Reuniram-se no plenário do Congresso nesta terça-feira as principais autoridades da República. Foram festejar o aniversário de 30 anos da Constituição. A solenidade ocorreu num instante em que o país vive tempos extraordinários. Tempos assim costumam produzir líderes extraordinários. Onde estão eles agora?, poderia perguntar qualquer brasileiro que lançasse um olhar em direção à mesa de autoridades. Lá estavam:
1. Michel Temer, um presidente da República em fim de linha, precedido por um rastro pegajoso que imprime nos salões do poder as marcas de duas denúncias por corrupção e dois inquéritos criminais.
2. José Sarney, um ex-presidente da República que frequenta os livros de história como campeão do atraso na política brasileira —tanto por antiguidade quanto, sobretudo, por merecimento.
3. Eunício Oliveira e Rodrigo Maia, presidentes do Senado e da Câmara, o “Índio” e o “Botafogo” das planilhas da Odebrecht. Ambos protagonistas de inquéritos criminais.
4. Dias Toffoli, o magistrado que chegou ao Supremo cavalgando um currículo tisnado por reprovações em concursos públicos para juiz federal. Na Suprema Corte, compõe a turma dos adeptos da política de celas vazias.
5. Raquel Dodge, a procuradora-geral da República que deveria fazer das perversões ao redor a matéria-prima para um trabalho mais profícuo.
6. Jair Bolsonaro, o grande beneficiário de toda a barafunda, um capitão exótico que o eleitorado brasileiro transferiu do baixíssimo clero da Câmara para os píncaros do Planalto.
Todos renderam homenagens à Constituição. Uns, como Toffoli e Dodge, cobraram respeito ao livrinho. Bolsonaro acorrentou-se aos texto constitucional. “Na democracia há só um norte: o da nossa Constituição”, disse o personagem que comandará a nação a partir de 1º de janeiro.
Pronunciadas por um orador que já utilizou os microfones do Parlamento para enaltecer um torturador e pregar o “fechamento temporário do Congresso”, as palavras de Bolsonaro valem como uma espécie de conversão. Uma conversão do mesmo nível da que sucedeu na estrada de Damasco, no século 1, com o soldado Saulo.
Implacável perseguidor de cristãos, Saulo, de repente, foi paralisado por uma luz ofuscante. Caiu do cavalo e ouviu uma voz vinda do céu: “Saulo, por que me persegues?” Por algum tempo, Saulo ficou cego, tamanha a claridade que o invadiu. Consumou-se assim, em circunstâncias espetaculares, a conversão de São Paulo, um dos pilares do cristianismo.
Nas rapidíssimas palavras que pronunciou na festa dedicada à Constituição, Bolsonaro escorou-se no Todo Poderoso. Em dois minutos, referiu-se a Deus cinco vezes. De fato, precisará Dele para operar o milagre de retirar o Brasil do precipício em que o enfiaram.
Indicado para o Supremo por Lula, Toffoli deu uma ideia do que pode ocorrer com o capitão se Deus não corresponder à sua devoção. ''Temos passado por episódios turbulentos”, discursou Toffoli, antes de enumerar as turbulências mais recentes:
“A investigação de políticos, o impeachment de uma presidente da República (Dilma), a cassação de um presidente da Câmara dos Deputados (Cunha) e a prisão de um ex-presidente (Lula). No entanto, olho para o futuro com otimismo, pois todos os impasses foram resolvidos de maneira institucional e com respeito às leis brasileiras.”
Quem ouviu Toffoli pode ter caído na tentação de fazer uma leitura menos otimista dos fatos. Se eles comprovaram alguma coisa foi o seguinte: a democracia brasileira, que a Constituição de 1988 consolidou, tornou-se um regime que saiu pelo ladrão. Apodrecido, o sistema político revelou-se incapaz de se auto-depurar. A lama exposta pelo rodo da Lava Jato estimulou o eleitorado a chutar o balde de onde saiu Bolsonaro.
Encerrada a solenidade no Congresso, Bolsonaro foi para o compromisso seguinte: um encontro com o ministro da Defesa, general Silva e Luna, seu companheiro de armas. Aos repórteres que estranharam a coincidência, o capitão respondeu: “Os militares terão um papel importante no governo.” Com tantos políticos civis em estado penoso, os militares voltaram à moda 33 anos depois de terem caído em descrédito.
Retorne-se, por oportuno, à pergunta do primeiro parágrafo: nesses tempos extraordinários, onde estão os líderes extraordinários? Na era do poder pulverizado, o grande líder, ou o suposto grande líder, já não existe. Faltam líderes tanto quanto sobram incertezas.
O poder do Estado, hoje, é partilhado com empresários, movimentos sociais, igrejas e outros focos de influência paraestatal. Desde 2013, o principal foco de poder é o asfalto. No limite, o grande líder é você.
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