sexta-feira, 25 de junho de 2021

No Brasil, índio não é gente

Índio não é gente. Sim, é isso mesmo que você leu: índio não é gente.


Não se faça de rogado nem abuse de sua própria ingenuidade. Se você olhar com o mínimo de atenção para o nosso país, concluirá a mesma coisa: no Brasil, índio não é gente.

Infelizmente, o que temos visto nos últimos meses é um governo que insiste em destituir de humanidade e de direitos tudo o que ele considera ser "coisa de índio". Uma postura política tão antiga quanto a história brasileira. Mas que, no cenário atual, ganha requintes de crueldade. Afinal de contas, estamos convivendo com um Estado que se aproveita das crises geradas pela pandemia de covid para fazer passar a boiada, ou então para beneficiar as madeireiras que destroem ilegalmente a Floresta Amazônica. E que não pretende parar por aí. Foi aprovado na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara e logo deve ser votado em plenário o Projeto de Lei (PL) 490/2007, que tem um objetivo muito claro: dificultar a demarcação das terras indígenas.

Em linhas gerais, o projeto propõe que as terras futuramente demarcadas ou em processo de demarcação tenham que ter presença indígena comprovada em 5 de outubro de 1988, quando foi promulgada a Constituição Federal que continua vigendo no Brasil. A proposta também pretende proibir a ampliação de terras que já foram demarcadas, além de flexibilizar o contato com povos isolados. Medidas amplamente combatidas pelos povos indígenas, que durante décadas (séculos, a bem dizer) lutaram para ter reconhecido seu direito à terra, o que aconteceu, com uma série de restrições, do chamado Estatuto do Índio (Lei 6001/73), do Decreto nº 1775/96 e da Constituição Federal de 1988, que determinam as modalidades das Terras Indígenas (TIs) e suas formas de demarcação. Ou seja: o PL 490 vai contra a Constituição brasileira, reforçando o que pensam muitos brasileiros: índio não é gente.

O Brasil é um país de extensão continental. Temos mais de 8,5 milhões de quilômetros quadrados, o que nos coloca em quinto lugar no ranking dos maiores países do mundo, ficando atrás apenas de Rússia, Canadá, China e Estados Unidos. Em meio a esse oceano de terras, pouco mais de 10% delas estão destinadas aos indígenas. Para aqueles que são afeitos a números e estatísticas, esse percentual pode parecer muito alto, já que as populações autodeclaradas indígenas somam aproximadamente 1 milhão de pessoas, o que corresponde a 0,5% da população brasileira.

Todavia, se observarmos com cuidado a localização das Terras Indígenas, iremos averiguar que elas se concentram nos estados do Norte do país, mais especificamente nos estados do Pará e do Amazonas. Isso significa dizer que boa parte daquilo que consideramos Floresta Amazônica são terras indígenas. Uma constatação que pode parecer profundamente perigosa. Aqueles que acreditam que índio não é gente defenderão que esse "punhado de índios" não precisam de tanta terra e que esse território deveria ser convertido para o "desenvolvimento do país" – uma forma mais rebuscada de dizer que essas terras deveriam se transformar em pasto, ou em plantação de soja, no modelo agroexportador e latifundiário brasileiro.

Mas há algo que essas pessoas que defendem que índio não é gente não entendem: índio não é gente pelo simples fato de que "o índio" não existe. O que temos são centenas de sociedades indígenas (com línguas e costumes próprios), marcadas por uma história de profunda violência e extermínio e que, uma vez mais, estão lutando para que seus direitos sejam minimamente respeitados. E não apenas seus direitos, mas também sua forma de ser e estar no mundo. Maneiras de encarar a humanidade e o planeta que fazem com que a maior parte das terras desses indígenas sejam, justamente, florestas.

Se estivéssemos realmente atentos e preocupados com tudo o que acontece à nossa volta – inclusive às possíveis razões dessa pandemia que ainda nos assola – faríamos da luta contra a PL 409 uma causa brasileira e, quiçá, mundial. Não restam dúvidas de que nosso modelo de desenvolvimento é profundamente destrutivo, colocando em risco a própria existência da humanidade. Mas existem alternativas. Podemos e devemos aprender com esses brasileiros que ainda são erroneamente chamados de índios.
 Ynaê Lopes dos Santos, professora de História das Américas na UFF

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