domingo, 18 de agosto de 2019

Brasil e a cova


Avesso a sombras

Só Jair Bolsonaro e seu filho Carlos sabem o que pensa o presidente da República sobre a comunicação oficial do governo. Os sinais de que nada importa, a não ser a voz do chefe, são cada dia mais evidentes. De umas três ou quatro semanas para cá, Bolsonaro vem falando quase todos os dias na portaria do Palácio da Alvorada, quando sai para trabalhar de manhã cedo. É uma estratégia de comunicação, evidentemente. Só que não funciona. O presidente vai ao cercadinho da imprensa para passar recados. O problema é que ele também responde a perguntas. E então, desanda.

O presidente não consegue resistir a um microfone. Além das agora cotidianas falas no Alvorada, Bolsonaro também abre o bico em toda atividade de que participa. Seus assessores dizem que muitas vezes ele muda o trajeto do seu deslocamento apenas para passar em frente aos jornalistas e parar assim que a primeira pergunta é feita. E dá-lhe blá-blá-blá. Bolsonaro adora um quebra-queixo (termo criado pela jornalista Ana Tavares, ex-secretária de imprensa do presidente Fernando Henrique, para designar entrevistas concedidas a dezenas de jornalistas portando alvoroçadamente microfones, gravadores ou celulares prontos para quebrar o queixo do entrevistado).

A eloquência presidencial torna o porta voz do Palácio do Planalto um figurante. Única coisa que Otávio Rêgo Barros conseguiu depois de sete meses na função foi perder sua quarta estrela de general. Bolsonaro é centralizador e odeia quando alguém de seu time se destaca mais do que ele. Entre outras razões, essa ciumeira, que também irrita ao filho Carlos, está esvaziando Rêgo Barros, que pode deixar o cargo a qualquer momento. Nesta semana, ele teve uma pequena vitória. Conseguiu o afastamento do jornalista Paulo Fona apenas seis dias depois de sua posse como secretário de Imprensa da Secom.

Fona tinha sido colocado no lugar exatamente para esvaziar Rêgo Barros. A orientação aos repórteres do Comitê de Imprensa do Palácio era a de procurar o jornalista sempre que tivessem qualquer dúvida para tirar. Esse seria o papel do general. Mas os bastidores da Secom importam pouco. Até porque, quem manda na política de comunicação do governo é o presidente, depois de ouvido o filho Carlos, o idealizador da comunicação que ele julga ter sido responsável pela eleição do pai. O chefe da Secom, Fabio Wajngarten, a quem toda a estrutura de comunicação do Palácio está subordinada, é pessoa da confiança de Carlos.

Se tudo der errado, a culpa será de Jair e Carlos.Também a eles deverá ser atribuído um eventual, embora improvável, sucesso na política de comunicação. Improvável por quê? Porque essa política não existe como fórmula, ela apenas subsiste porque foi sendo formatada empiricamente ao longo do governo. Vai se ajeitando aqui e ali para ver como a coisa funciona. Se der certo, prossegue. Se não der, para. Aliás, não é apenas na comunicação que as coisas funcionam ao sabor da sorte ou do azar, de tentativas e erros.

Segundo a Secom, ela é “responsável pela comunicação do governo, coordenando um sistema que interliga as assessorias dos ministérios, das empresas públicas e das demais entidades do poder executivo (...) disseminando informações de interesse público, como direitos e serviços, e também projetos e políticas do governo”. Nesse cipoal de letrinhas há um único objetivo, informar os brasileiros, com conteúdo de qualidade e credibilidade, sobre as ações governamentais. Trata-se de uma tarefa gigantesca que precisa de estabilidade e planejamento. O que aparentemente não existe.

Os quadros que apoiam essa rotina da comunicação no Palácio vão sendo mudados com base no critério da simpatia pessoal e da fidelidade canina. Portanto, se Rêgo Barros amanhã deixar o cargo, não será o primeiro a cair. Nemo último. Antes dele e de Paulo Fona, circularam pelos gabinetes do segundo andar Fernando Diniz, Floriano Barbosa, coronel Alexandre Lara. Quem são? Não importa, eram provisórios. Quem foram? Foram nomes seniores da Se com. Ser sênior, pode. Oque não pode é ser sombra.

Bolsonaro easy rider



No guidão da moto, jaquetão de couro e escolta de seguranças (armados, como fica bacana a qualquer “bad boy”), Bolsonaro Easy Rider deve se sentir o próprio Peter Fonda no consagrado “road movie” dos anos 60, rasgando o País, praticando barbeiragens retóricas e gerando acidentes em série a cada curva no pensamento. No último domingo não foi diferente, nem nos dias que se seguiram. O motoqueiro irreverente dos finais de semana está se achando livre para dizer e fazer o que lhe der na telha. Um Fonda mal-ajambrado, diga-se de passagem, contrabandeando estatísticas, mentindo que nem um condenado, praguejando opositores e cuspindo impropérios goela afora no melhor estilo desbocado incorrigível. Capaz até, se desse, de enfiar uma bandeira americana na garupa da máquina para não deixar margens a dúvidas sobre suas preferências. Bolsonaro Easy Rider está no momento com uma ideia fixa em torno do aparelho excretor. Vai saber lá o por quê. Necessidades fisiológicas humanas lhe incomodam, provavelmente. Tem de fazer menos cocô — com perdão da citação, apenas para ser absolutamente fiel à expressão da vez do presidente — para preservar o meio ambiente. Tem culpa do “cocozinho petrificado de um índio” no atraso da obra de um terminal de contêineres e mesmo os corruptos e comunistas são, no seu entender, o “cocô do Brasil” a ser varrido. Dia após dia saíram essas sujeiras de sua cabeça. Mas não como mera higiene mental. Queria mesmo era conspurcar o debate. Em quem já cismou com a limpeza do pênis e o “golden shower” devem existir definitivamente recalques pendentes nas regiões baixas do mandatário. E eles lhe servem para disfarçar as lambanças ainda mais visíveis nos campos econômico, diplomático e político. Bolsonaro Easy Rider vai emporcalhando o País com um desemprego imoral, uma abjeta recessão que ele trouxe de volta após dois anos de recuperação — tímida, embora consistente — e com reprimendas a chefes de Estado do Primeiro Mundo e aos adversários do Parlamento. É possível isso? Desanca, sem dó, líderes da França e da Alemanha por pedir controle no desmatamento — em franco aumento no seu governo — e, de quebra, espinafra os vizinhos argentinos por uma eleição ainda não definida. Bolsonaro Easy Rider quer ampliar poder. Promoveu demissões de quem discorda dele. Aniquilou investigadores do Coaf que tiveram a pachorra de caçar o filho Numero Um, Flavio, por conta de seu laranjal. E botou a correr a turma da Comissão da Verdade que reparava injustiças aos perseguidos políticos. Até arranjou tempo para novos elogios ao notório torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra, seu dileto “herói nacional”, um ser desprezível dos porões da imunda ditadura. Bolsonaro Easy Rider planeja agora a “faxina” da Receita Federal. Vai mexer em estruturas e nomes, “limpando” de lá os “petistas infiltrados”. Pode ficar certo: virão novas cagadas daí e não vale se incomodar com o linguajar chulo. É preciso estar na mesma “vibe” do capitão reformado. Do contrário, já viu: ele corta os bagos. O secretário de Comunicação do governo recém-nomeado, por exemplo, não durou nem uma semana no cargo. Contratado da Secom para filtrar os deslizes verborrágicos do “Mito” depois que ele chamou governadores nordestinos de “Paraíba” e negou a existência da fome no País, o assessor relâmpago deve ter insultado o vocabulário rastaquera do chefe da Nação. Aí não pode! Bolsonaro Easy Rider, na diplomacia da canelada, também vem colhendo prejuízos. Financeiros efetivamente. É dada como certa a retirada dos apoiadores do Fundo Amazônia, Noruega à frente, além da Alemanha, suspendendo contribuições que já chegam a US$ 3,4 bilhões. Mas o que é isso para um bad boy? Nada. O presidente fez pouco caso, deu de ombros. Na incontinência verbal corriqueira, os agrotóxicos entraram na dança. Sustentou o ex-capitão que o Brasil é um dos que menos usa essa porcaria química. E não o contrarie! O senador e ex-ator pornô, Alexandre Frota, foi expulso na semana passada do PSL, partido da base, por meter o pau no presidente. Figurativamente falando, claro. Bolsonaro Easy Rider entendeu. Eis um anátema implacável que mistura as obscenidades linguísticas do mandatário e a realidade nua e crua da política de articulação, onde ele não atua com a mesma desenvoltura. Bolsonaro Easy Rider é dado a tiranias e rancores típicos de um menestrel do baixo meretrício. Vingativo, implacável, despudorado. Gigolôs mandatários de certas saliências não fariam melhor. Suas fanfarronices fisiológicas são capazes de ruborizar até aquelas cabeças menos carolas da sociedade brasileira. O bad boy motoqueiro, o Peter Fonda da contracultura, o Easy Rider bananeiro está impossível. Quem vai conter seu ímpeto de aventuras loucas pilotando quase desgovernado uma moto e tantos destinos?
Carlos José Marques

'Credenciais' diplomáticas

Eu tive contatos rápidos com dois filhos dele, na verdade três. Com o [Donald] Trump Jr., certa vez na Shot Show, a maior convenção de armas no mundo. Numa outra oportunidade, em Mar-a-Lago (resort de Trump na Flórida) encontrei, também bati uma foto, com o Eric Trump, outro filho dele. E na visita à Casa Branca tive a oportunidade de conhecer também a Ivanka
Eduardo Bolsonaro sobre intimidade com a família Trump

Carisma em compotas

No Brasil é praxe considerar o carisma um ativo no capital político de candidatos a cargos majoritários. É visto pelo eleitorado como um bom atributo, embora não imprescindível, conforme atestaram as duas vitórias de Fernando Henrique em primeiro turno. Contariam como regra as derrotas de José Serra e Geraldo Alckmin para a Presidência caso não tivessem sido eleitos governadores em São Paulo e perdido a disputa nacional para Dilma Rousseff, nota zero no quesito magnetismo pessoal.

É relativo, portanto, o valor do fascínio, algo inexplicável exercido sobre o eleitorado, embora tal fator tenha peso nas disputas eleitorais. Disso dão notícia as licenças obtidas por Fernando Collor, Luiz Inácio da Silva e Jair Bolsonaro para dar expediente no Palácio do Planalto.

A proposta aqui é divagar um pouco em torno do tema a partir de características marcantes na conduta dos ditos carismáticos quando na busca ou no exercício do poder.

Caracterizam-se pela vulgaridade na linguagem, nos excessos cometidos em nome da informalidade de modo a transparecer autenticidade, o que, ao mesmo tempo, lhes confere uma autoconfiança inesgotável. Do ego hipertrofiado emerge a intolerância ao contraditório e se estabelece a dinâmica da atuação via confronto permanente. No universo deles a luta é uma constante, a razão de ser.



Costumam cultivar mitologia em torno de si, sustentados numa biografia que nem sempre conta a verdade completa. Alimentam fantasias persecutórias de modo a ativar desejos de desmontes de alegadas conspirações. Para isso recorrem a instrumentos de identificação, ressentimento e distração

No primeiro momento dizem o que a maioria quer ouvir. No segundo, exacerbam sentimentos e finalmente ocupam todos os espaços com um falatório sem importância, embora atrativo para os opositores, a fim de distrair o público, que, assim, estaria afastado do debate sobre os problemas concretos, imobilizado quanto a cobranças de governança eficaz.

Todos eles manifestam horror à imprensa livre, ao mesmo tempo que recorrem sistematicamente a ela para se manter populares, cultuam uma biografia mitológica nem sempre baseada em fatos e procuram dar a impressão de que vêm “de fora”, não obstante tenham se valido das regras “de dentro” para se eleger.

A dinâmica desse tipo é manter-se permanentemente como centro das atenções, para o bem ou para o mal. Para isso eles lançam mão de quaisquer recursos, por mais fora de esquadro que sejam ao juízo da racionalidade, pois falam aos que com eles se identificam pela via do ressentimento à deriva.</p>

Cultivam inimigos externos e internos, menosprezam o papel do Parlamento — seja composto de “300 picaretas” ou de representantes da “velha política”. São imunes aos chamamentos à razoabilidade, pois se veem como heróis cujo roteiro privilegia a fé em detrimento do conhecimento.

Tudo isso os une, e não seria preciso estar atento a eles não fosse a necessidade de combatê-los por terem também inequívoca e malévola parte com o autoritarismo.

Pensamento do Dia


Bolsonaro não tem que ser 'presidente banana' nem tampouco imperador

O presidente Jair Messias Bolsonaro começou a mostrar as garras para dizer que quem manda no Brasil é ele e não quer ser um “presidente banana”. Acusado durante o primeiro ano de mandato de aparecer incapaz de governar um país tão complexo e difícil como o Brasil, ele afirmou diante de um grupo de jornalistas: "Aqui quem manda sou eu" e acompanhou sua declaração com a expressão vulgar "p ..

A nova fúria do presidente com a imprensa ocorreu com a polêmica criada por ele com a mudança do superintendente da Polícia Federal do Estado do Rio de Janeiro, Ricardo Saadi –aliás, esse é o ramo da polícia que tem a incumbência de investigar as suspeitas que rondam o filho do presidente, o senador Flávio Bolsonaro. A polícia federal no Estado, que é uma instituição com autonomia para nomear seus dirigentes, fez saber que quem muda e anuncia um novo chefe é ela junto com o ministro da Justiça, no caso, Sérgio Moro. Bolsonaro, que até já havia anunciado um nome para substituir Saadi, agora diz que foi uma "sugestão".

Bolsonaro tem razão ao dizer que foi eleito nas urnas e, portanto, em não querer aparecer como “presidente banana”, pois, além do mais, a Presidência da República no Brasil acumula muito poder de decisão. No entanto, esta presidência também não pode ser confundida com o poder absoluto. Não se trata de um imperador ou de um ditador. O Brasil é uma democracia e nela existem instituições independentes com poderes próprios, que o presidente deve respeitar sob pena de aparecer como um tirano.

Confundir as atribuições de um presidente da República no jogo democrático com alguém que pode fazer e desfazer a seu arbítrio é revelar contornos autoritários que pertencem a países que ainda não aceitaram a divisão e a independência de poderes ou que as pisotearam com as botas de golpes militares.

Não é bom que o novo presidente, que já defendeu a ditadura e a tortura, atue para confundir seu poder presidencial prescindindo da existência de uma Constituição que sancionou a divisão de poderes, que é o que mantém o equilíbrio no Governo de um país e protege as liberdades e a paz, ao mesmo tempo que deve saber estar atento aos desejos e aspirações daqueles que o elegeram. E fizeram isso não para lhe conceder um poder absoluto, mas para que o compartilhe com as demais instituições, sempre sob a vigilância dos que lhe entregaram com o voto aquele poder.

E isso serve, é bom lembrar, não só para o presidente da República, que é o maior garantidor da Constituição, mas para os outros dois poderes, o Legislativo e o Judiciário. Nenhum deles pode atribuir-se todo o poder sem trair a essência da democracia.

Se o presidente da República não pode se dar ao luxo de dizer, sem mais, "aqui quem manda sou eu" e basta, tampouco podem fazê-lo os outros dois poderes, e menos ainda o Supremo Tribunal Federal, que tem a delicada missão de ser garantidor da Constituição, a única razão para a sua existência. Como o presidente da República não pode, o STF também não pode ser um árbitro universal do país ou agir como se estivesse mais a serviço daqueles que os elegeram do que de toda a sociedade, do Governo e da oposição.

É grave, às vezes, ouvir um magistrado da alta corte dizer que não precisa escutar o clamor das ruas, como se tivesse que prestar contas só aos que o colocaram ali, ou a uma Constituição asséptica sobre a qual nada têm o que dizer também aqueles para quem foi sobretudo promulgada, como é a sociedade sem rótulos políticos. É grave e perigoso que apareça em domínio público a qual força política cada magistrado pertence. E mesmo a que político em particular a maioria dos magistrados pertence, algo que não existe nos tribunais superiores dos países onde a Constituição é respeitada.

Em muitos casos, nesses países até os votos de cada magistrado são secretos. Uma vez eleitos, eles estão comprometidos com toda a sociedade. Agora, no Brasil, gostariam também de rotulá-los de acordo com sua fé religiosa. Bolsonaro já declarou que quer colocar no Supremo um magistrado “terrivelmente evangélico”.

Todas as desculpas às vezes são boas para que os responsáveis por orientar a sociedade defendam mais seus direitos e liberdades. Que pensem mais em seus próprios interesses do que nos da comunidade. E são feitos malabarismos para justificar certas decisões dos que ocupam o poder, chegando até a se valer da língua portuguesa. Foi isso que fez desta vez o presidente Bolsonaro, que, pressionado pelos jornalistas para que explicasse as razões que o levaram a esta nova guerra, desta vez com a instituição policial, deu um exemplo infantil que justificaria que a imprensa não tinha entendido sua conduta. A frase "se separou por amor", disse Bolsonaro, tem dupla interpretação, como na afirmação: "Em um ato impensado mata o filho o pai amado". Quem mata quem? O presidente se pergunta e acrescenta que a culpada "é a língua portuguesa".

Curioso e significativo, Bolsonaro escolher um jogo de palavras com a frase "matar". Poderia ter feito isso com "salvar". Sempre a morte pela frente!

Quando um presidente chega a acusar a própria língua para justificar sua conduta, ainda estamos longe de viver e com prazer em um espaço de democracia com alegria e felicidade, e não como um peso do qual se pretende libertar. No final, para os responsáveis pela sociedade é mais fácil o "aqui mando eu!", do que o libertador: “somos todos senhores e responsáveis por cada um que sofre ou é julgado injustamente”.

Deus tem mais o que fazer

S. Salvador
Deus pode ter criado o mundo, mas não vai mexer um dedo se o homem quiser destruir a Terra. Afinal, Ele ainda terá todo o restante do Universo para desfrutar sem a ameaça de um mísero ser humano
Luiz Gadelha 

Lógica do insulto

Donald Trump tem feito do insulto a adversários uma espécie de sistema. Desde a campanha eleitoral que o tornou presidente dos EUA, não tem feito outra coisa. Recentemente, investiu contra Megan Rapinoe, capitã da equipe de futebol americana, campeã mundial. Daí a dias agrediu sem pudor quatro deputadas do Partido Democrata, eleitas em novembro último.

Num discurso que fez na Carolina do Norte, usou 20 dos 90 minutos de sua fala para ofender as representantes do povo. Quem são elas? Duas são muçulmanas, as primeiras deste credo religioso a aceder ao Parlamento: Ilhan Omar, de Minnesota, e Rashida Tlaib, do Michigan. As outras foram Alexandria Ocasio-Cortez, de Nova York, filha de imigrantes porto-riquenhos, e Ayanna Pressley, negra, do Massachusetts.

Aos xingamentos e chacotas, Trump adicionou a intimação: “Voltem a seus países de origem”. Açulada, a multidão urrava: “Que sejam expulsas!”

Pareciam ignorar que são mulheres americanas, três nascidas nos EUA, e uma naturalizada há anos, dispondo dos direitos inerentes à cidadania democrática. Tanto como qualquer um deles e o próprio Trump.


Passados alguns dias, Trump investiu contra Elijah Cummings, negro, de Maryland, também deputado pelo Partido Democrata, caracterizando o distrito que o elegeu como “um lugar repugnante” e “infestado de ratos”. As diatribes suscitaram emoção e indignação. A Câmara de Deputados, até com votos de alguns republicanos, aprovou moção de protesto.

As mulheres reafirmaram que não se intimidarão nem se calarão, permanecendo fiéis a suas convicções e decisão de luta. Nesta altura, ninguém duvida que Trump é um rematado estúpido. Como dizia um humorista, ele não apela a ofensas porque “não sabe o que faz”, mas “só faz o que sabe”.

Não haveria, porém, uma lógica política neste recurso sistemático às injúrias? A uma análise mais acurada, alguns aspectos chamam a atenção. Em primeiro lugar, os ultrajes têm rendido resultados midiáticos positivos. Viram notícia na primeira página dos jornais, assunto inescapável nas mídias sociais e nos programas jornalísticos de todo tipo.

Afinal, impropérios descabidos não podem passar em branco nem ser naturalizados. O ofensor, assim, vai para a berlinda, atualizando o antigo dito popular: “Falem mal, mas falem de mim.” Ponto para o provocador.

Segundo aspecto: as invectivas radicalizam e agregam os adeptos mais decididos e entusiasmados, consagrando a pessoa do líder prepotente como capaz de polarizar o seu campo político. Cerram-se as fileiras face ao “inimigo”. As forças ganham coesão.

Em meio ao redemoinho e às incertezas que marcam o contexto da revolução digital e à insatisfação com as limitações dos regimes democráticos, um homem forte que mastigue certezas, mesmo que não se saiba ao certo para onde levarão, pode aparecer como uma tábua de salvação.

Um terceiro aspecto, ainda mais importante é o efeito que este comportamento suscita no debate político: as afrontas e os vitupérios rebaixam e envenenam o debate, amesquinham a troca de ideias, personalizam as discussões. Já mal se discutem as perspectivas — rasas — do agressor, mas sua personalidade, suas idiossincrasias, as circunstâncias pessoais, os parentes próximos.

Finalmente, o mais assustador, quando se completa a vitória de quem agride: as oposições começam a se comportar da mesma forma — passam também a afrontar e a xingar. Aprisionadas num vocabulário tosco e vulgar, reproduzindo involuntariamente o verbo do agressor, tornam-se incapazes de formular propostas construtivas. Assim, num contexto de equivalência de linguagens, perdem-se de vista as questões que estão em jogo.

As políticas propostas, muitas em prática, remodelando — para pior — o quadro político, destruindo direitos conquistados e enfraquecendo o regime democrático. Os Estados Unidos vivem tempos difíceis, e a saída está na capacidade de imaginar políticas alternativas. Revitalizar a democracia para que não naufrague.

Qualquer semelhança com a situação do Brasil não é mera coincidência.

A mãe que desafiou ancestrais do bolsonarismo

Passava de meia-noite quando Elzita Santos de Santa Cruz Oliveira, hóspede em um apartamento no Rio, recebeu uma chamada telefônica. Foi orientada a descer sozinha e esperar por uma viatura. Era a resposta a seu telefonema da manhã ao Dops, quando insistira em ver sua filha para acreditar que estivesse viva. No carro, um soldado, como se estranhasse a presença de uma senhora de quase 60 anos, de livre e espontânea vontade, ali, entre fuzis, lhe perguntou: "A senhora de onde é, da Paraíba?"

Sem olhar para o lado, Elzita, respondeu que era pernambucana como as mulheres de Tejucupapo. A quem lhe perguntava se eles sabiam a que se referia, ela respondia: "Se não sabiam, ficaram sabendo". Em 23 de abril de 1646, as mulheres de Tejucupapo, no litoral norte do Estado, lutaram contra invasores holandeses numa batalha com 300 mortos.

O diálogo se deu em 1972, dois anos antes da prisão de seu quinto filho, Fernando Santa Cruz. O relato da conversa entre dona Elzita e o ancestral do presidente Jair Bolsonaro foi resgatado pela jornalista Sílvia Bessa na coletânea de perfis "Heroínas Dessa História", a ser lançada pelo Instituto Vladimir Herzog, em setembro, sobre mulheres cujos familiares desapareceram nas mãos dos agentes do Estado durante a ditadura.

Das 15 perfiladas, dona Elzita foi aquela que mais tempo peregrinou por gabinetes e porões. Morreu aos 105 anos, um mês antes de seu neto, Felipe Santa Cruz, presidente da OAB, ser vítima da descarga bolsonarista. Não se dava por satisfeita com versões. Queria o timbre do Estado no papel passado.


Reunidos em sua casa em Olinda, em seus últimos anos de lucidez, seus filhos lhe relataram o depoimento do delegado Cláudio Guerra ("Memórias de uma Guerra Suja", Topbooks, 2012). No livro, o delegado afirma ter levado dez cadáveres de presos políticos, entre eles, Fernando, dos Destacamentos de Operações de Informação, os DOIs, e da Casa da Morte, em Petrópolis (RJ), para serem carbonizados no forno da Usina Cambahiba, no Rio. As cinzas desses corpos, conta, teriam sido misturadas ao vinhoto, o resíduo fétido da destilação do álcool de cana-de-açúcar.

"Quem disse que Fernando teve o corpo incinerado? Um delegado? Um torturador? Tem provas disso? Não?" Os filhos não tiveram tempo de reagir: Ela encerrou a história: "Vamos jantar". Nunca a veriam chorar nem usar luto, ainda que não lhe faltassem motivos.

Filha de um dono do engenho da Zona da Mata, casou-se aos 17 anos com o sobrinho do então governador Estácio Coimbra. O marido viria a morrer de tuberculose três meses depois. Viúva antes da maioridade, conheceria o médico sanitarista Lincoln Santa Cruz, dez anos depois. Com ele teria dez filhos, quase todos insurgentes.

Admiradores de Luís Carlos Prestes e de dom Hélder Câmara, os Santa Cruz nunca apoiaram o golpe de 1964, mas foi a militância dos filhos que os estigmatizou. Um dia receberam a visita de um verdureiro. "Estão dizendo que seus filhos são comunistas. O que é comunismo, doutor?". Lincoln mostrou-lhe a mesa posta e respondeu: "É todo mundo poder comer de tudo que tem nesta mesa".

Se o humanismo do pai lhes serviu de esteio, era a mãe que fazia a retaguarda. Dona Elzita aborrecia-se com as tarefas domésticas, gostava de ler romances e não era mãe de fazer cafuné, mas virava uma onça na hora de defender a militância dos filhos. Numa passeata em 1967, no Recife, Fernando havia acabado de completar 18 anos e foi preso ateando fogo a uma bandeira dos Estados Unidos. Seria enquadrado na Lei de Segurança Nacional.

Contra a vontade do marido, conseguiu uma certidão falsa de nascimento atestando que ele tinha "aproximadamente" 17 anos e o soltou. Dois anos depois, Marcelo, o mais velho dos filhos homens, chegou em casa com a notícia de que havia sido expulso da Faculdade de Direito do Recife, e que teria que deixar o país.

O delegado do Dops disse que se o estudante fizesse uma declaração dizendo não ser comunista, seu passaporte sairia. Marcelo, que se elegeria vereador em Olinda pelo PT, partido ao qual foi filiado até 2017, se rebelou. Achava a exigência uma humilhação. "Você só fala o que quiser", apoiou a mãe, que contornaria o delegado para conseguir a emissão do passaporte para o filho.

Na primeira prisão de Rosalina, a filha mais velha, no Rio, arrumou as malas e deixou com o marido a incumbência de prestigiar a formatura de outra filha. Entre telefonemas e peregrinações noturnas, lhes disseram que, se ela quisesse sair, teria que colaborar. Rosalina, que trabalhava como assistente social do Banco Nacional de Habitação (BNH), fazia mestrado em ciências sociais e militava na VAR-Palmares, como a ex-presidente Dilma Rousseff, depois se tornaria professora da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo. "O que o senhor quer que eu diga pra minha filha? Que ela seja dedo-duro? Que ela fale o que fez e que vocês cumpram a lei e a julguem, mas não batam na minha filha". Naquela prisão, Rosalina, grávida, abortaria depois de uma sessão de choques e chutes.

Quando Fernando desapareceu, a experiência vivida pelos irmãos mais velhos deu a dona Elzita a esperança de que ele lhe seria devolvido, estraçalhado, mas vivo. Ele havia deixado o Recife em 1970 com a mulher, Ana Lúcia, sua companheira de militância na Ação Popular, rumo ao Rio, depois de sucessivas prisões. Conseguiria um emprego no governo estadual e ingressaria no curso de direito da Universidade Federal Fluminense. Só a militância era clandestina.

Na AP, atuava na busca de companheiros desaparecidos, mobilizando familiares e advogados. Não há registro de sua participação em ações armadas. Em 1972, depois de passar em concurso público do Departamento de Águas e Energia Elétrica de São Paulo, se mudaria com a mulher e o filho, Felipe, recém-nascido.

No Carnaval do ano seguinte, decidiu voltar ao Rio, onde encontraria os irmãos Marcelo, Rosalina e Márcia, e reveria companheiros da AP. Pela manhã foram à praia. Ao meio-dia se separaram. Combinaram de se encontrar no dia seguinte. Lá estavam todos, menos Fernando. Na véspera, ele saíra às 16h da casa de Marcelo para, com Eduardo Collier Filho, companheiro de militância desde a adolescência, irem ao encontro de Doralina Rodrigues, também da AP. No jargão da clandestinidade, "caíram ao cobrir um ponto".

O pai se entregou à tristeza, mas dona Elzita, com a mãe de Collier, Risoleta, pôs o pé na estrada. O primeiro livro sobre o tema, "Onde Está Meu Filho", escrito por um grupo de cinco jornalistas reunidos por Chico de Assis (Paz e Terra, 1985), relata a visita que lhes serviria de testemunho contra as evasivas do Estado sobre o desaparecimento de ambos.

Ao chegarem ao Doi-Codi, um oficial que se apresentou como "Marechal" confirmou a presença de ambos e pediu que voltassem no domingo, dia de visita. Deixaram sacolas com roupas e alimentos. Ao voltarem, na expectativa de que veriam seus filhos, foram informadas de que tinha havido um equívoco, e lhes devolveram as sacolas.

Dona Elzita resolveu, então, procurar um marechal de verdade para ajudá-la. No dia 21 de maio, escreveu a Juarez Távora, integrante da Coluna Prestes e da Revolução de 1930. Apelava para que fizesse chegar a carta ao general Golbery do Couto e Silva. O velho marechal a entregaria nas mãos do chefe da Casa Civil de Ernesto Geisel.

Como não houvesse providências, nova carta lhe foi dirigida renovando o apelo com menção a seu irmão, Joaquim Távora, oficial do Exército que aderiu ao Levante do Forte de Copacabana e, depois de desertar do Exército, acabaria morto na revolta paulista de 1924. Desta vez, o marechal a encaminharia ao comandante do II Exército, general Ednardo D'Ávila Mello, que reagiria com ameaças à família Santa Cruz. O mesmo Exército acrescentaria meses depois ao seu legado "civilizado e respeitador da dignidade humana" a morte de Wladimir Herzog e Manoel Fiel Filho.

Dona Elzita decidira apelar ao II Exército (São Paulo) depois de ver esgotadas suas tentativas junto ao comandante do I Exército (Rio). A carta ao general Reinaldo Melo de Almeida também ficaria para a história da luta das mães de desaparecidos: "Fui motivada a fazer a presente carta, tendo em vista os predicados cristãos e humanistas de V. Exca., herdados de seu pai, figura ímpar, que enaltece a literatura nordestina. Em discurso pronunciado por José Américo ao retornar à Paraíba, em tempos idos, afirmou: 'Voltar é renascer. Ninguém se perde no caminho de volta'".

Os predicados do general haviam ficado pelo caminho. Ao responder à dona Elzita, o comandante do I Exército lavou as mãos: "Seu filho, procurado pelos órgãos de segurança por estar implicado em atividades subversivas, não se encontra preso em nenhuma organização militar subordinada a este comando".

Dona Elzita vendeu joias para percorrer o Brasil em busca do filho. Não se limitava aos poderosos. Um dia resolveu falar do filho numa fila do INSS e se deu conta de que a sociedade havia assistido à escalada do arbítrio, bestificada. "Ah, mas não é possível", lhe diziam. "É possível, sim", respondia, indignada.

A "velha Zita", como lhe chamava Fernando, chamava os militares da ditadura de "monstros que matavam jovens idealistas". Resumia numa frase o orgulho do filho - "Nunca traiu nenhum companheiro" - e confortava a angústia dos amigos de Fernando.

Numa carta, Doralina, a amiga com quem Fernando e Collier se encontrariam quando foram pegos, escreveu: "Bem sei que Fernando deu a vida também por mim, pois ele sabia como encontrar-me (...) Posso não ser digna desse gesto, mas outros amigos que ele preservou na repressão o são. Doralina daria o nome de Fernando a seu filho. São esses os amigos que o presidente Jair Bolsonaro, em "live" na cadeira do barbeiro, disse terem assassinado o filho de dona Elzita.