Em 2010, meu filho, que acaba de completar 15 anos, idade dos alunos avaliados pelo Pisa, exame que mede a qualidade da educação em mais de 70 países elaborado pela OCDE, estudava em uma escola particular no Rio de Janeiro. Era a hora da história, aquele momento em que as crianças sentam-se ao redor da professora para ouvi-la contar sobre aventuras e fantasias. Ela havia escolhido uma história sobre piratas, aqueles de perna de pau, olho de vidro, cara de mau. Corte dessa cena.
Tomada seguinte: em 2010, os piratas da costa da Somália corriam os mares a pleno vapor, capturando mercadorias e embarcações. Vocês devem se lembrar do filme que contou parte dessa história bem real — "Capitão Phillips", lançado em 2013, protagonizado por Tom Hanks. Pois em 2010, os piratas da Somália estavam por toda parte. Nas manchetes dos jornais, na televisão, nas conversas entre familiares e amigos. O adolescente de agora que então tinha 5 aninhos sempre foi garoto atento. Os piratas bem reais da Somália atiçaram sua imaginação de menino.
Retomo a cena na escola. Quando acabou a história, alguém perguntou para a professora se os piratas existiam. A professora disse que não, piratas são da imaginação, da fantasia. Imagino que ela se referia aos de perna de pau, olho de vidro, por aí vai. A resposta não agradou um de seus alunos, que rapidamente disse: “Mas os piratas existem!”. Quando a professora insistiu que não, eram apenas personagens em uma história, ele retrucou: “E os da Somália?”. Silêncio. Ele ficou tão contrariado com esse silêncio que a primeira coisa que me contou quando chegou em casa foi o que havia passado na escola. Eu já sabia que a educação no Brasil, mesmo nas supostas melhores escolas particulares, deixava a desejar. Essa história, entretanto, virou espécie de mito familiar sobre as imensas lacunas da educação brasileira, lacunas que atingem a todos, dos mais pobres à elite.
Aos fatos. No último exame Pisa para o qual temos os dados completos, o de 2015 — o exame é aplicado a cada três anos e ainda não temos as informações de 2018 —, o desastre da educação no Brasil ficou mais uma vez explícito. O Pisa define sete níveis de proficiência em três áreas: ciências, matemática, e leitura. Os níveis mais baixos são o 1a e o 1b, que retratam a incapacidade de alcançar o nível mínimo de proficiência, considerado como o alcance do nível 2. O Pisa também traz informações sobre o nível socioeconômico dos alunos avaliados em cada país, definido por meio de um índice com metodologia clara. Desse modo, é possível avaliar o desempenho nas três áreas das diferentes classes sociais. Agora, preparem-se.
Comecemos pela matemática. Segundo os dados do Pisa, em 2015 86% dos alunos de nível socioeconômico mais baixo não alcançaram o nível 2; 83% dos alunos de classe média baixa e média não alcançaram o nível 2; 72% dos alunos de níveis socioeconômicos mais altos não alcançaram o nível 2.
Nas ciências, 72% dos alunos de nível socioeconômico mais baixo não alcançaram o nível 2. Isso se compara a 60% para a classe média baixa e para a classe média, e a 35% para os níveis socioeconômicos mais altos. A desigualdade em ciências é clara, mas o resultado é desastroso para um país que será atingido em breve pelas mudanças no mercado de trabalho provenientes dos avanços tecnológicos que exigirão alto grau de proficiência em matemática e ciências.
Por fim, o trágico acidente de leitura. São 65% de analfabetos funcionais nos níveis socioeconômicos mais baixos, 53% nas classes médias e 32% entre os filhos das elites do país. Repito: um terço dos filhos da elite brasileira são, pelo Pisa, analfabetos funcionais.
Está aí a pirataria cometida por governos sucessivos, acentuada pela atual guerra ideológica do bolsonarismo, que tem a educação como alvo, e um ministro da pasta sem preparo ou estratégia. Deixo-os com o verbete.
Pirataria: crime de depredação cometido no mar de lama contra embarcações e passageiros responsáveis pelo futuro da nação.
Monica de Bolle
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