terça-feira, 5 de outubro de 2021

Diferença já não é entre esquerda ou direita, mas entre futuro e passado

Stephanie Grisham, que foi porta-voz da Casa Branca entre julho de 2019 e abril de 2020, está lançando no mercado norte-americano um livro de pequenas intrigas políticas, “I’ll take your questions now”, que traz, entre outras, uma curiosa revelação: a de que Donald Trump integrou ao seu gabinete uma espécie de Shazam e DJ particular, apelidado de “homem da música”. O trabalho deste personagem consistiria em apaziguar as constantes birras e zangas do presidente.


O cargo, inédito em regimes republicanos modernos, foi muito popular nas monarquias europeias, durante séculos. Era, afinal, parte do ofício dos bardos, menestréis e bobos da corte. Suponho que terá caído em desuso nas democracias modernas, não por ineficácia dos bardos, mas porque em democracia ninguém está disposto a aturar as birras dos presidentes. Regra geral, quanto mais avançada for uma democracia, menos tolerante se mostra para com as pirraças de presidentes e políticos em geral. A ligeireza com que a democracia norte-americana tolerou os amuos, as grosserias e os crimes de Trump durante quatro loucos e longos anos diz muito sobre sua frágil saúde, e, em particular, sobre a infantilização e a degradação intelectual, ética e moral do Partido Republicano.

Stephanie não revela no livro o nome do suposto DJ. Contudo, segundo alguns jornais norte-americanos, ele não seria outro senão Max Miller, ex-namorado da própria Stephanie. A relação terminou após Miller agredir a namorada. A designação de “homem da música” teria sido dada pelo próprio Trump, impressionado com a capacidade de Miller em reconhecer qualquer melodia aos primeiros acordes. Stephanie revela ainda que a música preferida de Trump seria “Memory”, que Andrew Lloyd Webber escreveu para o musical “Cats”.

O que mais surpreende em toda esta bizarra historieta não são as birras de Trump, tampouco a presença no seu gabinete de um moderno menestrel, mas o bom gosto musical de ambos. A canção parece mais apropriada para apaziguar não tanto Donald Trump, mas os americanos de bom senso, democratas e republicanos, que sempre o combateram: “Quando o amanhecer chegar, esta noite será só uma lembrança / Um dia novo irá começar”.

O novo dia já começou. Contudo, ainda é cedo para cantar vitória sobre a irracionalidade, a imaturidade e o populismo. Por um lado, embora Donald Trump tenha sido derrotado, o seu pensamento (se podemos chamar-lhe assim) continua a dominar as estruturas do Partido Republicano. Por outro lado, também o Partido Democrata enfrenta, no seu próprio seio, correntes obscurantistas.

Nos dias que correm, as diferenças já não são tanto entre quem está à esquerda ou à direita, mas entre quem está à frente, no futuro, e quem luta pelo direito de permanecer lá atrás, no passado — pondo em causa o futuro de todos. Quem defende políticas ambientais, por exemplo, está à frente. Quem não acredita que o aquecimento global é consequência direta da incúria humana está atrás. Também está atrás quem insiste em construir muros, em vez de pontes, dividindo a humanidade em todo o tipo de tribos. E isso uma certa esquerda faz tão bem, ou até melhor, do que a pior direita.

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