terça-feira, 5 de outubro de 2021

Ministro da Economia do Cazaquistão

Não terá sido de propósito. Nem Paulo Guedes, um visionário, enxergaria tão longe. Sua offshore foi constituída em 2014 e abastecida entre aquele ano e o seguinte. Investidor privado, decerto pretendia proteger parte de seus dinheiros da economia brasileira sob a gestão de Dilma Rousseff. Deu certo. O tempo passaria. E a empresa nas Ilhas Virgens Britânicas, um paraíso fiscal, continuaria dando certo: hoje servindo a que o ora ministro — não terá sido de propósito — proteja alguns de seus milhões de si próprio. Homem de sorte.

Sorte à parte, esse é o aspecto imoral da história: que o ministro da Economia — o fiador da bagaça, um estelionato eleitoral — tenha uma porção de seu patrimônio a salvo dos efeitos do governo fiado, o de Jair Bolsonaro. O sujeito serve a um populista-autocrático que é o centro gerador constante de instabilidades que minimiza e chama de “barulho”, mas tem uma fortuna isenta dos produtos da imprevisibilidade do chefe (e, claro, da mordida do Leão).

Não terá sido de propósito. Os dinheiros estavam lá; e lá ficaram. Ficaram, como por inércia, até que tivéssemos — não terá sido de propósito — um ministro da Economia com grana em offshore. (Tudo declarado.)

Essa imoralidade não é pouca coisa. Guedes vendeu a união entre conservadores e liberais como o casamento, afinal, da ordem com o progresso. Ele, liberal reformista, domaria a natureza beligerante de Bolsonaro, líder corporativista que erguera empresa familiar dentro do Estado. Com dinheiros tantos fora do Brasil, mesmo ante a inauguração da nova era, não estarão errados os que identificarem na inércia do ministro a admissão de que não seria tão fácil quanto apregoara.


Não terá sido de propósito. Os dinheiros já estavam lá; e lá ficaram. Ficaram, como por inércia, para que o ministro — investidor instintivo — não precisasse confiar 100% nas próprias promessas. Para que não precisasse confiar 100% em si. (Tudo declarado.) Não terá sido de propósito.

(Houve, no entanto, quem, emparedado pela peste, confiasse 100% no tratamento precoce, tornado — sob aval do Ministério da Economia — política de Estado. Nada a ver com a liberdade do médico para receitar. Não. Política de Estado, conforme visto no Amazonas. Política de Estado, chancelada pelos experimentos da Prevent Senior. Política de Estado, exposta pela blitz de Bolsonaro e seus empresários — com Guedes na marcha — contra e sobre o Supremo. Um estímulo, o remedinho, para que as pessoas se sentissem seguras, protegidas e fossem às ruas. Buscava-se a tal imunidade de rebanho, sem que a economia desacelerasse. Colheu-se a subestimação do vírus, a negligência na compra de vacinas e a interrupção do auxílio emergencial no auge da pandemia entre nós. Tudo expresso no Orçamento, os gatilhos para que a pobreza se acirrasse. Não haveria segunda onda. A economia crescia em V. São quase 600 mil os mortos. O atraso na vacinação condicionando a lenta retomada econômica do país.)

Tudo declarado. Não terá sido de propósito.

Todo mundo sabe — e repete — que não é ilegal ter dinheiro fora do Brasil, mesmo em empresas offshore, desde que obtido de modo lícito e devidamente comunicado aos órgãos de controle e fiscalização. Verdadeiro. No caso de um ministro de Estado, porém, há camadas adicionais de exigências — aquelas que derivam da ética pública. Pergunta objetiva: ministro da Economia com grana em offshore é aceitável? Mesmo que sem realizar trânsitos cambiais, é aceitável?

Ainda que declarada e sem qualquer movimentação, fatos são que a empresa offshore do ministro da Economia opera sob condições de sigilo inacessíveis à imensa maioria da população e lhe resguarda milhões dos puxadinhos tributários em que mexe para piorar a situação e dos conflitos institucionais forjados artificialmente pelo presidente a que serve como fachada liberal. É legal. E eticamente fedido.

Não terá sido de propósito. Os dinheiros já estavam lá; e lá ficaram. Ficaram, como por inércia. E declarados. O homem teve sorte. Deu certo. Paulo Guedes, pisando as virgens ilhas distraidamente, poupou os seus guedes do custo Bolsonaro-Guedes. O investidor Guedes se antecipando — sem saber — ao ministro Guedes. Mirou em Dilma; colheu defesa também contra o mito e seu 7 de Setembro permanente.

E assim ficaremos — com Guedes protegido contra o Mantega em que se converteria, somente mais uma imoralidade — se comprovado for que o ministro não mexeu na grana desde que tornado o responsável pela política econômica do Brasil. Não está claro. Não ainda. E não será com silêncio — fingindo que nada há — que o ministro esclarecerá que não violou o Código de Conduta da Administração Federal. E há também a Lei de Conflito de Interesses.

Falta transparência. A margem para que um ministro — tanto mais o da Economia — mantenha, sob seu controle direto, uma offshore é estreitíssima. Terá alguma decisão do ministro beneficiado quem mantém investimentos em offshores sediadas em paraísos fiscais? Por que não moveu a grana, por exemplo, para um blind trust? Ou fez isso, colocando os recursos aos cuidados de terceiros sobre os quais não tem influência? Fez? Guedes precisa falar.

São três — segundo os documentos divulgados nos Pandora Papers — os ministros da Economia com dinheiros em offshores: os de Cazaquistão, Paquistão e Gana. Não terá sido de propósito.

Um projeto para o País

Com recorde de desaprovação popular e sem ter o que apresentar como realização de seu governo, Jair Bolsonaro repete, com frequência crescente, o seu mantra: não fosse ele, o PT teria voltado ao poder. Na lógica bolsonarista, o governo não precisa apresentar nenhum resultado. O dever de Bolsonaro na Presidência da República se resumiria apenas e tão somente a manter Lula longe do Palácio do Planalto.

Essa tática, que parece tão resolutamente antipetista, é uma farsa, já que atende perfeitamente aos interesses do PT. A quase completa ausência de resultados do governo Bolsonaro é o cenário dos sonhos de Lula. Não há como negar. O desgoverno de Bolsonaro é caminho muito favorável para Lula voltar ao poder.


Mas o mantra bolsonarista – não fosse Bolsonaro, o PT teria voltado ao poder – tem ainda outra evidente contradição. Nenhum candidato é eleito apenas para ocupar um espaço vazio. Jair Bolsonaro não foi eleito para impedir que Lula, diretamente ou por meio de algum de seus postes, voltasse ao poder. Bolsonaro foi eleito – eis a verdade que o bolsonarismo tenta esconder – para governar.

É acintoso o desconforto de Bolsonaro e de seus apoiadores com essa realidade tão básica: um presidente da República é eleito para governar. Quando confrontados com a ausência de resultados do governo Bolsonaro, seus apoiadores logo revidam com a subespécie do mantra bolsonarista: apesar de tudo, em 2022, no segundo turno com Lula, voto é em Bolsonaro.

Deve-se ressaltar que a manobra também é comum entre os lulistas. Quando confrontados com o legado de corrupção, incompetência e negacionismo do PT, os lulistas logo revidam: mas, num segundo turno entre Lula e Bolsonaro, em quem você vota? E ficam indignados se o interlocutor mostra que o exercício dos direitos políticos numa democracia é necessariamente mais amplo do que essa asfixiante disjuntiva.

A transformação da política em mero embate de negativos é profundamente perniciosa ao País. A rigor, não se pode nem mesmo dizer que se trata de luta entre forças políticas antagônicas. É mero choque de rejeições: o anti-Lula versus o anti-Bolsonaro.

Nesse cenário – e ainda tendo um longo tempo até as eleições de 2022 –, é muito oportuna a observação feita por Alfredo Setubal, presidente da Itaúsa, ao tratar da relação entre o empresariado e as administrações petistas, em entrevista ao jornal O Globo. “Ele (Lula) gastou muito para eleger a Dilma, o déficit fiscal foi enorme. As consequências foram muito ruins e culminaram na recessão a partir de 2014 e no impeachment da Dilma. Mas, mais que anti-Lula, os empresários querem alguma coisa pró-Brasil. Eu não acho que é um sentimento anti-Lula, eu acho que é um sentimento de mudança. Esse modelo não está dando certo. Por isso se fala da terceira via”, disse Alfredo Setubal.

Lula e Bolsonaro almejam o mero choque de rejeições. Mas tal embate é rigorosamente insuficiente para o País superar a crise econômica, política, social e moral na qual foi mergulhado. A experiência de 2018 é bastante pedagógica. Elegeu-se um presidente da República cuja única proposta consistiu – e ainda consiste – em ser o anti-Lula, e ele vai entregar um Brasil em piores condições do que recebeu.

O bolsonarismo é terreno fértil para o lulopetismo, e vice-versa, porque os dois não vivem de governar, mas de vencer eleições a qualquer custo. É urgente, portanto, que as lideranças políticas, em sintonia com a sociedade civil organizada, apresentem propostas consistentes, aptas a enfrentar com responsabilidade os problemas do País.

Uma campanha nessas bases, protagonizada por candidatos genuinamente interessados em revigorar a democracia e unir os brasileiros em torno de ideias sólidas para tirar o Brasil do atraso, terá o condão de deixar evidente que Lula e Bolsonaro pouco têm a oferecer ao País além de cizânia e impostura. Nunca é demais lembrar que, nas duas disputas pela Presidência da República com Fernando Henrique Cardoso, Lula perdeu no primeiro turno.

Mais do que ser anti-Lula ou anti-Bolsonaro, o que faz falta é ter um projeto para o País. Essa é a melhor resposta contra as forças do atraso.

Pensamento do Dia

 


Missão: redução da desigualdade

Recentemente, a propósito da tentativa de aprovar a volta dos jogos de azar no país, petistas denunciaram que o sonho de Bolsonaro é transformar o Brasil numa Cuba da época do ditador Fulgencio Batista, um cassino onde os americanos iam se divertir. Os bolsonaristas há muito atacam o PT afirmando que o ex-presidente Lula pretende transformar o Brasil numa ditadura como a cubana, regime apoiado pelo petismo.

O paralelo cruzado reflete bem a polarização que já está marcando a campanha presidencial antecipada do ano que vem e escancara o caminho que existe para uma candidatura de terceira via que tenha um projeto para o país que não seja nem tanto ao mar, nem tanto à terra. O grande problema do mundo atualmente é a desigualdade de renda, que sempre esteve presente, mas ganhou dimensão planetária nos últimos anos, especialmente em países periféricos como o Brasil.

Não apenas no Brasil, a relação entre democracia e capitalismo já não é mais tão absoluta quanto foi nos últimos anos do século passado. Buscam-se modelos para aperfeiçoar a democracia representativa, que tem como um dos pilares a ideia de “uma pessoa, um voto”, criticada na China, pois não levaria às escolhas mais corretas, muito sujeitas a pressões financeiras.


Um modelo meritocrático é o que se busca nas empresas privadas ocidentais, e o que temos de fazer é buscar a legitimação da democracia representativa por reformas estruturais na educação e na distribuição de renda e das regras eleitorais, para que o cidadão tenha capacidade de escolher melhor candidatos melhores. O economista francês Thomas Piketty, um dos mais atuantes debatedores da desigualdade como fator de enfraquecimento das economias ocidentais, em seu mais recente livro em português, editado pela Intrínseca, faz uma análise sobre “uma breve história da desigualdade”. Em seguida será lançado o novo livro “Vivement le socialisme!”, ainda sem título em português.

Em entrevista à revista Le Point, Piketty diz que os Estados Unidos “inventaram um imposto progressivo bastante elevado, como em nenhum outro lugar, mas logo em seguida, com o mesmo vigor, foram no sentido oposto”. Referia-se à política do presidente Ronald Reagan, que, segundo ele, embora não fosse absurda, não deu certo. “Trinta anos mais tarde, constatamos que os americanos não alcançaram o aumento de renda esperado e, ao contrário, a taxa de crescimento da renda por habitante caiu pela metade entre 1990 e 2020.”

Piketty cita a questão da educação, fundamental na redução da desigualdade, como indicativo negativo do desenvolvimento americano: “O país ainda tem grandes universidades, ricas e no topo dos rankings, mas 70% dos americanos mais pobres não têm acesso a uma boa educação”. Piketty diz que o Imposto de Renda progressivo “permitiu reduzir muito a desigualdade sem impedir o crescimento, pois a receita gerada — pelos encargos — serviu para investir na educação, na saúde e nas infraestruturas”. Não é à toa que bilionários e milionários americanos fazem campanha pedindo para pagar mais impostos.

Entre nós, a discussão sobre a desigualdade de renda ganha contornos ideológicos que transformam o capitalismo na maldição da humanidade, e o comunismo, abandonado por Cuba e pela própria China, na salvação. Recentemente, o ex-presidente Lula festejou o centenário do Partido Comunista Chinês ressaltando que a China tem um partido político forte e um governo forte, por isso o governo tem controle e poder de comando.

Partido único e governo forte são a receita perfeita para a imposição de ideias e decisões do Partido Comunista da China, mas não nas democracias ocidentais como a nossa. O próprio Piketty, em entrevistas, já reconheceu “a tremenda redução da desigualdade de renda em termos globais, advinda da elevação de padrão de vida nas partes pobres do planeta nos últimos 30 anos, um aspecto muito positivo da globalização”. Ao analisar o modelo de desenvolvimento chinês, deveríamos fazer o mesmo que eles, em direção contrária: copiar as coisas boas do socialismo e adaptá-las ao capitalismo.

Os ETs estão chegando

Pode parecer exótico acreditar em extraterrestres. Estranho mesmo, no entanto, é falar de humanos que perderam a consciência da culpa enquanto destroem o meio ambiente; acham cafona uma abordagem de misericórdia e compaixão quando exploram os semelhantes à fome; ou expulsam indígenas das terras em favor do agronegócio. Sou mais os ETs.

Por esses e outros indícios de que perdemos nossa humanidade, tem tudo a ver a realização do 5º Congresso Mundial de Ufologia, previsto para ocorrer em Barcelona (Espanha), entre 8 e 10 deste mês. O encontro reunirá as principais cabeças pensantes do tema, no mundo, e um dos questionamentos será: “E se houver uma intervenção alienígena agora?”.

Haverá quem levante sobrancelhas e torça o nariz, diante do tema, afinal isso não é papo das elites cultas. Outros podem considerar que os curiosos pelo tema são desprovidos do saber clássico. Enquanto isso, no mundo cósmico e na Via Láctea, “mistérios sempre há de pintar por aí”.

Um ufólogo, que não anotei o nome, disse parecer inegável que, no atual estágio de vida, estamos diante de uma oportunidade e de um ultimato. Teríamos esgotado todos os meios educativos do Planeta e, por isso ele entende que nos encontramos a ponto de uma invasão de ETs. Estaríamos fracassando na nossa humanidade. O ufólogo acha que precisamos mudar o rumo das coisas ou haverá mesmo uma intervenção alienígena.

Claro, quem quiser pode achar maluquice. Mas, soa pretensioso dizer que somos únicos num Universo infinito. “Há muitos planetas habitáveis”, diz a letra da música. A conclusão do ufólogo pode ser radical e polêmica, mas a origem do pensamento é correta. Nós avançamos em todos os estágios no jogo da perversidade. E se antes, parecia termos consciência de nossas culpas, se antes refletíamos, a sensação é de que está tudo banalizado.

Em muitos casos, e dependendo do País, como é o caso do Brasil, parte da população não tem mais consciência histórica, ambiental, cultural, ética. Estar no mundo já não traz a consciência de preservação para muita gente. Não sei em que instante parte da humanidade perdeu a noção do bem. E o peso da culpa na prática do mal.

Por coincidência, tomei conhecimento do congresso de ufologia quando lia o livro “Covid-19, a Mãe Terra contra-ataca a Humanidade”, do teólogo Leonardo Boff. Ele diz que é preciso considerar o coronavírus dentro de um contexto em que a Terra foi agredida e que ela começou a reagir.

“O covid-19 possui duas origens: o ataque humano e o contra-ataque da Mãe Terra. Se nossa relação (daqui por diante) não for cuidadosa e respeitosa, ela poderá nos enviar outros vírus ainda mais letais. E, eventualmente, pode não nos querer mais. Ela continuará, mas sem nós”.

Leonardo Boff e os ufólogos falam de coisas distintas. Um, analisa a pandemia. Os outros, as nossas inconsequências. Mas, ambos, partem do mesmo princípio: chegamos até aqui cometendo abusos contra a nave mãe. E combinam na avaliação: os homens, esses seres “superiores”, se sentem no direito de fazer o que bem entender.

Lembrei-me de uma frase do escritor russo Dostoiévski, no mega romance “Os Irmãos Karamazov”. Diz: “Se Deus não existe, tudo é permitido?”. A consciência que predomina em muitas pessoas é a de que podemos fazer qualquer coisa, ainda que isso prejudique alguém. Ou de que não interessa fazer o bem, se isso não lhes traz vantagem.

Chegamos ao ponto de que os objetivos do capitalismo selvagem é que determinam nossos desejos, nossas ações. Vamos e venhamos, os ufólogos estão certos: que venham os ETs.
Cícero Belmar

O mundo chegou ao tempo da renda básica

A pandemia recolocou a desigualdade no topo da agenda global. A ideia da Renda Básica se fortaleceu. Vários experimentos estão em curso. Na Finlândia, no Quênia, no Canadá, na Holanda e outros países. Desde 2008, o interesse já vinha aumentando. Rutger Bregman é cirúrgico: “mais pessoas estão sedentas por um antídoto verdadeiro e radical tanto para a xenofobia quanto para a desigualdade”.

Aqui no Brasil, é agora incontornável a adoção de alguma forma de Renda Básica. Criada por lei em 2005 como renda básica universal, agora o STF determinou que o governo federal comece a pagar. Virou urgência. A fome tem pressa. A convulsão social está na espreita. Não é figura de retórica. O governo tem que encarar o problema e buscar formação de consenso com o apoio da sociedade civil e do Congresso, onde uma Frente Parlamentar está mobilizada.


Em 2019 eram 24 milhões na pobreza extrema. Agora são 35 milhões, segundo a FGV social. Além disto, 32 milhões de brasileiros deixaram a classe “C” e retrocederam para as “D” e “E”. Estima-se que a insegurança alimentar atinge 117 milhões de brasileiros. Cresceram a miséria, a pobreza e a desigualdade. Vem daí a pergunta: quem vai pagar a conta?

A decisão força a sociedade, o Congresso e o governo a olhar de frente o conflito distributivo na repartição do bolo do Orçamento da União. Significa reestruturar os gastos públicos e reorganizar os programas de assistência social, para começar. Marcos Lisboa mostrou que os aumentos de carga tributária – que cresceu 6 pontos mais que o PIB entre 1998 e 2007 -, se perdem nos interesses que capturam o Estado: subsídios para o setor privado e reajustes para as corporações. É a “nossa disfuncional economia política”, diz ele.

Além de reestruturar gastos, poderá ser necessário outro aumento de carga tributária, combinado com emissão de dívida e atuação do Banco Central na compra de títulos. Persio Arida afirmou há poucos dias que não está escrito em nenhuma teoria que existe um patamar ideal para a relação dívida/PIB. É preciso conciliar responsabilidade social com responsabilidade fiscal. Mas há que se reconhecer que o debate está enviesado por mitos. Investimentos em áreas que alavancam o crescimento não causam inflação, desde que a economia tenha espaço para crescer.

Ao contrário do discurso neoliberal, nas economias avançadas os países se endividaram regularmente. A dívida pública disparou. Nos Estados Unidos, chegou a 120% do PIB no ano passado. Ruchir Sharma afirma: “o encolhimento do Estado é um mito…as idéias de livre-mercado não enxugaram o Estado”. Por exemplo, nos Estados Unidos e no Reino Unido, diz ele. Como o Brasil, também estes países continuam fugindo para a frente, com endividamento.

Todos na esteira da financeirização macroeconômica global. No meio do caminho, se o mundo não encarar a desigualdade, o capitalismo vai dar um tiro no pé. Imaginemos um capitalismo sem mercado!

Diferença já não é entre esquerda ou direita, mas entre futuro e passado

Stephanie Grisham, que foi porta-voz da Casa Branca entre julho de 2019 e abril de 2020, está lançando no mercado norte-americano um livro de pequenas intrigas políticas, “I’ll take your questions now”, que traz, entre outras, uma curiosa revelação: a de que Donald Trump integrou ao seu gabinete uma espécie de Shazam e DJ particular, apelidado de “homem da música”. O trabalho deste personagem consistiria em apaziguar as constantes birras e zangas do presidente.


O cargo, inédito em regimes republicanos modernos, foi muito popular nas monarquias europeias, durante séculos. Era, afinal, parte do ofício dos bardos, menestréis e bobos da corte. Suponho que terá caído em desuso nas democracias modernas, não por ineficácia dos bardos, mas porque em democracia ninguém está disposto a aturar as birras dos presidentes. Regra geral, quanto mais avançada for uma democracia, menos tolerante se mostra para com as pirraças de presidentes e políticos em geral. A ligeireza com que a democracia norte-americana tolerou os amuos, as grosserias e os crimes de Trump durante quatro loucos e longos anos diz muito sobre sua frágil saúde, e, em particular, sobre a infantilização e a degradação intelectual, ética e moral do Partido Republicano.

Stephanie não revela no livro o nome do suposto DJ. Contudo, segundo alguns jornais norte-americanos, ele não seria outro senão Max Miller, ex-namorado da própria Stephanie. A relação terminou após Miller agredir a namorada. A designação de “homem da música” teria sido dada pelo próprio Trump, impressionado com a capacidade de Miller em reconhecer qualquer melodia aos primeiros acordes. Stephanie revela ainda que a música preferida de Trump seria “Memory”, que Andrew Lloyd Webber escreveu para o musical “Cats”.

O que mais surpreende em toda esta bizarra historieta não são as birras de Trump, tampouco a presença no seu gabinete de um moderno menestrel, mas o bom gosto musical de ambos. A canção parece mais apropriada para apaziguar não tanto Donald Trump, mas os americanos de bom senso, democratas e republicanos, que sempre o combateram: “Quando o amanhecer chegar, esta noite será só uma lembrança / Um dia novo irá começar”.

O novo dia já começou. Contudo, ainda é cedo para cantar vitória sobre a irracionalidade, a imaturidade e o populismo. Por um lado, embora Donald Trump tenha sido derrotado, o seu pensamento (se podemos chamar-lhe assim) continua a dominar as estruturas do Partido Republicano. Por outro lado, também o Partido Democrata enfrenta, no seu próprio seio, correntes obscurantistas.

Nos dias que correm, as diferenças já não são tanto entre quem está à esquerda ou à direita, mas entre quem está à frente, no futuro, e quem luta pelo direito de permanecer lá atrás, no passado — pondo em causa o futuro de todos. Quem defende políticas ambientais, por exemplo, está à frente. Quem não acredita que o aquecimento global é consequência direta da incúria humana está atrás. Também está atrás quem insiste em construir muros, em vez de pontes, dividindo a humanidade em todo o tipo de tribos. E isso uma certa esquerda faz tão bem, ou até melhor, do que a pior direita.