boas escolas recebemos educação em dose dupla: a que nos foi dada por nossos mestres e, a mais importante de todas, a que bem preparados buscamos nós mesmos pelo resto de nossas vidas. Eis porque boas escolas são fundamentais, imprescindíveis num país que se quer uma Nação.

Ler, interpretar um texto, saber as 4 operações, são a mola propulsora que abrirá a janela para o mundo; a Filosofia, que o capitão não quer ver em nossos currículos escolares, eis a ferramenta que nos ensinará a pensar.

Durante a manifestação dos estudantes e dos professores senti uma imensa alegria. Nem mesmo o comentário desrespeitoso, ácido e mesquinho, do capitão Bolsonaro, abalou minha alegria. “Idiotas úteis”, imbecis”, “massa de manobra”, ele que diga o que quiser: era do povo brasileiro que estava nas ruas que falava e se ele não nos compreendeu, a ponto de nos desrespeitar de modo tão acintoso, sugiro que peça logo seu boné.

E que leve consigo a arma que dorme em sua mesa de cabeceira desde a posse. Por favor.

Pibinho e dólar a quatro

A verdade é que o governo Bolsonaro está rasgando algumas das principais pautas da sociedade brasileira. Gastos com educação, por exemplo. Sabe-se que falta dinheiro – para pagar melhor aos professores do ensino fundamental e médio, por exemplo – e que o dinheiro atual é mal aplicado. Vai daí que os alunos, no geral, aprendem pouco e mal, como fica evidente nas avaliações. Também é verdade que há um viés socialista principalmente nos níveis médio e universitário. Igualmente verdadeiro que essa situação não é culpa do atual governo, mas, sim, uma herança de anos de equívocos.

Mas não se pode começar a tratar disso tudo querendo filmar alunos cantando hinos ou cortando verbas de três universidades que “fazem balburdia” ou chamando os estudantes de “idiotas úteis” que não sabem a fórmula da água.


Aqui, o conflito criado já é de responsabilidade do governo Bolsonaro. Mesmo porque, ignorância por ignorância, o primeiro ministro da Educação, Ricardo Velez, tomou um baile da jovem deputada Tábata do Amaral, em debate sobre questões básicas de educação. E o atual, Abraham Weintraub, posou de sábio e competente ao explicar que um teste iria custar R$ 500 mil – tremenda economia! – quando o valor era de R$ 500 milhões. Um errinho, não é mesmo? Como confundir Kafka com um espetinho.

Tem mais. Ao garantir que o Bolsonaro não ordenara a suspensão dos cortes, como informavam deputados governistas, Weintraub contou que o presidente de fato telefonara, mas para perguntar se haveria mesmo cortes no orçamento das federais. E que ele, ministro, havia explicado que não eram cortes, mas contingenciamento. Quer dizer que o presidente não sabia? Ou é isso, ou o ministro transferiu sua desinformação para o presidente.

Como diria o vice-presidente Mourão, problema de comunicação. Pode ser, entre eles.

Desgraçadamente, é mais do que isso. Esqueçam o corte, perdão, contingenciamento. Por absoluta falta de dinheiro e porque o país está no “fundo do poço” , o ministro Paulo Guedes ordenou cortes nos investimentos e nas despesas discricionárias. De todo o governo. Despesas obrigatórias, como salários e aposentadorias, são feitas regularmente.

Simples de explicar, fácil de entender, tanto para o ministro da Educação quanto para o da Infraestrutura. Mas aproveitar o momento para anunciar punições a universidades da “balbúrdia” e das “massas de manobra”, é falar para os radicais do bolsonarismo. Consequência visível: dá argumentos para todo mundo que tem bronca dos Bolsonaros, aliás, uma parte crescente da população.

Nas manifestações de ontem, foram todos. Estudantes, professores, incluindo os de esquerda, funcionários de estatais contra a privatização, servidores públicos contra a reforma da previdência. Todos dispensados de propor medidas efetivas para melhorar a eficiência e a justiça dos gastos públicos.

Mas não só. Ali também estavam brasileiros legitimamente preocupados com propostas para a educação, em particular, e com as crises políticas geradas dentro do governo e que estão travando diversas pautas e a atividade econômica.

Paulo Guedes tem razão quando diz que este é o fundo do poço, que o país está desabando num abismo fiscal e que não há saída sem reformas estruturais, a da previdência em primeiro lugar. Também tem razão quando diz que falta dinheiro para investimentos, inclusive em pesquisa científica, porque o governo gasta demais com previdência e salários do funcionalismo. Igualmente está certo quando diz que essas reformas dependem do Congresso.

Não é tudo, porém. Como o ministro deve saber, mas não pode falar, não se pode esperar muita coisa de um governo que só tem três ideias boas: o pacote econômico, o pacote anticorrupção e o programa de privatizações. Melhor que nada, se diria.

Mas ocorre que essas três ideias não nasceram nem circulam nem são entendidas no núcleo do bolsonarismo, mais ocupado em xingar os militares do governo, atacar a mídia que não é chapa branca e procurar conspirações comunistas numa “golden shower”.

Enquanto isso, pibinho e dólar a quatro.

Gente fora do mapa


Bolsonaro corre o risco de virar um pária

São cansativas as comparações entre Jair Bolsonaro e Donald Trump, como se o brasileiro fosse uma versão tropical do americano. Os dois não apenas têm personalidades e históricos de vida distintos como também governam em contextos extremamente diferentes.

Jair Bolsonaro nunca terá um partido poderoso como o Republicano, conforme lembra o brasilianista Brian Winter, do Council of the Americas. Tampouco terá uma economia com o vigor da americana. Ao tentar agir como seu ídolo de Washington, corre o risco de ser tratado como pária global, como observamos na sua desastrada excursão pelos EUA mesmo após a mudança de destino de Nova York para Dallas.

Sempre que sofre críticas ou se envolve em escândalos, Trump pode desviar o assunto e citar os espetaculares números da economia americana. Se criticarem a renegociação do Tratado Norte-Americano de Livre Comércio (Nafta), o presidente pode responder que a taxa de desemprego atingiu seu patamar mais baixo desde que Neil Armstrong pisou na lua em 1969, e que a inflação segue controlada abaixo de 2%. Caso condenem a guerra comercial contra a China, o atual ocupante da Casa Branca pode argumentar que o PIB cresceu a uma taxa anualizada de 3,6% no primeiro trimestre deste ano. Em momentos de polêmica, que dados positivos Bolsonaro tem para citar da medíocre performance da economia brasileira, ainda que não seja o responsável?

E, além da economia, Trump tem o amparo do Partido Republicano. Caso sofra acusações e ataques dos democratas na Câmara, Trump sabe que poderá contar com a proteção dos republicanos no Senado, onde eles têm maioria. As eleições ainda estão distantes e, certamente, os EUA estarão divididos como em 2016. Mas cerca da metade do país apoiará Trump porque o presidente disputará a reeleição como candidato do Partido Republicano. Sabem que, se vencer, nomeará mais juízes conservadores para a Suprema Corte da forma como fez duas vezes neste primeiro mandato. Bolsonaro não tem nem uma fração desta força no Congresso brasileiro, e Sérgio Moro poderia ser nomeado para o Supremo mesmo se Bolsonaro ainda fosse um deputado do baixo clero.

As posições de Trump sobre o meio ambiente, incluindo a decisão de se retirar do Acordo de Paris, são condenadas internacionalmente e podem ter efeitos gravíssimos para o futuro da Humanidade. Mas quase nenhum país pode se dar ao luxo de esnobar o presidente dos EUA por esta medida. Já Bolsonaro será repudiado por suas políticas ambientais, conforme observamos na decisão do Museu de História Natural de Nova York de cancelar um evento no qual o brasileiro seria homenageado.

Para completar, Trump não depende do brasileiro. Bolsonaro é quase irrelevante para o presidente americano. Mesmo na Venezuela, a estratégia contra a ditadura de Maduro não seria muito diferente se o Brasil fosse governado pelo general Mourão. Chama a atenção também que Trump não saiu em defesa de Bolsonaro na briga do presidente brasileiro com Bill de Blasio, prefeito de Nova York. Afinal, seria uma ótima oportunidade para o presidente dos EUA alfinetar seu inimigo que governa a sua cidade natal. Pode ter sido por achar irrelevante ou por não querer se associar a Bolsonaro. Tampouco o líder americano celebrou nas redes sociais a visita do brasileiro a Washington neste ano. Muito estranho.

A Inquisição acabou no papel mas não nas cabeças

Da mesma forma como não podemos esquecer os horrores do nazismo, do estalinismo, do maoísmo, dos kmer vermelhos, do fascismo e de tantas outas ditaduras sanguinárias de direita e de esquerda, também não podemos esquecer esse maldito Tribunal do Santo Ofício, vulgo Inquisição, que de tribunal nada tinha e de santo muito menos

O exercício da memória é fundamental nos seres vivos e em particular dos humanos. É ela que nos possibilita evitar os perigos já conhecidos e voltar a obter satisfações semelhantes às anteriormente experienciadas. É ela que nos ajuda a progredir em eficácia e eficiência nas nossas tarefas e a evitar métodos inócuos ou perniciosos na tentativa de alcançar os fins pretendidos.

O funcionamento da memória é um dos processos mais complexos executados por esse órgão fascinante que é o cérebro humano. Mas a memória colectiva funciona doutra forma e vai-se desvanecendo, em grande parte porque a atenção mediática se centra na espuma dos dias.


Talvez por isso o parlamento português tenha decidido no ano passado, por unanimidade e em boa hora, estabelecer o Dia da Memória das Vítimas da Inquisição, a evocar anualmente, como “um resgate da memória das várias vítimas da Inquisição, desde os judeus a seguidores de outros credos, ou até maçónicos e homossexuais, entre outros cidadãos”. Fê-lo a partir da iniciativa dum grupo de cidadãos que apresentaram uma petição nesse sentido à Assembleia da República, a fim de lembrar as vítimas dos 45.000 processos da Inquisição, e onde se pedia que fosse erigido um memorial em Lisboa, no Rossio, em frente ao Teatro Nacional D. Maria II, onde era a sede do Tribunal do Santo Ofício e habitualmente se realizavam os autos-de-fé.

Segundo Anita Novinsky: “A instituição do Tribunal da Inquisição em Portugal foi obra de um jogo entre os interesses da Igreja e os do Estado”, tendo-se tornado um excelente negócio para alguns. A Cúria Romana vendeu-se pelo vil metal e vários cardeais receberam avultadas prebendas da coroa. O núncio da Santa Sé Capodiferro acumulou enormes riquezas, ajudando os cristãos-novos a fugir. Quando um navio que transportava os seus bens naufragou, o embaixador português comentou satisfeito: “Não é sem razão que esse barco, carregado de despojos do sangue de Nosso Senhor Jesus e dos presentes ofertados por seus inimigos, soçobrou no mar” (Herculano, 1975, tomo 2, p. 255).

A organização entrou no país de 1546, pela mão de D. João III, e manteve-se até 31 de Março de 1821, quando foi formalmente extinta, pelo parlamento. Entretanto: “(…) criou colaboracionistas, gratificou a delação e transformou, como disse o poeta Antero de Quental, a hipocrisia num vício nacional (…). Com a aplicação dos estatutos de pureza de sangue, antecipou de 400 anos o racismo do século XX” (Novinsky, A., A Inquisição, p. 24).

Quando temos a consciência de que só há cerca de 200 anos aquela malfadada máquina foi desmantelada (apesar de já não se queimarem pessoas na fogueira há muito), não nos admiramos ao verificar um certo espírito inquisitorial ainda presente na sociedade portuguesa. Pode-se revogar uma lei num dia, pode-se desmantelar uma instituição numa semana, mas as mentalidades demoram gerações a mudar. E dois séculos não são assim tantas gerações com potencial de mudança num país monolítico em matéria de religião, com uma mesma língua e com fronteiras estáveis há quase 900 anos.

É certo que com a instauração da democracia em 1974 e especialmente com a descolonização e a adesão à Europa, assim como a abertura das fronteiras, o país começou finalmente a abrir-se, a mudar, a complexificar-se. Com a globalização, as tecnologias de informação e comunicação e os movimentos migratórios aprofundou e acelerou tais mudanças.

As gerações mais novas têm o direito de conhecer as páginas negras de quase 300 anos da história nacional, não só por uma questão de combater o esquecimento mas em razão da cidadania e da formação das consciências, até porque os cantos de sereia dos populismos de direita e de esquerda ouvem-se cada vez mais alto por essa Europa fora. Os demónios andam por aí à solta com aparência de anjos de luz. Os discursos extremistas, as propostas políticas radicais, a falta de formação e a desinformação das populações estão a criar um caldo de cultura para o surgimento de um amado líder (leia-se ditador) que venha prometer-nos qualquer dia um reinado de mil anos. E depois não vai interessar muito se Hitler era de direita ou de esquerda, como teoriza o pobre Bolsonaro.

A Pide (polícia política do salazarismo), de má memória, foi um sucedâneo da Inquisição, assim como as políticas repressivas da ditadura, que replicaram práticas nazis, fascistas e estalinistas. Os efeitos da Inquisição ainda se fazem sentir em Portugal, nalgumas campanhas políticas, no politicamente correcto, nas causas fracturantes, no discurso de todos os donos da verdade e até nalguns acórdãos judiciais. Temos que estar atentos.

Assim a soja invade a Amazõnia

Os campos de soja começam atrás do pequeno pomar de Paulo Bezerra. Ele não conversa mais com seu vizinho, o fazendeiro que planta ali o produto de exportação número um do Brasil e que vive do outro lado da estrada de terra empoeirada. Da última vez, o vizinho os xingou de vagabundos, a ele e a seus parentes da etnia indígena munduruku, conta Paulo, levantando uma cobra coral morta do chão. O réptil pode ter sido vítima tanto das queimadas no campo quanto dos agrotóxicos.

As plantações de soja se estendem até uma distância de dez metros das casas dos munduruku na aldeia Açaizal. "Quando começa a chover, eles começam a aplicar o veneno. É para matar o mato, e toda semana aplicam o veneno na soja para matar os insetos", explica Paulo, de 56 anos. O resultado: ânsia de vômito, coceira na pele, falta de ar e tonturas. "Cada dia estamos morrendo aos poucos dentro da nossa aldeia. Mas nosso governo está aí, discriminando indígenas, quilombolas e ribeirinhos, que sobrevivem desta terra", enumera.

Segundo ele, as autoridades não reagem às queixas dos munduruku. "Aqui o governo só está beneficiando uma família de 'sojeiros', e mais de 60 famílias nessa aldeia não. Estamos sendo maltratados, castigados pelo uso de agrotóxicos", afirma.


Os venenos já foram parar nos rios e nos lençóis freáticos, e as plantações dos próprios indígenas estão sendo prejudicadas, relata também o cacique da aldeia, Josenildo Munduruku. "Nossos parentes a cada dia estão adoecendo mais, os nossos animais e os animais da floresta desaparecendo devido ao uso de produtos agrícolas. Eles podem nos matar envenenados", teme.

Açaizal fica próxima ao Lago do Maicá, na confluência do rio Tapajós com o Amazonas, e faz parte do território indígena Munduruku do Planalto Santareno. Há anos, os munduruku lutam pelo reconhecimento oficial da área, com base no Artigo 231 da Constituição de 1988, que garante aos povos indígenas o direito aos seus territórios tradicionais. Dentro de cinco anos – ou seja, até 1993 – essas áreas deveriam ter sido demarcadas e transferidas para os indígenas. Mas centenas de casos ainda esperam conclusão – incluindo o território dos munduruku nas proximidades de Santarém.

Antes uma cidade adormecida da selva paraense, Santarém se tornou visivelmente o ponto de confluência do comércio brasileiro de soja com a construção da BR-163, que conecta a cidade a Cuiabá desde os anos 1970. Não longe da aldeia munduruku, os caminhões de grãos estrondeiam em direção ao porto de carregamento da multinacional alimentícia Cargill. Daqui, a carga preciosa é transportada de navio em direção ao Atlântico.

Atualmente, há mais quatro estações de carregamento em construção. Os ribeirinhos do Lago do Maicá já temem pelo seu futuro como pescadores. De maneira definitiva, a fronteira do agronegócio chegou à margem sul do Amazonas.

Durante mais de 40 anos, a agricultura avançou em direção ao norte, ao longo das estradas construídas em meio à floresta. No leste, foi a rota de Brasília a Belém. No oeste, o trajeto que leva de Cuiabá a Porto Velho. E, no centro, a BR-163. Cerca de 20% da Amazônia já teriam sido destruídos para dar lugar à criação de gado e ao plantio de soja.

Parques naturais e territórios indígenas ainda permanecem intactos. Resistem ao chamado "Arco do desmatamento". Mas o novo governo de Jair Bolsonaro já anunciou que, em breve, também quer abrir as áreas protegidas para a exploração econômica. Não se sabe por quanto tempo o rio Amazonas servirá de trava para impedir o salto da agricultura para o norte do país, no coração da Floresta Amazônica.

A pressão sobre a etnia munduruku já está forte. "A cada dia a gente percebe que as áreas florestadas estão reduzindo, a gente acaba a todo momento sendo atacado", constata o cacique Josenildo. "Por um esquema muito orquestrado de grilagem, os 'sojeiros' hoje ocupam esse território, eles acabam se apossando por imensas fraudes no sistema de regularização fundiária", acrescenta.

Para conter essa evolução, os munduruku apelaram à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA) no final de 2018. Quando o órgão enviou uma delegação a Açaizal, fazendeiros de soja da região obstruíram o caminho com dezenas de caminhões.

Naquele momento, os agricultores de soja sentiam que passavam por uma ascensão, descreve Jucelino Farias, da Comissão Pastoral da Terra (CPT) em Santarém. "Logo depois da eleição desse atual governo, eles já se sentiam muito à vontade para continuar nesse processo do avanço do agronegócio, na nova abertura de áreas para plantações", diz. "Nas comunidades mesmo, o avanço do desmatamento e o avanço da monocultura continuam. E muitos desses desmatamentos para a soja são provenientes da grilagem da terras", expõe.

A posse ilegal de terras, ou grilagem, ficou mais sofisticada nos últimos anos, descreve Jucelino. Segundo ele, primeiro os fazendeiros identificam as áreas que ainda não têm registro de posse – a exemplo das terras da União reivindicadas pelos indígenas. Os dados de GPS são então, explica, inseridos no Cadastro Ambiental Rural (CAR), que é autodeclaratório (nos moldes do imposto de renda) e obrigatório para todas as propriedades rurais brasileiras para fins de regularização ambiental.

"O CAR não gera título, mas eles o usam para expulsar as pessoas", explica Farias. O passo seguinte, diz, é conseguir um título de posse "comprando registro em cartório". Como a Justiça costuma reagir lentamente na maioria das vezes, muitos conseguem concluir o processo, prejudicando as comunidades indígenas. "Eles não têm nenhuma garantia de permanecer no seu território", lamenta Farias.

A região seria então uma terra sem lei? "Há, sim, lei. Mas o que há em demasia é o desrespeito à lei", coloca Luis de Camões Lima Boaventura, procurador do Ministério Público Federal em Santarém. "Há, aqui na região amazônica, uma ausência proposital do Estado, justamente numa área onde a expansão agrária ou os recursos minerais estão. E faz-se um esforço equivocadíssimo de negar a preexistência milenar de povos que ocupam essa região. E esses povos fazem um contraponto a esses interesses", destaca.