quarta-feira, 7 de novembro de 2018

Gente fora do mapa


Sabe quem você está lendo?

A pergunta é impertinente. Ler um livro sagrado no qual só há o certo e o errado é uma coisa, ler um ensaio político de um partido onde coisa semelhante ocorre, mas, ter a liberdade de escolher qualquer leitura, é algo moderno e ser por ela informado, é democrático. Thomas Mann dizia que o romance (essa gigantesca criação do mundo burguês) é fruto do “democratismo”: do dialogo permanente de liberdade com igualdade.

O jornal que vai para o lixo amanhã embrulhando o fato extraordinário de hoje, é – sem nenhuma dúvida – o símbolo maior da leitura aberta e individualista. Num sentido preciso, o periódico é, para muitos, um farol que ilumina um vasto oceano e, para outros, revela apenas uma nesga de luz.

Temos muitos jornais, mas, paradoxalmente, falamos pouco deles porque – diferentemente dos livros e relatórios oficiais e científicos – o jornal fala de tudo. Ele é um informante daquilo que ocorre nos grande centros urbanos e, antes dos telefones celulares, era um balizador de comportamentos: um importante mapa comportamental. Nele, encontramos estampados nossas vergonhas, heroísmos e sofrimentos; nossas conquistas e atrasos. Hoje, o jornal tem balizado os fatos maquiados (fake news) e nele temos prova dos rompimentos impensáveis com as rotinas (crimes, escândalos, acidentes, aventuras, etc...) à sua reafirmação como fazem prova os “cadernos” sobre a cidade, a política, a alta sociedade, as artes, a economia e o esporte. Em suma, “o que vai pelo mundo”, dividido nas categorias pelas quais a nós, como um sistema cosmológico, tomamos como fundamental para o nosso modo de pensar.

O jornal e o jornalismo rotineiro ou de ocasião são um importante instrumento de orientação sociopolítica e seus profissionais são fundamentais com observadores de nossas percepções do mundo. Alguns presumivelmente atados aos fatos (repórteres que descrevem abrindo mão do interpretar); outros, com a obrigação de interpretar mais do que narrar. A esta simplória divisão interna, contudo, intromete-se a incapacidade humana de escapar de si mesma de modo que, mesmo quando descrevemos, interpretamos e, mesmo interpretando, descrevemos.

É impossível não tomar partido. O velho e sábio adágio atribuído ao historiador romano Caio Cornélio Tácito – “sine ira et studio” (sem ódio ou condescendência) – foi proclamado justo pela nossa disposição em tomar partido. Quando se diz que não há raiva ou pressuposto, já estamos tomando um partido a ser visto como a busca da neutralidade, das terceiras margens dos rios acentuadas por Guimarães Rosa. Coisa complexa nas guerras, mas igualmente estruturantes da nossa capacidade de compreender e perdoar.

Exprimindo sem querer, mas querendo, os valores que os engendraram, os jornais diários acabam nos mostrando “quem estamos lendo”. Se vamos ao seu editorial, lemos a sua opinião. Se vamos às páginas que fazem o jogo do poder, temos em pílulas informações irônicas sobre os poderosos; se, porém, vamos aos seus cronistas, encontramos tentativas de distanciamento dos becos sem saída do mundo diário ao lado de muitas maluquices, como é o meu caso.

É quando sabemos quem estamos lendo, pois, na crônica, há o espaço para o reflexão que permite consenso, dissenso ou recusa. Ali há também o sermão e o conselho, que as páginas do próprio periódico, precisamente por ser periódico, têm dificuldade em aquilatar. No fundo, o jornal procura acasalar a seu modo evento e estrutura, algo que as sociedades humanas se obrigam a fazer desde que se descobriram os contrastes entre o acreditar e o observar, o sentir e o explicar...

Viva os jornais que falam de tudo. Não é por acaso que sua supressão é o sinal mais óbvio dos despotismos. O jornal nos ajuda a saber quem estamos lendo. Tal como ocorre com o sabe com quem estamos falando. Um assunto para outro dia...

Um enigma chamado Governo Bolsonaro

Por menosprezar o adversário, o PSDB amargou 16 anos de frustrações, em quatro derrotas eleitorais consecutivas perdeu oito turnos, e tende a continuar fora do poder por muito tempo. Definiu-se pela típica arrogância da aristocracia e se deu mal. Já em 2002, os tucanos enxergavam o candidato Lula como um simplório que havia perdido duas eleições para Fernando Henrique, no primeiro turno. Além da derrota para Fernando Collor, em 1989. Lula era um cabra marcado para perder.

Não perceberam ou não quiseram enxergar que o petista se reinventara, passando ao largo de conflitos que arrastaram José Serra e Ciro Gomes. Por certo despeito, passaram a crer que o ex-metalúrgico não conseguiria governar; anunciavam o desastre. E não foi bem assim. Quando deu certo, desdenhavam que Lula apenas “dava sequências aos acertos de FHC”. Na época, lhes perguntava: “e vocês acham errado?”

Seguindo esse soberbo instinto, em 2006 deram Lula como morto, em virtude do mensalão. A eleição de Geraldo Alckmin seria um passeio. Passeio, porém, foi a vitória do petista, que entrou em campo apenas na reta final e fez com que Alckmin tivesse no segundo turno menos votos do que obtivera no primeiro. Uma extravagância digna do Guinness Book.

E assim perseveraram supondo que a candidata inventada por Lula não resistisse à campanha eleitoral, pois perderia a paciência, a estribeira, a eleição. O mesmo pensaram em relação ao que chamaram de poste, Fernando Haddad, em 2012; o que se repetiu em 2014, novamente com Dilma, tendo Lula entrado em campo apenas na última semana do segundo turno.

Cópia da Esfinge, made in China
Isto tudo serve para dizer que o mesmo erro pode se repetir na avaliação que a esquerda e os setores progressistas fazem de Jair Bolsonaro. A tendência desde sempre foi menosprezá-lo, sem considerar as circunstâncias que o cercavam e favoreciam. Bolsonaro venceu a eleição. Agora, o autoengano quase geral é de que o presidente eleito não reúne capacidades políticas e intelectuais para governar. Pode ser. Mas, também pode ser um equívoco, um erro crasso.

O primeiro argumento em favor de Bolsonaro se usava também em defesa de Lula: ninguém chega à presidência da República em vão. Na política, idiotas morrem cedo. A Bolsonaro cabem vários tipos de crítica, menos a de que seja bobo. Afinal, venceu pleito concorridíssimo, aparentemente sem recursos e superou diversas barreiras. Jogou e se deu bem, sendo a sensação do primeiro turno e pautando palanques estaduais no segundo. Gostem ou não, deu o tom da eleição.

“Circunstâncias”, “espírito do tempo”, “sorte”… Não importa. O fato é que, tendo por base uma mensagem direta e o sentimento antissistema, Bolsonaro e seu exército brancaleone operaram extraordinariamente bem as condições e as oportunidades que os cercaram.

O mesmo pode ocorrer durante o governo. Não se trata de torcer a favor ou contra, mas de possibilidade que não pode ser descartada.

À parte dos sinais desencontrados e aparentes erros cometidos nesses dias de transição e das inúmeras frentes de conflito que tem aberto, o certo é que ao projetar um Superministério da Justiça e convidar para ele o juiz Sérgio Moro, Bolsonaro parece alçar mira em objetivos muito claros, que ultrapassam o combate à corrupção e ao crime organizado. Com o propósito de pacificar o país, o eleito se pinta para guerra. Seu símbolo é Caxias, que se fez herói pelo enfrentamento de revoltosos, não pela contemplação de interesses.

No esforço para construir a governabilidade de seu mandato, o arranjo da Justiça com Moro parece fazer sentido, seja entregando a seu eleitor as promessas da campanha — o que lhe elevaria a popularidade —, seja dissuadindo adversários por meio dos instrumentos legais que terá em mãos.

Ao invés de negociar e ceder ao fisiologismo, Bolsonaro pode estar em vias construir um mandato cuja estratégia tenho chamado “governabilidade coercitiva”. Alto impacto.

Até aqui, o embate eleitoral foi jogo de damas, um come-come. A dinâmica da alternância de poder, na tentativa de instalação de um novo ciclo, é diferente, mais sutil: jogo de xadrez. A atenção a todos os lances, movimentos diversionistas, performáticos, e movimentos de fundo é imprescindível.

Qualquer objeto requer que os atores sejam compreendidos e, por isso, respeitados — sem preconceitos ou desdém. Este o papel do analista: “nem o riso, nem a lágrima; apenas o entendimento”, como diz Spinoza. Já à oposição, até para não ser devorada como tucanos, caberá observar, intuir, compreender e decifrar os enigmas do próximo governo. Eis a tarefa e o esforço para os próximos meses.
Carlos Melo

'É a sociedade digital, estúpido!'

Após vencer a Guerra do Golfo, Bush era favorito absoluto para ganhar as eleições de 1992 contra o desconhecido governador de Arkansas, Bill Clinton. O marqueteiro de Clinton, James Carville, apostou que, com a economia em recessão, Bush não era invencível e cunhou a frase que explicou o resultado: “É a economia, estúpido!”.

Bolsonaro é um case de marketing. Candidato pelo então minúsculo PSL, sem apoio dos partidos tradicionais, sem dinheiro, criticado de forma contundente pela maioria dos acadêmicos, artistas e veículos de comunicação (nacionais e internacionais), com acesso ínfimo ao horário eleitoral e, ainda, em claro confronto com a “ordem” vigente (ideológica, econômica e política), venceu com 57,8 milhões de votos.


O sociólogo espanhol Manuel Castells, estudioso dos movimentos sociais na era da internet, diz, há anos, que o modelo democrático conservador está esgotado. A indignação começa nas redes sociais e transborda para as ruas e urnas. De fato, em 2013, cerca de 1,3 milhão de pessoas protestaram no asfalto externando a insatisfação popular que já era evidente na internet. O reflexo nas urnas demorou, mas chegou...

À época, inúmeras raposas da política brasileira disseram que os interesses eram difusos e que faltava uma “causa” aos manifestantes. Ignoraram grande parte das infinitas razões do descontentamento. Bolsonaro — até então um deputado inexpressivo, com posições e frases polêmicas —, ao contrário, viajou pelo Brasil e pelo mundo virtual, personificando a insatisfação social “contra tudo e contra todos”. Conforme pesquisa da FGV, 78% dos brasileiros não confiavam nos políticos e nos partidos. Por outro lado, a sociedade confiava nos militares (45,8%) e na Igreja (61,5%). O capitão cristão fortaleceu-se na internet como oposição ao “sistema” enquanto os políticos discutiam como distribuir verbas dos fundos partidário e eleitoral, tempo de televisão e palanques nos estados. Alguns ainda defenderam colegas corruptos, que já estavam presos ou que deveriam estar.

A carcomida estrutura política brasileira desprezou a era digital: o Facebook do maior partido brasileiro em número de filiados, o MDB, é curtido por apenas 79.659 pessoas, enquanto o do Nas Ruas, criado pela sociedade civil, tem 770.075 curtidas. O PSDB coligou-se com o Centrão para tornar-se o “campeão” de minutos no horário eleitoral, mas morreu longe da praia. O seu Facebook tem 1,3 milhão de curtidas, enquanto o do movimento Vem Pra Rua Brasil possui mais de dois milhões. O PT, recriminado pelo rapper Mano Brown por “não falar a língua do povo”, também não se destaca na linguagem virtual.

O seu Facebook tem 1,5 milhão de curtidas, praticamente a metade das 3,1 milhões do Movimento Brasil Livre, que se insurgiu contra o aumento das passagens em São Paulo. A título de comparação, o Facebook de Jair Bolsonaro é curtido por 8,7 milhões de pessoas...

Nas outras redes, não é muito diferente. O Twitter de Bolsonaro tem 2,3 milhões de seguidores contra 1,1 milhão de Haddad. No Instagram, os 6,8 milhões de seguidores de Bolsonaro superam a soma dos que seguem todos os outros recém-candidatos a presidente.

Os dados são relevantes, pois, no ano passado, em pesquisa da FGV, quase a metade dos entrevistados (49,5%) disse que se informa sobre política no Facebook, Twitter, WhatsApp, blogs e sites.

Nas campanhas eleitorais, nada será como antes de 2018. O país possui 139 milhões de internautas e 120 milhões de contas de WhatsApp. Existem 220 milhões de smartphones para 209 milhões de habitantes.

Na Grécia Antiga, a sociedade se reunia na Ágora, a praça do povo, para debater com os arcontes, embaixadores e generais. A cidadania agora é tratada nas redes sociais, às vezes à revelia do que desejam os partidos políticos, seus dirigentes e muitos dos que pensavam ter ingerência sobre o pensamento da sociedade brasileira.

Para os que ainda não entenderam como Bolsonaro venceu, sugiro adaptarem a frase do marqueteiro de Clinton, James Carville. É a sociedade digital, estúpido!
Gil Castello Branco

Paisagem brasileira

Rua de Barbacena, Wim van Dijk (1969)

Festa no Congresso escancara a falta de líderes

Reuniram-se no plenário do Congresso nesta terça-feira as principais autoridades da República. Foram festejar o aniversário de 30 anos da Constituição. A solenidade ocorreu num instante em que o país vive tempos extraordinários. Tempos assim costumam produzir líderes extraordinários. Onde estão eles agora?, poderia perguntar qualquer brasileiro que lançasse um olhar em direção à mesa de autoridades. Lá estavam:

1. Michel Temer, um presidente da República em fim de linha, precedido por um rastro pegajoso que imprime nos salões do poder as marcas de duas denúncias por corrupção e dois inquéritos criminais.

2. José Sarney, um ex-presidente da República que frequenta os livros de história como campeão do atraso na política brasileira —tanto por antiguidade quanto, sobretudo, por merecimento.

3. Eunício Oliveira e Rodrigo Maia, presidentes do Senado e da Câmara, o “Índio” e o “Botafogo” das planilhas da Odebrecht. Ambos protagonistas de inquéritos criminais.

4. Dias Toffoli, o magistrado que chegou ao Supremo cavalgando um currículo tisnado por reprovações em concursos públicos para juiz federal. Na Suprema Corte, compõe a turma dos adeptos da política de celas vazias.

5. Raquel Dodge, a procuradora-geral da República que deveria fazer das perversões ao redor a matéria-prima para um trabalho mais profícuo.

6. Jair Bolsonaro, o grande beneficiário de toda a barafunda, um capitão exótico que o eleitorado brasileiro transferiu do baixíssimo clero da Câmara para os píncaros do Planalto.

Todos renderam homenagens à Constituição. Uns, como Toffoli e Dodge, cobraram respeito ao livrinho. Bolsonaro acorrentou-se aos texto constitucional. “Na democracia há só um norte: o da nossa Constituição”, disse o personagem que comandará a nação a partir de 1º de janeiro.

Pronunciadas por um orador que já utilizou os microfones do Parlamento para enaltecer um torturador e pregar o “fechamento temporário do Congresso”, as palavras de Bolsonaro valem como uma espécie de conversão. Uma conversão do mesmo nível da que sucedeu na estrada de Damasco, no século 1, com o soldado Saulo.

Implacável perseguidor de cristãos, Saulo, de repente, foi paralisado por uma luz ofuscante. Caiu do cavalo e ouviu uma voz vinda do céu: “Saulo, por que me persegues?” Por algum tempo, Saulo ficou cego, tamanha a claridade que o invadiu. Consumou-se assim, em circunstâncias espetaculares, a conversão de São Paulo, um dos pilares do cristianismo.

Nas rapidíssimas palavras que pronunciou na festa dedicada à Constituição, Bolsonaro escorou-se no Todo Poderoso. Em dois minutos, referiu-se a Deus cinco vezes. De fato, precisará Dele para operar o milagre de retirar o Brasil do precipício em que o enfiaram.

Indicado para o Supremo por Lula, Toffoli deu uma ideia do que pode ocorrer com o capitão se Deus não corresponder à sua devoção. ''Temos passado por episódios turbulentos”, discursou Toffoli, antes de enumerar as turbulências mais recentes:

“A investigação de políticos, o impeachment de uma presidente da República (Dilma), a cassação de um presidente da Câmara dos Deputados (Cunha) e a prisão de um ex-presidente (Lula). No entanto, olho para o futuro com otimismo, pois todos os impasses foram resolvidos de maneira institucional e com respeito às leis brasileiras.”

Quem ouviu Toffoli pode ter caído na tentação de fazer uma leitura menos otimista dos fatos. Se eles comprovaram alguma coisa foi o seguinte: a democracia brasileira, que a Constituição de 1988 consolidou, tornou-se um regime que saiu pelo ladrão. Apodrecido, o sistema político revelou-se incapaz de se auto-depurar. A lama exposta pelo rodo da Lava Jato estimulou o eleitorado a chutar o balde de onde saiu Bolsonaro.

Encerrada a solenidade no Congresso, Bolsonaro foi para o compromisso seguinte: um encontro com o ministro da Defesa, general Silva e Luna, seu companheiro de armas. Aos repórteres que estranharam a coincidência, o capitão respondeu: “Os militares terão um papel importante no governo.” Com tantos políticos civis em estado penoso, os militares voltaram à moda 33 anos depois de terem caído em descrédito.

Retorne-se, por oportuno, à pergunta do primeiro parágrafo: nesses tempos extraordinários, onde estão os líderes extraordinários? Na era do poder pulverizado, o grande líder, ou o suposto grande líder, já não existe. Faltam líderes tanto quanto sobram incertezas.

O poder do Estado, hoje, é partilhado com empresários, movimentos sociais, igrejas e outros focos de influência paraestatal. Desde 2013, o principal foco de poder é o asfalto. No limite, o grande líder é você.

Cotonetes, o maior perigo dos oceanos?

Se, como dizem os cínicos, o que importa na política é simbologia e grandes gestos, então a União Europeia está no caminho certo. Pois a anunciada proibição de talheres descartáveis, canudinhos e cotonetes de plástico certamente fará o mundo melhor. Já a contribuição disso para a limpeza nos oceanos – que deveria ser o objetivo, na verdade – deverá ser, antes, marginal. Mas o mais importante é que nós, na Europa, vamos nos sentir bem, pois fizemos alguma coisa.

Não há como negar: há cada vez mais plástico à nossa volta. Verduras, frutas, carne, embutidos ou queijo no supermercado: tudo vem embalado. Cada livro no livraria é selado em plástico. A senhora que me vende pãezinhos usa luvas de plástico.

E de praticamente cada mochila no metrô há uma garrafa PET de água espiando – como se não houvesse torneiras suficientes nos escritórios, escolas ou universidades alemães. As quais, aliás, fornecem água perfeitamente potável e muitas vezes fresca e saborosa – mas esse é um outro assunto.

Então quer dizer que todo esse luxo de artigos descartáveis e dispensáveis vai parar automaticamente no mar? Claro que não. Pois em toda a Europa há sistemas abrangentes de eliminação de lixo, em parte até mesmo separado por material e com elevadas taxas de reaproveitamento.

E quem frequenta regularmente as praias europeias ou veleja no Mediterrâneo sabe que, na realidade, cotonetes, canudinhos e garfos de plástico não são o maior problema. O que mais se encontra sobre a água e à beira dela são garrafas d'água, sacolas plásticas, restos de rede de pescar e frascos de óleo para motor e xampu.

Ninguém quer proibir fundamentalmente nenhuma dessas coisas. Entretanto, com sistemas de depósito impostos por lei ou preços mínimos, o problema se reduziria radicalmente. Aqui está a chance de a UE mostrar serviço!

No entanto, os verdadeiros focos de poluição marinha não se situam na Europa. Oito dos dez rios que diariamente despejam o maior número de toneladas de plástico se situam na Ásia, e os outros dois, na África. Então, o que pode fazer a Europa? Nada além de compartilhar imagens alarmantes nas redes sociais e lamentar a miséria do mundo?

Não, é claro que a Europa dispõe de opções bem diferentes. Por exemplo ajudar as regiões nas bacias desses rios mais sujos a construírem sistemas decentes de coleta e reciclagem, a fim de que o lixo não seja mais despejado na água corrente. Para tal, empresas europeias, e em especial alemãs, oferecem excelentes projetos e instalações altamente eficientes. Só que nos países em questão ninguém quer ou pode pagar por isso.

Portanto, se a questão é realmente tão importante para nós, europeus, não há alternativa senão meter a mão no próprio bolso e lançar projetos de desenvolvimento nesse sentido. Essa, pelo menos, seria uma política eficaz e sustentável. Mas, claro, bem mais cara do que proibir talheres descartáveis e cotonetes.

Felix Steiner

O que o capitão deveria prender com Caxias

As circunstâncias impõem que revisitemos a Revolução Liberal de 1842. Naquela ocasião, o povo rebelou-se em Minas Gerais e São Paulo contra a centralização do poder político, promovida pelos conservadores, em 1840, em favor da Corte imperial, por meio do chamado Ato de Interpretação do Ato Adicional de 1834. Contavam também com o apoio dos Farrapos, que ainda resistiam no Rio Grande do Sul. Em Minas Gerais, eram liderados por Teófilo Otoni. Seus correligionários − e ele próprio − foram derrotados em uma batalha ocorrida num local denominado Muro de Pedra, nos arredores de Santa Luzia. Quem conduzia as tropas imperiais era Luís Alves de Lima e Silva, o então barão de Caxias. Preso, Teófilo Otoni foi conduzido a Ouro Preto. Seria julgado em Mariana por crime de lesa-majestade, correndo o risco de ser condenado à morte.

Perto de Sabará, Caxias ficou sabendo que Teófilo Otoni estava sendo conduzido, de Santa Luzia a Ouro Preto, a pé, com pernas e braços atados. Determinou que lhe fosse dada montaria e que as correntes fossem retiradas. Assegurou-lhe, ainda, que teria direito a um julgamento imparcial. No tribunal, Teófilo Otoni assumiu sua própria defesa e foi absolvido. Sua fama espalhou-se. A partir daí, os membros do Partido Liberal, no Segundo Reinado, passaram a ser conhecidos como os “luzias”. Anistiado em 1844, Teófilo Otoni foi eleito para a Câmara dos Deputados, lá permanecendo até 1850. Afastou-se da política por uma década, período em que fundou uma colônia agrícola e uma companhia de comércio e navegação no vale do Mucuri. Construiu, ainda, a famosa estrada de ferro Bahia-Minas.

Nos anos 60 do século XIX, os eleitores mineiros colocaram-no como o primeiro da lista tríplice da qual o imperador deveria escolher um senador. Após muita relutância, d. Pedro II o alçou ao Senado, no limiar da Guerra do Paraguai. Teófilo Otoni havia se formado, com louvor, como oficial da Marinha no Primeiro Reinado. Fora o melhor aluno de sua turma. Acinte: na cerimônia de colação, negou-se a beijar a mão de d. Pedro I, por se considerar republicano. Já no Senado, em famoso discurso, quando o Brasil se encontrava na defensiva contra as tropas de Solano López, propôs que os militares brasileiros fossem conduzidos por um combatente que conhecia bem. Tratava-se de um adversário político, do Partido Conservador: o senador Luís Alves de Lima e Silva, agora, marquês de Caxias. Sob o comando de Caxias, os brasileiros ganhariam a guerra, em 1869. No mesmo ano, Teófilo Otoni, o Senador do Povo, morreria. Seu enterro reuniu, até então, a maior multidão que se aglomerou nas ruas do Rio de Janeiro.

O capitão eleito diz que seguirá os passos de Caxias, o Pacificador. Seria bom que alguém lhe narrasse a relação do “Patrono do Exército” com o Senador do Povo. Ali se vê como a política pode ser exercida de forma altaneira entre oponentes que se respeitam e que não veem o adversário como o inimigo subversivo a ser varrido deste país.