sexta-feira, 25 de junho de 2021

Pensamento do Dia


 

De luto contra Bolsonaro

No dia 16 de agosto de 1992, um domingo, o Brasil saiu de preto às ruas para mostrar que tinha vergonha na cara. Dias antes, o presidente Fernando Collor, já carimbado por denúncias de corrupção, conclamara o “povo” a desfilar de verde-amarelo para defendê-lo. E por que não? Afinal, fora eleito com 35 milhões de votos, uma enormidade, e ainda se achava capaz de levar o país no grito. Em troca, o povo silenciou-o com suas roupas e bandeiras pretas em todas as cidades. Menos de dois meses depois, Collor deixou de existir.



Jair Bolsonaro é 505 mil vezes pior do que Collor. A palavra genocida, que só em casos excepcionais saía dos dicionários contra alguém, tornou-se seu sinônimo. E de uso tão corriqueiro que se arrisca a ficar insuficiente para definir o homem que, não só deixou que centenas de milhares morressem da Covid, como, sabe-se agora, desejou essas mortes —e debocha de quem as chora.

O irônico é que Bolsonaro, que sempre quis o Brasil exposto ao vírus, beneficia-se do fato de as pessoas mais conscientes, por temerem as aglomerações, não saírem às ruas contra ele. Mas isso está mudando. A repulsa começa a lhes dar coragem, como as duas recentes manifestações mostraram. É verdade que, por enquanto, estas ainda estão longe de refletir a realidade —sei de muitas pessoas que não foram a elas por serem distantes de suas casas.

Uma coisa é ter de atravessar, a pé ou de condução, os muitos bairros que levam a uma manifestação. Mas, e se todos apenas saírem de preto num dia marcado, como em 1992, para caminhar pelos seus próprios quarteirões, de máscara e a uma distância segura, entre os amigos e conhecidos? Famílias inteiras poderão fazer isso. Um Brasil de luto dirá melhor o que é viver sob Bolsonaro.

Mesmo porque o luto —o nosso ou o de alguém que amamos— já está hoje em cada rua, prédio ou apartamento, implorando para gritar.

No Brasil, índio não é gente

Índio não é gente. Sim, é isso mesmo que você leu: índio não é gente.


Não se faça de rogado nem abuse de sua própria ingenuidade. Se você olhar com o mínimo de atenção para o nosso país, concluirá a mesma coisa: no Brasil, índio não é gente.

Infelizmente, o que temos visto nos últimos meses é um governo que insiste em destituir de humanidade e de direitos tudo o que ele considera ser "coisa de índio". Uma postura política tão antiga quanto a história brasileira. Mas que, no cenário atual, ganha requintes de crueldade. Afinal de contas, estamos convivendo com um Estado que se aproveita das crises geradas pela pandemia de covid para fazer passar a boiada, ou então para beneficiar as madeireiras que destroem ilegalmente a Floresta Amazônica. E que não pretende parar por aí. Foi aprovado na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara e logo deve ser votado em plenário o Projeto de Lei (PL) 490/2007, que tem um objetivo muito claro: dificultar a demarcação das terras indígenas.

Em linhas gerais, o projeto propõe que as terras futuramente demarcadas ou em processo de demarcação tenham que ter presença indígena comprovada em 5 de outubro de 1988, quando foi promulgada a Constituição Federal que continua vigendo no Brasil. A proposta também pretende proibir a ampliação de terras que já foram demarcadas, além de flexibilizar o contato com povos isolados. Medidas amplamente combatidas pelos povos indígenas, que durante décadas (séculos, a bem dizer) lutaram para ter reconhecido seu direito à terra, o que aconteceu, com uma série de restrições, do chamado Estatuto do Índio (Lei 6001/73), do Decreto nº 1775/96 e da Constituição Federal de 1988, que determinam as modalidades das Terras Indígenas (TIs) e suas formas de demarcação. Ou seja: o PL 490 vai contra a Constituição brasileira, reforçando o que pensam muitos brasileiros: índio não é gente.

O Brasil é um país de extensão continental. Temos mais de 8,5 milhões de quilômetros quadrados, o que nos coloca em quinto lugar no ranking dos maiores países do mundo, ficando atrás apenas de Rússia, Canadá, China e Estados Unidos. Em meio a esse oceano de terras, pouco mais de 10% delas estão destinadas aos indígenas. Para aqueles que são afeitos a números e estatísticas, esse percentual pode parecer muito alto, já que as populações autodeclaradas indígenas somam aproximadamente 1 milhão de pessoas, o que corresponde a 0,5% da população brasileira.

Todavia, se observarmos com cuidado a localização das Terras Indígenas, iremos averiguar que elas se concentram nos estados do Norte do país, mais especificamente nos estados do Pará e do Amazonas. Isso significa dizer que boa parte daquilo que consideramos Floresta Amazônica são terras indígenas. Uma constatação que pode parecer profundamente perigosa. Aqueles que acreditam que índio não é gente defenderão que esse "punhado de índios" não precisam de tanta terra e que esse território deveria ser convertido para o "desenvolvimento do país" – uma forma mais rebuscada de dizer que essas terras deveriam se transformar em pasto, ou em plantação de soja, no modelo agroexportador e latifundiário brasileiro.

Mas há algo que essas pessoas que defendem que índio não é gente não entendem: índio não é gente pelo simples fato de que "o índio" não existe. O que temos são centenas de sociedades indígenas (com línguas e costumes próprios), marcadas por uma história de profunda violência e extermínio e que, uma vez mais, estão lutando para que seus direitos sejam minimamente respeitados. E não apenas seus direitos, mas também sua forma de ser e estar no mundo. Maneiras de encarar a humanidade e o planeta que fazem com que a maior parte das terras desses indígenas sejam, justamente, florestas.

Se estivéssemos realmente atentos e preocupados com tudo o que acontece à nossa volta – inclusive às possíveis razões dessa pandemia que ainda nos assola – faríamos da luta contra a PL 409 uma causa brasileira e, quiçá, mundial. Não restam dúvidas de que nosso modelo de desenvolvimento é profundamente destrutivo, colocando em risco a própria existência da humanidade. Mas existem alternativas. Podemos e devemos aprender com esses brasileiros que ainda são erroneamente chamados de índios.
 Ynaê Lopes dos Santos, professora de História das Américas na UFF

Congresso decide extinguir a Amazônia

Não é mais um entre tantos ataques nos últimos anos. É o ataque fatal. Enquanto a imprensa e as redes sociais repercutiam a saída do ministro contra o meio ambiente, Ricardo Salles, a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania da Câmara, a mais importante do Congresso, aprovava por 40 votos a 21 o Projeto de Lei 490/2007. O projeto, como hoje está apresentado, é o maior ataque à floresta amazônica e aos povos originários articulado pelo Governo Jair Bolsonaro e pelos parlamentares ligados ao bolsonarismo ou articulados com ele, caso dos deputados do Centrão. Se o projeto for aprovado pelo Congresso e virar lei, a floresta chegará ao ponto de não retorno que, como o nome já diz, é irreversível.


A saída de Salles é uma vitória para quem quer a floresta em pé, mas Salles era apenas um estafeta de luxo de Bolsonaro e o homem que fazia o serviço sujo para a ministra Tereza Cristina, da Agricultura, para que ela possa posar de agronegócio “moderno”. Uma versão do clichê “good cop/bad cop” dos filmes de Hollywood. Salles sai, mas a “musa do veneno” segue firme como um poste. Ela e tudo o que representa estão causando danos ao meio ambiente muito antes do Governo Bolsonaro e possivelmente seguirão muito além dele.

O ataque à Amazônia e a seus povos é articulado. A aprovação do projeto de lei aconteceu no mesmo dia em que Salles se despediu formalmente do Governo no Diário Oficial. É mais importante, mas ficou na linha de baixo do noticiário ou nem apareceu. O PL 490 é a maior ofensiva contra a Amazônia e seus povos, uma ofensiva que não se iniciou com Bolsonaro nem com os parlamentares ligados a ele, mas só chega a este desfecho porque é Bolsonaro que ocupa o poder. Como a maior floresta tropical do mundo é a grande reguladora do clima, o que acontece neste momento no Congresso brasileiro ameaça o planeta. Em 2020, a Amazônia sofreu o maior desmatamento dos últimos 12 anos: 1.085.100 hectares desapareceram, segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais. Nos dois primeiros anos do Governo Bolsonaro, o desmatamento da floresta aumentou quase 48% nas áreas protegidas da Amazônia, segundo levantamento do Instituto Socioambiental. Cientistas do clima como Carlos Nobre têm alertado repetidamente que a Amazônia está cada vez mais perto do ponto de não retorno. Recente pesquisa internacional apontou que a floresta, maior sumidouro terrestre de carbono, já começa a emitir mais carbono do que retém. Isso significa que a Amazônia começa a deixar de ser solução para se tornar um problema.

Se a Amazônia deixar de ser o que é ―uma grande reguladora do clima― será muito difícil, talvez impossível, controlar o superaquecimento global, afetando radicalmente o futuro da espécie humana e da maioria das outras. É apenas por esta razão que o investimento internacional no Brasil está despencando: nem o mais convicto capitalista quer ser identificado com o colapso da vida na Terra.

Hoje, só gente muito estúpida e muito sem escrúpulos ataca a Amazônia. Infelizmente para o Brasil ― e também para o mundo ― um dos humanos mais brutais e ignorantes do planeta é presidente do Brasil, em cujo território está 60% da maior floresta tropical, e infelizmente para o Brasil ― e também para o mundo ― algumas das pessoas mais inescrupulosas e burras do planeta estão no Congresso brasileiro. Faltam palavras para nomear humanos capazes de colocar sua própria espécie em risco. Vamos precisar encontrá-las.

É neste ponto que estamos hoje ― agora. O PL 490 é um ataque fatal, desencadeado numa região já extremamente fragilizada por toda a boiada que Ricardo Salles passou a mando de Bolsonaro, na forma de enfraquecimento da fiscalização, estímulo à invasão de terras públicas, inclusive as formalmente protegidas por lei, e incentivo aos depredadores ― grileiros, madeireiros e garimpeiros que formam a base de apoio de Bolsonaro na Amazônia. Para fechar a lista, é fundamental mencionar ainda o ataque aos povos originários, a recusa em demarcar suas terras como determina a Constituição e, finalmente, ter deixado as terras indígenas abertas para a entrada da covid-19, processo já denunciado como genocídio. O PL 490, este nome burocrático, é um projeto de extermínio que atinge a população planetária. Há um consenso solidamente respaldado por fatos, pesquisas e estatísticas de que as áreas mais preservadas da Amazônia são as terras indígenas, o que já começa a mudar em algumas regiões devido ao aumento da ofensiva contra estes povos. A resistência dos indígenas contra sua própria extinção manteve a floresta em pé até hoje. E a demarcação de suas terras ancestrais, determinadas pela Constituição de 1988, foi a principal responsável por garantir a sobrevivência da floresta. No entorno das terras indígenas e das áreas de conservação, a boiada já passou.

Estas são as razões pelas quais o agronegócio predatório, no Congresso representado pela Frente Parlamentar Agropecuária, popularmente conhecida como Bancada Ruralista, investe há muitos anos contra os povos originários e contra a Constituição, ao tentar “reformá-la” naqueles artigos que protegem a floresta e seus povos. No momento em que o direito dos indígenas a suas terras ancestrais for eliminado ou fortemente solapado, como propõe o projeto de lei, acabam as melhores chances de resistência e o genocídio iniciado há 500 anos pode finalmente ser completado. A boiada passa inteira e nós todos, inclusive os autores do crime, ficaremos embaixo dos cascos porque a floresta vai virar outra coisa. E a coisa que vira não vai regular o clima.

É duro, bem duro explicar para gente paga com dinheiro público ― e muito bem paga ― que seria prudente não tentar exterminar a espécie. Mas é nesta situação que estamos: sugerindo a Vossas Excelências que suspendam por algumas horas seu fanatismo e sua ganância e estudem pelo menos um pouco. Solicitando gentilmente a suas excelentíssimas que, por favor, não atuem para deletar os humanos do planeta. O problema é que, como a ganância os estimula a manter o cérebro livre da influência dos neurônios, preferem repetir que o colapso climático é um “complô marxista”, como fazia o homem que arruinou a diplomacia brasileira. Senhoras Bia Kicis (PSL) e Carla Zambelli (PSL) e todos os senhores ao seu redor, percebam que até as amebas têm instinto de sobrevivência.

O PL 490 é de autoria de um deputado ruralista já falecido e tramita no Congresso desde 2007. A proposta junta pelo menos outros 13 projetos ou outras 13 maldades contra os povos originários, alterando o Estatuto do Índio e atualizando o texto da PEC 215, uma das maiores ameaças aos direitos indígenas já produzidas pelo Congresso. Entre os principais pontos estão os seguintes:

1) “marco temporal”: esta tese é o maior ataque aos povos indígenas desde a redemocratização do Brasil. A Constituição de 1988 estipulou que todas as terras ancestrais dos povos originários deveriam ser demarcadas num período de cinco anos, o que, como sabemos, não aconteceu. Não se trata, é importante compreender isso muito bem, de “dar” terras aos indígenas, mas sim de reconhecer o direito ancestral dos indígenas a viver no território ao qual pertencem. É nada mais do que obrigação.

O direito dos indígenas é óbvio e pré-existente, a Constituição apenas estipula que, por ser óbvio e pré-existente, é obrigação do Estado fazer a demarcação das terras. Assim, todas as terras que ainda não foram demarcadas apontam uma falha do Estado perante os indígenas. O “marco temporal”, por sua vez, determina que aqueles povos que não estavam em suas terras ancestrais em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição, perderam o direito de ocupar suas terras ancestrais. Acontece que aqueles que não estavam, só não estavam porque tinham sido expulsos para não serem mortos.

É mais ou menos o seguinte, para que seja bem entendido: você mora numa casa que antes de ser sua foi do seu pai, do seu avô, do seu bisavô, do seu tetravô, do seu tataravô etc. Aí um bando fortemente armado invade a sua casa e você precisa fugir dela com a família para não morrer. Mais tarde, enquanto você luta pela vida e por justiça, a Câmara de Deputados decide que, porque você não estava em casa naquela ocasião, perdeu o direito à ela. Assim, como se você tivesse dado uma saída pra tomar um café na casa do vizinho por livre e espontânea vontade. É de uma maldade e de uma cara de pau inacreditáveis. Mas é com o marco temporal que a banda podre do Congresso brasileiro quer exterminar o direito ancestral de centenas de povos que vivem em suas terras há milênios.

2) “flexibilização” do acesso aos isolados: cerca de 100 povos indígenas vivem no Brasil até hoje sem contato com nenhum outro povo ou com contato restrito a outros povos indígenas. Estes são povos que não querem ter contato com brancos e o respeito à sua escolha deve ser absoluto. A grosso modo, eles querem apenas viver em paz no seu canto e, para isso, preferem ficar longe dos brancos e, com frequência, também de outros povos indígenas.

O PL 490 preparou uma armadilha para eles, assim redigida: “no caso de indígenas isolados, cabe ao Estado e à sociedade civil o absoluto respeito a suas liberdades e meios tradicionais de vida, devendo ser ao máximo evitado o contato, salvo para prestar auxílio médico ou para intermediar ação estatal de utilidade pública”.

A casca de banana é a expressão “utilidade pública”. Caberá ao Estado, ao governo e ao governante da ocasião determinar o que é “utilidade pública”. É fácil imaginar que qualquer desculpa furada servirá para invadir o território dos isolados. E por quê? Porque os depredadores da Amazônia, base de apoio de Bolsonaro, quer acesso também a suas terras.

3) O projeto de lei elimina ainda a consulta livre, prévia e informada às comunidades afetadas ―e permite a implantação de hidrelétricas, mineração, estradas e ferrovias, entre outros empreendimentos, desde que exista “relevante interesse público da União”.

É fácil perceber que, se aprovado, o PL 490 sequestra totalmente os direitos dos indígenas e libera legalmente a floresta Amazônia e outros biomas para a exploração predatória. Se hoje, quando os direitos constitucionais dos povos originários são pelo menos formalmente respeitados e não há permissão para garimpo e outras explorações predatórias em suas terras a Amazônia teve mais de um milhão de hectares desmatados só no ano passado, imagina o que acontece em um ano de farra total e legalmente autorizada. Com o garimpo proibido, apenas na terra indígena Yanomami há cerca de 20.000 garimpeiros devastando a floresta, parte deles sob o comando do Primeiro Comando da Capital (PCC), uma das maiores facções do crime organizado do Brasil. Para qualquer pessoa com mais de dois neurônios e um mínimo instinto de preservação e amor aos próprios filhos (ou sobrinhos), a intenção do projeto de lei é autoexplicativa e a magnitude do impacto é ridiculamente óbvia.

Mas aí está. Se arriscando a ser contaminados e morrer de covid-19, centenas de indígenas de diferentes povos protestaram em Brasília e foram recebidos com bombas de gás lacrimogêneo. A única deputada indígena do parlamento, Joênia Wapichana (Rede), foi interrompida e constantemente impedida de falar pela presidente da comissão, a bolsonarista Bia Kicis (PSL). A sessão de votação, na quarta-feira (23/6), foi um show de horrores, um espetáculo de estupidez e um festival de racismo explícito. Vergonha não dá a dimensão.

As terras indígenas pertencem à União, mas são de usufruto permanente e exclusivo dos povos originários. Quando o Congresso pretende rasgar a Constituição, está atingindo os direitos de todas as brasileiras e de todos os brasileiros. O objetivo é tirar estas terras de domínio público, do bem comum, e lançá-las nas mãos dos especuladores, para lucros privados. Este enredo é bem conhecido. Desta vez, como a Amazônia será fortemente atingida, isto significa que todo o enfrentamento do colapso climático e da sexta extinção em massa de espécies será comprometido, o que torna o projeto de lei um tema de interesse da comunidade global. A catástrofe que ele desenha é planetária ―e não há nenhum exagero nesta afirmação.

Ser obrigado a se livrar de Ricardo Salles, talvez seu maior amor no ministério, faz Bolsonaro sofrer. É uma enorme derrota. Salles o serviu fielmente e deixou um legado precioso para Bolsonaro, que se elegeu prometendo abrir a Amazônia para a exploração predatória e cumpriu à risca a promessa de campanha. Aqui, a folha corrida de serviços prestados por Salles, elencada pelo Observatório do Clima: “dois anos de desmatamento em alta, dois recordes sucessivos de queimadas na Amazônia, 26% do Pantanal carbonizado, omissão diante do maior derramamento de óleo da história do Brasil, emissões de carbono em alta e a imagem internacional do país na lama. Para não dizer que só destruiu tudo, Salles acrescentou uma expressão ao léxico do português brasileiro: ‘boiada’, como sinônimo de destruição ambiental”.

Ricardo Salles é também o último a cair do trio do pavor que Bolsonaro mantinha próximo ao coração, caso tenha um. Primeiro Bolsonaro foi obrigado a se livrar do antiministro da Educação, Abraham Weintraub, depois do antidiplomata Ernesto Araújo e agora do antiministro do meio ambiente. Nenhum outro expoente do ministério ecoava tão perfeitamente as sanhas do chefe como eles. Salles só caiu pela pressão internacional e também interna: ele é investigado por envolvimento com uma operação criminosa internacional de madeira da Amazônia.

Salles só foi formalmente defenestrado porque o próprio Bolsonaro está muito acuado com as evidências de sua responsabilidade no mais de meio milhões de mortos por covid-19. Salles deixou o Governo pela porta dos fundos no mesmo dia em que as investigações de compras suspeitas da vacina Covaxin chegaram ao nome de Bolsonaro na CPI da Pandemia. Se é isso o que já sabemos, podemos imaginar o quanto não sabemos ainda para que Bolsonaro, com seu perfil de cachorro louco, tenha sido convencido a se livrar de Salles. E só se convenceu, é claro, porque a política de predação da Amazônia e de todos os biomas e seus povos vai continuar.

Bolsonaro nunca esteve tão acuado. E está sentindo. Quando Bolsonaro sente, ele faz os outros sangrarem. Já alertei neste espaço ―e o faço mais uma vez― que cada dia a mais de Bolsonaro no poder é um dia a mais de horrores, especialmente onde é mais difícil de a imprensa acompanhar, como na floresta profunda. Assim como o Congresso corre para aprovar maldades, a base de Bolsonaro na Amazônia invade, saqueia, incendeia e mata. O impeachment precisa acontecer ou o Brasil vai desacontecer da maneira mais trágica.

Quem não se importa com a floresta e seus povos, com os direitos humanos ou da natureza, deveria pelo menos se importar com o fato de que, se a Amazônia acabar ―e está quase lá―, o Brasil perderá seu maior valor também como nação. Hoje é a Amazônia, pelo seu papel de reguladora do clima num planeta em transe climático, que dá relevância internacional ao Brasil. Sem ela, o restante do mundo pouco se importará com o que acontece no Brasil e estaremos sozinhos às voltas com nossa própria extinção.

Bolsonaro e o abismo

Se Jair Bolsonaro acha que está sendo cercado e cerceado, e se sente ameaçado, está mesmo. Do ponto de vista “estrutural” perdeu poder para o Legislativo (além de virar refém do Centrão) e foi manietado pelo Judiciário. Do ponto de vista das circunstâncias do cotidiano, está acuado pela evidência de que as ruas não são apenas dele. A CPI da pandemia mantém constante pressão política, gerando desgaste que o foco nos contratos da vacina indiana aumentaram perigosamente.

A questão é saber como Bolsonaro pretende sair de uma situação que ele mesmo ajudou a criar. Até aqui ele tem dobrado a aposta em reiterar crenças absurdas (como a do tratamento precoce), falsidades (como o “documento” do TCU sobre exagero no número de mortos) e seu comportamento habitual de desprezo por instituições (como se aconselhar com charlatães e puxa sacos em detrimento das instâncias técnicas do Ministério da Saúde) e ataques à imprensa.

Note-se, porém, que o horizonte de tempo no qual ele opera – o do calendário das eleições de 22 – oferece a ele dois fatores positivos. A inflação está subindo e corroendo renda e poder de compra, mas ao mesmo tempo trouxe uma (perversa) folga para gastar em auxílio imediato e até criar um programa social para chamar de seu. É verdade que o famoso “feel good factor” em relação à economia está demorando para se fazer presente. Contudo, há unanimidade nas previsões de crescimento mais robusto durante os próximos 18 meses.

Além disso, preso desde tempos coloniais aos ciclos globais de preços de commodities, o Brasil está sendo fortemente beneficiado por mais um deles, que desta vez atinge tudo o que o país exporta. O significado político eleitoral disso é menos nervosismo por parte dos agentes econômicos, inclusive em relação às questões fiscais nesse mesmo prazo do calendário eleitoral. Óbvio que nada de estrutural foi resolvido e muito menos se tratou da agenda da produtividade, a única que tiraria o país da estagnação de décadas, mas o que importa é só a reeleição.

Ocorre que Bolsonaro não tem paciência, raciocínio estratégico e nem acha que o tempo, eventualmente, possa trabalhar a seu favor – embora demonstre um cínico cálculo político de que a vacinação, que ele tanto atrasou, ajude a sociedade a deixar para trás a tragédia da pandemia. Ao contrário, seu comportamento recente transmite a sensação do indivíduo que se sente de costas para o paredão do rochedo e de frente para o abismo, com os pés escorregando.

A “costura” que ele vem fazendo para enfrentar as instituições que o cercam é corroê-las por dentro e, de fato, ele tem nomeações relevantes para fazer em breve nos tribunais superiores, além da PGR. O problema é averiguar se a “ocupação” interna dessas instâncias será eficaz para contrabalançar a reação desses tribunais (STF e TSE) ao que tem sido, por parte de Bolsonaro, a construção de uma contestação do sistema eleitoral em particular, e da democracia em geral, pois o único resultado que ele parece admitir é sua própria vitória. O TSE é desde já o grande adversário de Bolsonaro, e será presidido a partir de agosto por um ministro do Supremo que detém as informações dos inquéritos sobre fake news e atos antidemocráticos.

Confunde bastante esse permanente confronto entre um presidente que se elegeu e governa como agente “antissistêmico” e, ao mesmo tempo, trabalha por dentro e é contido pelas instituições do sistema. Algumas instituições de grande reputação na análise de risco, como a Eurásia (dirigida sobretudo para o público externo) concluem que esse atrito constante acabou gerando um equilíbrio com “resultados decentes” (incluindo reformas mesmo com pandemia), ou seja, as manchetes parecem mais graves do que a situação de fato.

A mesma análise admite, porém, que serão as eleições do ano que vem o grande “teste crítico” sobre a tese de que a democracia brasileira acabará resistindo à depredação trazida por agentes como Bolsonaro. Essa incerteza afeta mesmo os mais experientes. Um bom exemplo recente: do alto dos seus 90 anos, o político FHC afirma que Bolsonaro é um democrata. O sociólogo Fernando Henrique Cardoso admite na mesma frase, porém, que “a dinâmica dos fatos políticos” pode levar à ruptura democrática.

Resta saber qual é o grau que Bolsonaro tem de atração pelo abismo.