sexta-feira, 14 de dezembro de 2018

Brasil do Titanic


Notas de um velho marinheiro

Este é o meu último artigo do período de transição. No ano que vem a coisa começa. É hora de a onça beber água, a cobra fumar, o tatu sair da toca. Termina uma longa experiência em que predominaram ideias de esquerda, começa uma experiência liberal conservadora, de certa forma inédita, pois sempre se definiu assim, sem subterfúgios.

Um dos truísmos mais presentes na política é afirmar que nem sempre as coisas acontecem como planejado por seus atores. Em alguns casos podem até se transformar no oposto do desejado.

O projeto político iniciado em princípio de 2003, com a vitória de Lula, pretendia levar o Brasil a um novo patamar de liberdade e justiça social. Terminou em crise econômica, milhões de desempregados e alguns atores, o principal incluído, atrás das grades.

Durante muitos anos estudei o marxismo e constatei, na prática, a inadequação de suas teses. Talvez por temperamento, desde a juventude sempre tive um pé atrás com a ideia de que a História é regida por leis inflexíveis e obedece a um script inevitável.

Quando ouvia as pessoas repetirem o slogan cubano “até a vitória sempre”, costumava responder: sempre que possível. 

Era uma abertura para o inesperado, no fundo uma rebeldia contra um mundo pré-desenhado, um cemitério da criatividade humana. Minhas críticas e revisões das ideias de esquerda me valeram algumas antipatias. Nada de grave. Foi possível continuar pensando e escrevendo num clima quase razoável.

Possivelmente, em alguns momentos, vou desagradar aos liberais conservadores. Mas o que fazer? A alternativa seria concordar com uma euforia que a longa experiência não autoriza.

De modo geral, faço perguntas, não acusações. Uma das perguntas-chave que faço aos conservadores que chegam ao poder com a esperança de propagar sua fé cristã é: não estão chegando tarde demais a um mundo secularizado, onde a tradição e a cultura não podem ser apoiadas numa fé transcendental compartilhada?

Uma das referências que tenho é a passagem de Margaret Thatcher pelo governo inglês. Além de sua firme decisão de enfrentar corporativismos, ela manifestou muita simpatia pela moral vitoriana, tempos mais íntegros e felizes, segundo ela. Ao deixar o poder, Thatcher deixou também uma Inglaterra bem mais permissiva do que encontrou.

Aos conservadores brasileiros, para quem o bolo dos costumes desandou, deverá ficar claro que é difícil cozinhá-lo de novo, restando apenas cuidar do que existe, olhando para o futuro. Dito assim, parece complicado. Mas, na prática, é o que está acontecendo. A ministra de Direitos Humanos, Damares Alves, parece ter adotado esse caminho ao afirmar que a união civil gay é um direito adquirido e não vai questioná-la.

Depois de passar muitos anos criticando a miopia marxista diante das questões ambientais, terei a irônica tarefa de demonstrar aos conservadores que a preservação é uma ideia deles que foi introduzida de contrabando no marxismo. Karl Marx sempre partilhou com alguns pensadores burgueses a ideia de um progresso infinito, sem limites objetivos. Se saímos do árido campo das ideias e vamos de novo à prática, basta observar a catástrofe ambiental que foi o socialismo no Leste Europeu, a degradação da atmosfera nas cidades chinesas.

O PT em 2002 ainda acreditava, como os partidos comunistas da esfera soviética, que o principal problema era crescer, dar empregos, melhorar o padrão de vida dos trabalhadores. Estava aí, ainda que incipiente, a raiz das nossas principais divergências.

Compreendo que forças emergentes tenham uma linguagem de sonho, que no fundo almejem a felicidade de seus governados. Mas a História tem mostrado, exceto pelo idealismo do rei do Butão, que dificilmente a felicidade se conquista pela ação de governos. 

Tudo o que se pode fazer é minorar suas dificuldades, ajudá-los a conviver, como diz o poema de Yeats, com a desolação da realidade. 

Quando jovem de esquerda, alguns me irritavam por sua dose de realismo: Raymond Aron, Isaiah Berlin, George Steiner. Eles despiam a revolução de seus figurinos românticos e me deixavam só e desesperançado.

Neste momento em que o Brasil se prepara para viver uma experiência em que a religião tem grande peso, é necessário em primeiro lugar reconhecer a importância dos cristãos em nossa vida e cultura. Mas, ao mesmo tempo, questionar suas certezas políticas, como fazia com os slogans marxistas.
De novo um exemplo para atenuar a aridez. Por que mudar a Embaixada do Brasil em Israel para Jerusalém? O quase consenso internacional reconhece que ainda é uma cidade dividida.

Não foram grandes formulações de política externa que levaram Bolsonaro a essa saída. Há uma pressão evangélica, natural, válida, mas inadequada para comandar uma decisão nacional nesse campo. Para os evangélicos americanos e brasileiros, a extrema direita em Israel tem grande importância.

Os evangélicos não leem a Bíblia apenas como um documento sobre o passado. Confiam também em suas profecias, no seu roteiro para o futuro. E essas profecias dizem que uma das condições para a volta de Cristo é a recuperação pelos judeus da Terra Sagrada.

Não se trata de afirmar que isso seja um delírio, mesmo porque não tenho preconceitos contra delírios. Muitas de nossas políticas são um delírio. No entanto, quando se trata de política externa, é necessário, pelo menos, um delírio consensual.

A ideia de conformar o mundo à nossa fé cristã é de natureza diferente da criação de internacionais socialistas, Ursais e o escambau. Mas pode sofrer o mesmo destino melancólico das religiões laicas num mundo - até certo ponto, irreversivelmente - desencantado.

De qualquer forma, a aspereza do ano que vem vai nos levar a preocupações mais concretas do que as do período transitório, fluido por definição.

Mapa-múndi 1

O sistema:
Com uma das mãos rouba o que com a outra empresta.
Suas vitimas:
Quanto mais pagam, mais devem.
Quanto mais recebem, menos têm.
Quanto mais vendem, menos compram.
Eduardo Galeano

A grande batalha

De todas as ameaças que segundo os grandes cérebros nacionais, de Fernando Henrique a Fernanda Lima, o futuro governo de Jair Bolsonaro traz para o Brasil, a pior provavelmente é a única que não foi citada até hoje por nenhum deles. É pior que o regime fascista a ser inaugurado no dia 1º de janeiro de 2019, com o massacre de homossexuais, mulheres, negros, índios, povos da floresta, povos das águas, etc… É pior que a falta de espaço para as “pessoas razoáveis” viverem neste país. É pior que mais alguns milhares de problemas que ainda nem sabemos quais são. Pior que tudo isso junto, na verdade, é a possibilidade de que Bolsonaro acabe não fazendo nada do que prometeu e que quase 60 milhões de brasileiros estão esperando que ele faça. Aí sim: se não entregar a mercadoria que vendeu, ou entregar produto de segunda, em quantidade abaixo da esperada e com atraso, o Brasil vai levar um choque. A maioria da população, conforme ficou decidido no dia 28 de novembro, não quer apenas outras pessoas no governo federal. Quer outro governo. Quer que o Brasil seja governado de uma maneira que não tem nada a ver com a dos últimos 30 anos. Quer que sejam eliminados os problemas concretos de uma lista bem conhecida. Não quer ouvir do governo que “está difícil”. Quer soluções. Não está com paciência para ouvir desculpas.

O principal adversário do futuro governo Bolsonaro, assim, será ele próprio. O problema real não estará na oposição dentro do Congresso, na mídia ou no meio político. Não estará nos intelectuais das universidades de “ciências humanas”. Não estará na comunidade internacional, na ONU e nos seus guerrilheiros de escritório com ar condicionado em Nova York ou Genebra. A grande batalha a ser ganha, a que vai resolver realmente as coisas, será em torno da capacidade concreta, por parte do governo, de executar os seus projetos. Ou ele tem essa capacidade ou não tem. Se tiver, haverá mudanças de verdade ─ e logo. Se não tiver, por motivos que podem ir de discórdias internas à simples incompetência, muito pouca coisa vai mudar.


Aí fica complicado. Não dará para engatar uma marcha-a-ré, pois o Brasil acaba de deixar claro que não quer voltar para onde esteve ─ pegou um “fartão” sério em relação ao esquerdismo inepto, burro e larápio dos governos Lula-Dilma. Também não vai dar para ficar atolado e dizer que a estrada está ruim. Em resumo: ou muda mesmo ou perde a parada.

A área econômica, como sempre, será decisiva. Depois da monstruosa recessão de três anos que o PT impôs ao Brasil, com 14 milhões de desempregados, a devastação nas contas públicas e uma opção mortal pelo subdesenvolvimento, as mudanças terão de ser muito claras e muito rápidas. Vive-se, hoje, um momento de fabricação intensiva de dúvidas ─ não se perde nenhuma oportunidade para anunciar desastres iminentes, ruinosos e definitivos. O foco, em grande parte, é colocado no anunciado ministro da Economia, Paulo Guedes. Ele não se entende com outros barões da equipe. Vai viver em choque com o Congresso. Anuncia coisas contraditórias, ou desautorizadas por Bolsonaro. Fala demais. O novo governo, sem dúvida, não precisa ter no comando da economia um homem que funciona como armazém de ideias; precisa como ar e água, isso sim, de um operador, de alguém que resolva problemas práticos, de um produtor talentoso de resultados. Precisa de alguém que transforme em realidade prática as decisões econômicas do comando. Guedes pode dar certo? Vamos ver logo. Essas coisas costumam ficar claras bem rápido.

É um ótimo sinal, de qualquer forma, que praticamente todos os nomes apontados até agora para o primeiro escalão, a partir de Sergio Moro, sejam de primeira classe ─ não se viu uma equipe comparável, nem de longe, nos governos dos últimos 30 anos. Não resolve, claro. Mas é muito melhor que o contrário.
J.R. Guzzo

O Bolsonaro da Bíblia frente ao dilema de Abraão de sacrificar o seu filho

O novo presidente do Brasil, o capitão reformado Jair Bolsonaro, não é só o homem da bala, mas também o da Bíblia. Fez-se batizar na Terra Santa, nas águas do Jordão, as mesmas em que João Batista batizou Jesus. Não esconde ser crente e costuma erguer em suas mãos, junto da Constituição, o livro das Sagradas Escrituras. Quando ainda era deputado no Congresso, afirmou que o Brasil não é um Estado laico, e sim cristão, e muitos dos que o seguem apoiam uma teocracia como a melhor forma de governo para este país.

Conhece-se de Bolsonaro sua fé nas armas como antídoto contra a violência no Brasil, que ceifa mais vidas que nas guerras em curso no mundo. Junto ao sinal da cruz dos cristãos, seu gesto preferido é o da mão imitando o disparo de um revólver. Durante sua campanha eleitoral que lhe concedeu 57 milhões de votos, o candidato à presidência da República manifestou três grandes atos de fé pessoal e política: fé em livrar os brasileiros das garras da violência que os golpeia e atemoriza; fé em recuperar a economia em crise, que está devolvendo milhões de famílias à pobreza e até à miséria; e, por fim, fé na luta sem trégua contra a corrupção política e empresarial.

Como homem da Bíblia, Deus pôs Bolsonaro perante uma prova de fogo com motivo do suposto escândalo de corrupção que atinge seu filho Flávio através de um de seus assessores. Algo que lhe deve ter feito recordar um dos episódios mais enigmáticos e emblemáticos com que Javé quis provar a fé do patriarca Abraão, considerado como o “pai dos crentes”. Pediu-lhe, como prova de sua fé, que sacrificasse seu filho Isaac. É talvez a cena mais horripilante de todo o Antigo Testamento, narrada em Gênesis, 20. Abraão se encontrou frente ao dilema de oferecer a Deus o sacrifício do seu filho, que além do mais era inocente, ou quebrar seu pacto de fé nele. Escolheu ser fiel a Deus e decidiu sacrificar o seu “filho amado”. Deus premiou sua fé, e um anjo deteve seu braço antes da execução.

Bolsonaro está sendo posto à prova pelo Deus da Bíblia. Pede-lhe que, se for preciso, sacrifique seu filho Flávio ao invés de profanar sua fé na luta contra a corrupção, que ele jurou pôr acima de tudo. Como garantia de seu empenho, convidou para ser ministro o mítico fustigador da Lava Jato, o duro juiz Sérgio Moro. O presidente da Bíblia sabe que seu compromisso contra a corrupção foi fundamental para sua eleição. Quebrá-lo, antes ainda de tomar posse do cargo, equivaleria a uma traição sua a milhões de seguidores.

Tanto sabe disso que, na quarta-feira passada, dirigindo-se como de costume à sociedade através das redes sociais, o capitão confessou que não está disposto a ser “condescendente com nenhum erro”, custe o que custar. Confessa que “lhe dói o coração”, mas que “nem com ele nem com seu filho” pode ser "condescendente com o erro”. E isso porque, como para Abraão sua fé em Javé era inquebrável, a ponto de estar disposto a sacrificar seu filho, para Bolsonaro, afirmou ele, “o que há de mais firme é o combate à corrupção”, que havia sido um pacto de fé com seus eleitores.

Estará Bolsonaro, o presidente da Bíblia, disposto, se Deus pedisse, ou melhor, se a Justiça, desta vez a humana, pedisse, a sacrificar seu próprio filho em nome de seu compromisso de fé com seus eleitores? Ou espera que, como com Abraão, Deus acabe lhe fazendo o milagre de não precisar sacrificar o seu filho? A Bíblia, o talismã sagrado dos seguidores de Bolsonaro, colocou o novo presidente não só frente a um dilema bíblico, mas também diante de um hamtletiano ser ou não ser fiel a suas promessas e a sua consciência.