quinta-feira, 20 de junho de 2019

Pensamento do Dia


O outono do Executivo-príncipe

Esta semana vimos ruir uma das principais promessas de campanha de Bolsonaro. O governo fez o que pôde. O presidente mobilizou sua base mais fiel, via redes sociais, e lançou mão de um argumento vindo direto do século 18, vinculando a posse de armas à defesa da democracia. Mas não deu.

O governo perdeu, por óbvio, porque não possui uma base orgânica no Congresso. Boa parte dos analistas políticos, muitos com bons argumentos, enxergam isso como um grave problema. Se o governo tivesse cumprido as tarefas do presidencialismo de coalizão, teria aprovado com facilidade o seu decreto das armas. Como não fez o trabalho de casa, deu no que deu.

De minha parte, não vejo isso como grande problema. Acho positivo que o Congresso, sem faca no pescoço ou distribuição de recursos políticos por parte do Executivo, rejeite a flexibilização, via decreto, do Estatuto do Desarmamento.

É irrelevante aqui discutir o mérito da questão. Há quem seja a favor e contra a liberação de armas. A democracia é assim. Acho engraçado quem julga que a democracia só é boa quando suas ideias e seus políticos favoritos ganham o jogo. Não é o meu caso. Ninguém é dono da verdade na democracia, ainda que isso soe como uma ideia terrível para muita gente.

Cansei de escutar que a liberação das armas era mais um exemplo de que nossa democracia estava em risco. Quem me lê sabe que nunca acreditei nessa conversa, e agora temos a resposta: não era o decreto que ameaçava a democracia, mas a democracia que terminou fulminando o decreto. Metabolizou (como diria Marina) mais um item da agenda conservadora (não precisam me lembrar que não se trata do “verdadeiro” conservadorismo), assim como fez com tantos outros, e prosseguirá fazendo.

O mesmo Congresso que dinamitou o decreto das armas aprovou, na outra semana, a suplementação orçamentária requerida pelo governo. Houve concessão de recursos para educação, habitação popular, ciência e tecnologia, e a matéria obteve unanimidade. Talvez tenha ocorrido algum milagre, ou quem sabe apenas um exemplo simples do que tenho chamado de lógica de corresponsabilidade.

Um pouco antes, ainda, o Congresso aprovou a nova lei das agências reguladoras. Bloqueou nomeações políticas, ampliou prazos de quarentena, em um movimento na direção oposta aos interesses do varejo político, representados no próprio parlamento. Outro episódio isolado, como o da aprovação da MP das companhias aéreas, além do avanço da reforma da Previdência? É possível.

Minha hipótese é que vai se cristalizando um novo modus vivendi na relação Executivo-Congresso. O Congresso vem aprovando e recusando matérias com maior autonomia e com base em consensos provisórios. E a democracia não parece estar à beira do abismo por causa disso, ao contrário do que tendemos a achar após algum tempo inalando toxina ideológica e raiva política na bolha digital.

Se você era crítico em relação ao decreto das armas, Escola sem Partido e outros itens da chamada agenda conservadora, dê graças que o governo não dispõe de um rolo compressor no Congresso. Faça um brinde ao fato de que não dispomos mais de um Executivo-príncipe, ao estilo do que nos levou à maior crise de nossa historia recente, em 2015-2016, pela qual ainda pagaremos durante muitos anos.

No mundo imaginário da política, estamos diante de um perigoso risco de plebiscitarismo e erosão democrática. No mundo real, o que vemos é outra coisa: um governo politicamente frágil e de baixo consensodiante de um Congresso avesso à agenda conservadora, ainda que surpreendentemente favorável a temas de modernização econômica. E o mesmo pode-se dizer do STF. Em ambos os casos, não se trata propriamente de uma má notícia.

Antes que alguém diga que o argumento é bom para o atual governo, preste atenção: ele não é. A lógica da corresponsabilidade e o protagonismo parlamentar vêm mais da fragilidade do que da força do atual governo. É um momento de aprendizagem para nossa democracia, e intuo que logo adiante emergirá um novo modelo de coalizão majoritária no Congresso.

O tempo só não é de aprendizagem para aqueles que já sabem de tudo. Felizmente, não é meu caso.
Fernando Schuler

Como o meio digital afeta o cérebro e a leitura

Jovens de 20 anos olham o celular entre 150 e 190 vezes por dia. Nas famílias com acesso a dispositivos digitais, crianças de 3 a 5 anos passam em média quatro horas diárias diante das telas de smartphones, tablets ou computadores. O iPad virou a nova chupeta para acalmá-las. Entre adultos, o tempo médio de atenção à leitura caiu de dez para cinco minutos nos últimos dez anos. Para o pesquisador do Vale do Silício Josh Elman, o efeito viciante das redes sociais, dos games e do entretenimento on-line pode ser comparado ao da nicotina. É usado, diz ele, da mesma forma por empresas de tecnologia e de cigarro: para criar dependência. Mas, enquanto o vínculo entre o fumo e o câncer está comprovado desde pelo menos 1948, as consequências do novo universo digital para a saúde humana ainda são objeto de investigação.

Decifrar como isso acontece e antever as consequências das mudanças para a educação e a sociedade são os temas de "O cérebro no mundo digital", da neurocientista americana Maryanne Wolf, recém-lançado no Brasil.

“O que acontecerá com o desenvolvimento de sua atenção, memória e conhecimento de fundo?”, pergunta ela. Se você precisa ler várias vezes a mesma passagem para entender, se tem dificuldade de lembrar o que leu e de expressar ideias por escrito, se busca apenas palavras-chave e se acostumou a consumir resumos em vez de analisar as informações, se tem evitado análises densas e complexas, se não tem mais paciência para livros longos ou difíceis, se nem consegue mais sentir o prazer de outrora com a leitura — então é bom tomar cuidado. A própria Wolf conta como se chocou ao descobrir que não conseguia mais dedicar o tempo interior necessário a usufruir uma de suas obras literárias preferidas na juventude. O motivo está na contaminação do estilo de leitura digital sobre a atividade cerebral.

Com erudição literária e conhecimento científico, ela expõe seus argumentos em nove cartas dirigidas ao leitor. Nem sempre a linguagem mais próxima alivia a dificuldade do assunto. Sobretudo nas primeiras três cartas, em que ela dá um aula de neurociência e descreve a complexidade da leitura para o cérebro humano. Ao contrário de falar, ler não é uma função para a qual fomos programados geneticamente. Precisa ser aprendida e gravada na memória. Diferentes formas de leitura resultam em mecanismos cerebrais diferentes. O meio digital penaliza um desses mecanismos: a cognição lenta, representada por pensamento crítico, reflexão, imaginação e empatia, tudo aquilo que Wolf chama de “leitura profunda”. “A qualidade de nossa atenção — base de nosso pensamento — vai ou não mudar inexoravelmente à medida que deixamos para trás uma cultura baseada no impresso e passamos para uma cultura digital?”, pergunta.

Apesar do tom pessimista da indagação, ela não incorre na armadilha recorrente da distopia digital. Reconhece o impacto da perda para o aprendizado, o diálogo, a divergência civilizada e a democracia. Mas sua resposta, exposta ao longo das demais cartas, é otimista. Ela acredita que o cérebro humano tem capacidade para conciliar os dois tipos de leitura, afirma que ambas apresentam vantagens específicas e defende que a educação de crianças e adolescentes ofereça o “duplo letramento”. “O desenvolvimento intelectual de nossas crianças não pode vir de um sistema binário de comunicação, em que um dos meios seja intrinsecamente melhor que o outro”, afirma. “Estou convencida de que, com mais sabedoria do que demonstramos até o momento, podemos combinar ciência e tecnologia para discernir o que é melhor, e quanto, para cada criança, do nascimento à adolescência, usando todas as mídias, dispositivos e ferramentas digitais.” O antídoto para o frenesi digital está, segundo ela, na expressão clássica atribuída ao imperador Augusto: “Festina lente” — “Apressa-te devagar”.
Helio Gurovitz 

Não há vitória absoluta

A derrota que o Senado impôs a uma das pautas caras para o presidente Jair Bolsonaro – a derrubada dos decretos que flexibilizam o porte e a posse de armas no Brasil – é apenas o fato mais recente no claro esforço das casas legislativas de aumentar as próprias prerrogativas reduzindo o poder da caneta do chefe do Executivo.

O STF também cerceou a autoridade do Executivo em vários exemplos recentes (privatizações, extinção de conselhos), mas a ação do Legislativo tem um sentido político evidente ao diminuir a capacidade do Executivo em alocar recursos por meio do Orçamento e de limitar o uso de medidas provisórias.

Faz parte desse movimento a tramitação de reformas como a da Previdência e, logo depois dela (promete o presidente da Câmara dos Deputados), a tributária, numa espécie de “plano econômico”. A questão é: até que ponto o Legislativo consegue chegar?


O presidente brasileiro preserva um poder imenso de ditar agendas políticas, mas é evidente a rapidez com que diminui sua capacidade de se afirmar sem uma base sólida no Congresso. Bolsonaro pode achar (como indica que está achando) que é capaz de levar adiante seus planos mesmo à frente de um governo minoritário. No caso da reforma da Previdência, porém, é bom lembrar que os presidentes das casas legislativas abraçaram a agenda reformista, e não foi o caso na questão das armas.

A dupla Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre, como condutores dessa “coalizão reformista” (em se tratando da economia), enfrenta um limitador básico. É o fato de que nenhum dos dois distribui cargos no governo ou pode prometer a parlamentares vitória nas próximas eleições (“ao contrário”, admite Maia, reconhecendo danos eleitorais). Controlam pautas de votações, coordenam a atuação de líderes de vários partidos (atendendo ou não aos desejos do Executivo), mas “de facto” estão distantes de estabelecer uma democracia parlamentar.

Maia e Alcolumbre prometem iniciar logo após a reforma da Previdência uma reforma tributária alinhada a demandas urgentes dos principais setores da economia e de categorias profissionais. Ambos são hoje personagens tão procurados por empresários e líderes de segmentos da economia como o superministro Paulo Guedes. Ocorre que a dupla do Legislativo não tem meios para impor disciplina em votações, o que sugere graves dificuldades na aprovação de assuntos complexos, e que demandam a participação direta de governadores, como é o caso da sonhada reforma tributária.

A “rota” política (em sentido amplo) do Legislativo neste momento se beneficia paradoxalmente da volatilidade do clima político. É a primeira vez em muito tempo que a sensação do noticiário não é alguma denúncia contra a “classe política”. O alvo da vez são os principais expoentes da Lava Jato. Um raro caso de “blindagem” do Legislativo num escândalo político (óbvio que isso pode mudar rápido).

É notório que os suspeitos de sempre no mundo político, e dentro do Legislativo, se alegram visivelmente com as dificuldades políticas agora no colo do ministro da Justiça, Sérgio Moro – a quem muitos pretendem dar um troco. Em outras palavras, misturam-se os ratos que pretendem escapar da campanha anticorrupção com uma parte significativa do Congresso (que tem a mesma legitimidade que o presidente) que caminha para tentar tirar o País do tipo de regime por alguns chamado de democracia hiperpresidencial.

Maia e Alcolumbre estão querendo dizer que Executivo e Legislativo só conseguirão governar juntos. “Não há vitória absoluta”, diz Maia. Não parecem ter combinado tudo isso com Bolsonaro. Para quem, ao que tudo indica, a ficha ainda não caiu.

Paisagem brasileira

Sé de Sobral (CE), José Nolasco Albano

Redes sociais: quando compartilhar é humilhar

O youtuber que há dois anos deu um biscoito recheado de pasta de dente a um mendigo em Barcelona, gravou a cena e a publicou na Internet saberia que estava cometendo um crime contra a integridade moral se tivesse intuído que o mundo virtual é regido pelos mesmos direitos e obrigações que o entorno físico. Humilhou uma pessoa vulnerável. E para agravar a situação o divulgou maciçamente através de seu próprio canal do YouTube. Há duas semanas, foi condenado a 15 meses de prisão. As redes sociais não são uma simples e inocente conversa de bar. Têm um eco infinito e, frequentemente, distorcem e corroem a convivência.

O caso do youtuber é uma amostra da desumanização que se instalou nas redes sociais. Os direitos fundamentais das pessoas são atacados, os valores sociais são menosprezados, a intimidade é pisoteada. Como diz o coordenador do curso de pós-graduação de Marketing Digital de La Salle, Ricard Castellet, as redes sociais são uma ferramenta com dois polos: “Amplificaram os fatos puníveis, alguns muito tristes, mas também desenvolveram fluxos de comunicação e de conhecimento, contribuindo para que circulem e se democratizem como nunca. O problema está no uso que fazemos. São fantásticas, mas, se receberem um mal-uso, são plataformas perigosíssimas à convivência”.


As redes sociais nasceram antes do que pensamos. O advogado norte-americano Andrew Weinreich é visto como o criador da primeira em meados dos anos noventa do século passado. Ele a batizou de Six Degrees (Seis Graus), evocando a hipótese de que qualquer pessoa pode estar conectada a outra através de uma cadeia de conhecidos com no máximo seis ligações. Weinreich vendeu sua empresa em 1999, pouco antes da queda das companhias pontocom e apenas cinco anos antes de que Mark Zuckerberg e seus sócios fundassem o Facebook, a mais popular das redes sociais contemporâneas, com mais de 2 bilhões de usuários.

Para grande pare da legião de adeptos, usar bem essas plataformas é uma matéria a ser cumprida. Publicar vídeos que incitam o ódio, cortejam a xenofobia e fomentam a violência e o sexismo não são somente reprováveis ética e socialmente, como podem ter consequências penais. Muitos usuários não são plenamente conscientes. “É preciso se vacinar contra a ingenuidade”, diz o especialista em Direito Digital Ricardo Oliva, que pede o reforço da educação digital nos colégios para evitar que sejam cometidas humilhações, vexames e atentados contra a intimidade com um clique.

Em abril, a Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa aprovou um relatório coordenado pelo ex-senador espanhol socialista José Cepeda que fazia uma pergunta inquietante: as redes são conexões sociais ou ameaças aos direitos humanos? O documento questionava o modelo de negócio da Internet, baseado em reunir dados pessoais. É esse o preço a ser pago pelo acesso aos serviços? Como evitar o controle sub-reptício?

Em teoria são inócuas, mas podem mudar e mudar até se tornarem máquinas perversas. O cientista britânico Tim Berners-Lee aproveitou o 30° aniversário da World Wide Web para refletir sobre os acertos e erros derivados de sua invenção. “Ainda que a web tenha criado oportunidades, dando voz a grupos marginalizados e tornando nossas vidas mais fáceis, também criou oportunidades para os vigaristas, deu voz aos que proclamam o ódio e tornou mais fácil cometer toda a espécie de crimes”.

A funcionária da fábrica Iveco localizada no distrito madrilenho de San Blas-Canillejas que se suicidou no final de maio após a divulgação maciça de um vídeo sexual gravado há cinco anos é um exemplo paradigmático dos efeitos ominosos das plataformas digitais. A empregada da empresa, de 32 anos e mãe de duas crianças, de 4 anos e 9 meses respectivamente, não pôde suportar o assédio que recebeu no trabalho, os cochichos de seus colegas e a pressão ambiental pelo vídeo se tornar viral através de grupos de WhatsApp. A investigação judicial determinará as responsabilidades por essa trágica morte. Mas a lei é muito clara. “Ver um vídeo com essas características é uma questão moral, exibi-lo é uma questão legal”, diz a especialista em comunicação digital e professora da Universitat Oberta da Catalunya Raquel Herrera, que vê nesse terrível acontecimento uma evidente carga machista. A fanfarrice, a cultura da exibição, é masculina. “Em muitas situações ainda se considera que um homem é um campeão se tem muitas conquistas, mas em uma mulher parece um crime. Há muita gente que procurou o vídeo por pura morbidez. É fácil um conteúdo mórbido se tornar viral. Se as pessoas soubessem que divulgar esse tipo de imagem é crime, não o fariam”, diz Herrera.

O Código Penal espanhol deixa pouca margem à dúvida. O artigo 197 é extremamente claro quando diz que será punido com uma pena de 3 meses a 1 ano de prisão e multa de 6 a 12 meses aquele que sem autorização da pessoa afetada “difundir, revelar e ceder a terceiros” imagens e gravações audiovisuais privadas, até mesmo no caso de terem sido obtidas com seu consentimento. Parece óbvio que no terrível caso da Iveco a lei foi desrespeitada e a intimidade pessoal foi gravemente afetada. O dano foi de tal dimensão que levou a funcionária a tomar uma decisão drástica. O advogado Oliva considera que as pessoas que contribuíram à distribuição do vídeo deveriam ser investigadas por crime de revelação de segredo e ataque à intimidade.

Até a reforma do Código Penal de 2015, só se punia a difusão de fotografias e vídeos se fossem feitos sem a autorização do interessado e fossem imagens roubadas. O detonador do endurecimento tem nome próprio: Olvido Hormigos. Em 2012 era vereadora da cidade de Los Yébenes (Espanha). Denunciou seu ex-companheiro por divulgar um vídeo erótico que circulou pela Internet rapidamente. Mas não ocorreu crime contra a intimidade porque não foi roubado e gravado ilicitamente. O Código Penal daquela época dizia que o crime de revelação e divulgação de segredos só existiria se as imagens divulgadas fossem obtidas ilicitamente. Não era o caso de Hormigos.

Nas redes sociais as condutas privadas confluem com as sociais. “Há uma falsa aparência de privacidade", diz o professor da Universidade Complutense Arturo Gómez Quijano, que observa como a lei da simplicidade domina na Internet. “O julgamento é imediato, eliminando matizes e profundidade. Os veículos de comunicação precisaram de informação sobre o que aconteceu na tragédia da Iveco antes dos juízes, e as redes, antes da imprensa. Transformamos essas plataformas em um fim, quando na verdade são um meio”. No mesmo instante em que o vídeo cai na Internet e no Facebook perde-se seu controle. Estoura. Sua difusão pode adquirir uma dimensão global.

O desconhecimento por parte dos usuários é monumental. “Temos um problema de pedagogia e educação das redes”, diz Castellet. “Estamos diante de uma revolução da comunicação. Uma mudança radical. Em 10 anos usos e costumes se modificaram. A sociedade está aprendendo a utilizar essas plataformas e deveria existir formação obrigatória no colégio para ensinar as possibilidades negativas das redes e seus perigos. É preciso educar na escola e na família para que o uso seja coerente e racional”.

Utilizar incorretamente essas plataformas é nocivo à convivência. De modo que ganhou importância uma corrente de opinião que pede maior regulamentação da Internet e das redes sociais. “Se esses canais são utilizados para destruir a reputação de uma pessoa, é preciso ter normas”, diz Castellet. Para evitar situações dramáticas, não são poucos os que pretendem ativar no ecossistema de trabalho manuais de boas práticas. Essas barreiras contra incêndios seriam, de acordo com Raquel Herrera, uma garantia dos direitos e deveres das empresas para proteger a reputação de seus funcionários.

As mudanças tecnológicas avançam a um ritmo vertiginoso e a sociedade não os assimila com a mesma celeridade. Gómez Quijano utiliza uma metáfora: “As pessoas não são capacitadas para dirigir uma Ferrari, e isso gera problema importantes”. As redes sociais são uma ferramenta muito poderosa para que os usuários não tenham formação. “Isso está explodindo em nossas mãos e vamos aprendendo por tentativa e erro”, acrescenta. A dualidade emissor-receptor dos meios tradicionais já não serve. “O receptor antes era passivo, mas agora demos a ele a máquina de responder. A sociedade está presa em um ecossistema hiperconectado, com suas vantagens e inconvenientes. Não temos experiência e conhecimento acumulado. Nas redes sociais se perdeu a sensação de privacidade e intimidade. Medimos muito o quantitativo, mas é preciso educação para hierarquizar e dar importância ao qualitativo. Até agora, a tribo soube educar, mas pela primeira vez na história não está sabendo assumir essa função pedagógica”.

Essa carência, misturada com uma clamorosa ignorância e um ilimitado afã de notoriedade, é um coquetel explosivo que alimenta as redes com produtos tóxicos para ganhar adeptos a qualquer custo. Até mesmo com passatempos macabros. Muitos adolescentes participam de desafios violentos, testes extravagantes e ridículas competições para ampliar seu grupo de seguidores online. Pela web circulam vídeos onde os jovens rivalizam com jogos selvagens. Uma das últimas modas consiste em apertar o pescoço de uma pessoa para provocar o desmaio por asfixia, uma atrocidade que convive na Rede com outros desafios absurdos, como besuntar o corpo com álcool e tocar fogo, ferimentos autoinfligidos e passar de um quarto ao outro pela varanda dos hotéis.

É justamente essa falta de formação e aprendizagem no uso das redes que torna os usuários altamente manipuláveis, de acordo com Gómez Quijano: “Somos previsíveis porque as empresas nos conhecem. Damos nossa intimidade a elas de presente. O Facebook e o WhatsApp são um gigantesco ouvido. Sabem tudo o que dizemos”. Para mitigar esse poder onímodo, o Conselho da Europa dá uma receita: estabelecer fórmulas de cooperação entre as redes sociais e as autoridades públicas como antídoto aos venenos do ciberespaço: a intolerância, a desinformação, a incitação ao ódio, os ataques à privacidade.

Que turista quer ir ao Brasil?

Você sabe quem é o ministro do Turismo? Exato. Normalmente, o nome designado para essa pasta no governo é amplamente desconhecido. A não ser que esteja envolvido num escândalo. Como é o caso do atual ocupante do cargo. Ele é suspeito de ter desviado dinheiro de campanha originalmente destinado a candidatas mulheres.

Que o ministro continue no cargo, apesar de depoimentos incriminatórios, mostra sobretudo uma coisa: como tal posto é considerado desimportante dentro do gabinete ministerial. Caso contrário, interessados já teriam derrubado sua cadeira há muito tempo.

O fato de o ministro do Turismo não ser importante não é novidade, mas é uma das razões pelas quais o turismo no Brasil está completamente subdesenvolvido, tendo em vista o potencial do país. Em todo o mundo, os grandes polos turísticos sofrem com o excesso de visitantes, moradores reclamam das ruas lotadas, do aumento do aluguel e do custo de vida.

Mas, no Brasil, os brasileiros permanecem muitas vezes entre si, mesmo nos destinos turísticos mais famosos. O setor está subdesenvolvido. E este é acima de tudo um drama econômico tendo em vista o potencial natural, social e cultural que o país tem para oferecer como destino. Mas com cerca de 6,5 milhões de visitantes por ano, o Brasil não está nem entre os 30 destinos turísticos mais importantes do mundo – e isso após uma Copa do Mundo de futebol e dos Jogos Olímpicos como uma vitrine para o país.

O Brasil está desperdiçando uma tremenda oportunidade de criar empregos para pessoas que, de outra forma, teriam dificuldade em conseguir trabalho na indústria ou no setor de serviços informais devido à falta de treinamento. A natural hospitalidade e cortesia brasileiras combinadas com treinamento na indústria hoteleira e gastronômica, além de um curso de idiomas em inglês, ofereceriam um enorme potencial de emprego para muitas pessoas.


Mas o país carece de infraestrutura turística. A situação piorou mesmo nos últimos anos, apesar dos eventos esportivos internacionais. Acho que falta ao Brasil uma compreensão básica do que poderia atrair turistas estrangeiros. Porque aquilo que agrada aos brasileiros geralmente não apetece aos estrangeiros – e vice-versa. Um exemplo disso é a publicidade que a autoridade turística (Embratur) vem fazendo no exterior há anos: os tecnocratas de Brasília realmente acreditam que um turista da Europa tomará um caro voo de 12 horas para o Brasil para ver "12 shopping centers para encher suas malas" ou "A magia do Natal”?

No início do ano, o Brasil suspendeu a exigência de visto para turistas dos EUA, Canadá, Japão e Austrália. O abalado ministro anuncia agora com orgulho as estatísticas mensais sobre o aumento do interesse das viagens desses países pelo Brasil. Até o final do mandato do atual governo, em 2022, o ministro planeja quase dobrar o número de turistas para 12 milhões.

Como todos os seus antecessores, é improvável que ele tenha sucesso nisso. É muito possível que o balanço turístico deste governo seja claramente negativo: quem ainda quer ir a parques naturais e fazer ecoturismo no Brasil quando o governo, ao mesmo tempo, mina todos os controles e medidas para a proteção da Amazônia e abre caminho para o lobby agrícola?

Quem quer vir ao Brasil como membro da comunidade LGBT quando os ataques a gays, lésbicas e transexuais aumentam e nada é feito publicamente sobre isso? Quem quer vir a um país com uma taxa de homicídios assustadoramente elevada e as taxas de acidentes mais altas do mundo, onde o governo não apresenta nada melhor do que armar a população e relaxar a impunidade no tráfego rodoviário? Qual artista ainda acha o Brasil interessante no momento em que o Judiciário está cada vez mais vistoriando a arte para ver se ela viola os valores tradicionais da família?
Alexander Busch

O país onde ladrões são cultuados e juízes perseguidos

Que país estranho o Brasil. Aqui, a regra é cultuar o bandido, ainda mais se for de colarinho branco. É um tal de um indulto aqui, uma redução de pena ali por “bom comportamento”, uma suavizada acolá porque leu um livro… Enquanto isso, despreza-se o brasileiro comum, aquele que não tem foro privilegiado. No país, quem respeita a lei, estuda e se esforça para melhorar de vida é tratado como bobo da corte, o idiota que trabalha cinco meses no ano exclusivamente para sustentar privilégios de uma elite regada a vinhos premiados, lagosta e outras regalias.

Em troca, esse cidadão é humilhado com um dos piores serviços públicos do planeta. Escolas, hospitais, estradas… Tudo uma lástima. E veja só o inusitado: os últimos homens públicos que tentaram combater os criminosos que sangram os cofres da nação começam a ser tratados como párias.

O deboche é supremo. E chegou a um momento que, de tão grave, gravíssimo, beira o inacreditável. O país está prestes a assistir a um retrocesso que o colocará na contramão de todo o mundo civilizado: o fim da prisão em segunda instância.


E tudo isso para quê? Para livrar da cadeia um sujeito suspeito de chefiar o maior esquema de corrupção da história e todos os sócios que surrupiaram o erário e são responsáveis por essa crise infindável que o país vive hoje. Mas não é só. Tenta-se, também, desmoralizar e, se possível, punir o hoje ministro da Justiça, Sérgio Moro, o ex-juiz que se tornou espécie de símbolo da Lava-Jato, a força-tarefa que ousou acabar com a impunidade dos intocáveis.

Sim, o país vive tempos estranhos, como bem reparou o ministro Luís Roberto Barroso, ao mostrar-se perplexo com a “euforia de corruptos”, depois de hackers invadirem celulares e divulgarem mensagens trocadas entre o então juiz Moro e o procurador Deltan Dallagnol. Eles falam sobre procedimentos para não deixar impunes bandidos que saquearam os cofres públicos. Pode-se, à luz da legislação brasileira, questionar aspectos técnicos de tais conversas. Mas, pelo vazado até aqui, é só.

Daí por que tanto Barroso quanto o ministro Edson Fachin, também do STF, chamem a atenção para o fato de os crimes cometidos pelos condenados terem sido provados em mais de uma instância da Justiça.

No entanto, em impressionante inversão de valores, há quem tente se aproveitar do ataque hacker à Lava-Jato, um atentado cibernético contra duas instituições de Estado — o Judiciário e o Ministério Público —, para usar o empenho de Moro em punir os fora-da-lei como “prova” a favor dos criminosos.

O fim da prisão em segunda instância pode resultar na soltura de Lula, Cabral, Cunha, Dirceu e de milhares de outros condenados. Na prática, significará a apoteose dos corruptos e das grandes bancas criminalistas, e uma imensurável derrota da sociedade.

Nunca mais na história deste país, desse dia em diante, haverá punição a um bandido cheio de dinheiro, ainda que roubado das UTIs sucateadas, das estradas esburacadas, das escolas abandonadas e do leite das crianças que continuarão analfabetas e, quando adultas, ajudarão políticos ladrões a se perpetuarem no poder.

Moro no Supremo? Esqueça. Ele, certamente, não tem “vocação” nem tanta “sapiência jurídica” para enxergar na Constituição o tal inciso que estabelece que bandidos de colarinho branco merecem impunidade eterna.