terça-feira, 7 de fevereiro de 2017
A glória de ser medíocre
Cada vez mais gostamos de ser medíocres no Brasil. Sofremos uma absurda atração pela cultura da mediocridade e a elevamos a objetivo nacional. Estamos conseguindo, e com que brilho! Caminhamos para a liderança mundial em muitos quesitos. Consulte os índices de qualidade de vida, de desenvolvimento humano, de educação, de violência, de saúde pública, de saneamento, de habitação. Percorra nossas estradas, nossos portos e aeroportos, nossas escolas. Visite os estádios superfaturados e abandonados neste país que ainda usa o futebol como ópio do povo.
A atração fatal pela mediocridade se espalha em todos os níveis da sociedade. Alguns exemplos: quem acha que nosso Congresso é composto por mentes brilhantes? Quem acha que pessoas capazes ocupam nossos ministérios? Como Eike Batista chegou tão longe e acabou em Bangu? Seria apenas pela aliança com um governador que levou 16 milhões de dólares dele para o exterior? Por que tantos turistas compulsórios visitam Curitiba tendo a PF como cicerone? Onde foi que um presidente afirmou que nunca tinha lido um livro – e não lhe fez falta? Por que tantos?
Se você acha que a cultura da mediocridade para aí, está enganado. Escute com atenção as músicas que fizeram maior sucesso em 2016, curta a riqueza das letras e das melodias, encante-se com a mesmice e o ridículo. Veja um programa na televisão, desses que arrancam dinheiro do espectador a cada minuto, eleve-se ao nível da danação intelectual ou caia no fundo do poço da exploração humana. Sintonize a grade das tvs abertas e delicie-se com o vazio que elas nos impingem travestido de entretenimento. Leia também os best-sellers, mergulhe na profundidade de suas páginas, repare quanta sabedoria eles lhe trazem, quanta novidade divulgam, quanta sede de escrever diários de bananas eles propagam. Não se esqueça de ver os filmes nacionais de maior bilheteria: como são inteligentes, criativos, nem um pouco machistas e, cá entre nós, que humor. Que humor requintado! Gaste oito ou dez horas por dia, como nossos jovens, enfrentando os games e seus inspiradores combates, ache-se mais esperto, mais genial, com neurônios mais rápidos, longe da alienação e do vício.
Observe bem as propagandas nas mídias, admire os estereótipos tão maravilhosamente engendrados pelas mentes sedutoras das agências, tão sedutoras que a crise passa longe dos produtos que anunciam. Mergulhe de cabeça nos posts inovadores do Facebook ou nas mensagens do “zapzap” e sinta-se pronto para conquistar o Vale do Silício, depois do implante de um cilício mental.
A lista não tem fim. Estamos conseguindo, a passo acelerado, a mediocridade. Viva! Como é bom ser medíocre, a grande mania nacional! Deixemos que outros pensem por nós. O melhor é que a opção pela mediocridade é nossa, o gosto é nosso, as consequências cairão em nossas cabeças. Viva! Quem sabe, em 2018, para coroar o ano, não elegemos o brilhante Donald Trump nosso presidente?
Luís Giffoni
A atração fatal pela mediocridade se espalha em todos os níveis da sociedade. Alguns exemplos: quem acha que nosso Congresso é composto por mentes brilhantes? Quem acha que pessoas capazes ocupam nossos ministérios? Como Eike Batista chegou tão longe e acabou em Bangu? Seria apenas pela aliança com um governador que levou 16 milhões de dólares dele para o exterior? Por que tantos turistas compulsórios visitam Curitiba tendo a PF como cicerone? Onde foi que um presidente afirmou que nunca tinha lido um livro – e não lhe fez falta? Por que tantos?
Observe bem as propagandas nas mídias, admire os estereótipos tão maravilhosamente engendrados pelas mentes sedutoras das agências, tão sedutoras que a crise passa longe dos produtos que anunciam. Mergulhe de cabeça nos posts inovadores do Facebook ou nas mensagens do “zapzap” e sinta-se pronto para conquistar o Vale do Silício, depois do implante de um cilício mental.
A lista não tem fim. Estamos conseguindo, a passo acelerado, a mediocridade. Viva! Como é bom ser medíocre, a grande mania nacional! Deixemos que outros pensem por nós. O melhor é que a opção pela mediocridade é nossa, o gosto é nosso, as consequências cairão em nossas cabeças. Viva! Quem sabe, em 2018, para coroar o ano, não elegemos o brilhante Donald Trump nosso presidente?
Luís Giffoni
O povo quer pão e circo
O senado brasileiro já foi palco de momentos gloriosos e embates de alto nível, semelhantes às decisões tomadas pelo senado romano nos seus primeiros tempos, instituição que serviu de modelo a senados de todo o mundo. Mas talvez hoje se pareça mais com o senado romano do tempo do poeta satírico Juvenal.
Quando Juvenal escreveu esta frase, os senadores da Roma antiga discutiam longamente assuntos impróprios para o lugar, como o melhor modo de preparar um peixe.
A outrora honrada classe política e audazes comandantes militares davam ao povo o que ele queria: comida e divertimento. Era como se hoje fossem distribuídos alimentos em frente aos tribunais e entradas gratuitas em todos os estádios.
Em Roma, o trigo era oferecido no Forum e os espetáculos eram apresentados gratuitamente em anfiteatros, dos quais o mais famoso foi o Coliseu, cujas ruínas perduram até hoje, atestando a competência de Roma também nas grandes edificações.
Foi também em contexto semelhante que o general Pompeu dissera que “navegar é preciso, viver não é preciso”, convocando os comandados a zarpar, mesmo sob ameaça de tempestade, porque navios carregados de trigo tinham que chegar a Roma antes que o povo se revoltasse. Os autores das duas frases são historicamente muito próximos um do outro. Pompeu vivera no século I a.C., e Juvenal no século I de nossa era.
Não tinha sido sempre assim. Caminhando no campo de batalha, depois de sua célebre vitória sobre os romanos, o rei Pirro notara que todos os soldados derrotados, mortos ou feridos, tinham sido atingidos pela frente, nenhum em fuga. E ficara muito preocupado.
Já com mais dificuldades, pois os romanos iam aprendendo a enfrentar seus elefantes, Pirro voltou a vencer Roma na segunda batalha, mas propôs paz aos vencidos, servindo-se para isso de um embaixador chamado Cineas. Este dirigiu-se ao senado romano e estranhou que tantos decidissem o que Pirro, seu chefe, decidira sozinho.
A proposta não foi aceita, e Cineas, maravilhado com a oratória dos senadores, disse a seu chefe no regresso: o senado romano é uma assembleia de reis.
No tempo de Juvenal, não era mais. E por isso ele escreveu a frase que se tornaria famosa. Panem et circenses – pão e espetáculos, no original -, passou à História como pão e circo.
Quando Juvenal escreveu esta frase, os senadores da Roma antiga discutiam longamente assuntos impróprios para o lugar, como o melhor modo de preparar um peixe.
A outrora honrada classe política e audazes comandantes militares davam ao povo o que ele queria: comida e divertimento. Era como se hoje fossem distribuídos alimentos em frente aos tribunais e entradas gratuitas em todos os estádios.
Foi também em contexto semelhante que o general Pompeu dissera que “navegar é preciso, viver não é preciso”, convocando os comandados a zarpar, mesmo sob ameaça de tempestade, porque navios carregados de trigo tinham que chegar a Roma antes que o povo se revoltasse. Os autores das duas frases são historicamente muito próximos um do outro. Pompeu vivera no século I a.C., e Juvenal no século I de nossa era.
Não tinha sido sempre assim. Caminhando no campo de batalha, depois de sua célebre vitória sobre os romanos, o rei Pirro notara que todos os soldados derrotados, mortos ou feridos, tinham sido atingidos pela frente, nenhum em fuga. E ficara muito preocupado.
Já com mais dificuldades, pois os romanos iam aprendendo a enfrentar seus elefantes, Pirro voltou a vencer Roma na segunda batalha, mas propôs paz aos vencidos, servindo-se para isso de um embaixador chamado Cineas. Este dirigiu-se ao senado romano e estranhou que tantos decidissem o que Pirro, seu chefe, decidira sozinho.
A proposta não foi aceita, e Cineas, maravilhado com a oratória dos senadores, disse a seu chefe no regresso: o senado romano é uma assembleia de reis.
No tempo de Juvenal, não era mais. E por isso ele escreveu a frase que se tornaria famosa. Panem et circenses – pão e espetáculos, no original -, passou à História como pão e circo.
Forrest Trump
Em 96, escrevi sobre dois filmes que me arrepiaram a espinha. Um deles era o “Forrest Gump”, e o outro, o “Independence Day”, filme catástrofe-ufanista.
Foram dois sucessos internacionais e também dois recados para o mundo de hoje.
Relendo hoje os dois textos, vejo que as condições objetivas para a “desconstrução” do mundo atual pelo Trump já eram cozinhadas no fogão das bruxas. Dava para ouví-las como em “Macbeth” cantando “Something Wicked This Way Comes” (coisas terríveis vêm por aí...).
Na era Clinton, a sabotagem dos republicanos já estava rolando. Não deram um minuto de sossego para o homem. A cada dia inventavam uma nova sacanagem.
Foram acusações imobiliárias em Whitewater, pecados em Little Rock, até que, em um belo dia, caiu do céu a história da Monica Lewinsky dando chance ao promotor Kenneth Starr de liderar a campanha mais implacável que vi na vida, prefigurando o golpe de direita que depois se consumou com a reeleição de Bush. Estranhamente, tudo começou e acabou em sexo – da boca de Monica até o Trump puxando as mulheres pelas partes íntimas.
Hoje, já dá para ver que as administrações democratas são fogos fátuos perto dos fundamentalistas do Tea Party – a verdadeira América é fisicamente republicana.
Obama foi uma dádiva da sorte. Ele veio meio fora da curva, por seu raro carisma. Se o Mitt Romney tivesse ganhado, a desgraça de hoje já teria começado há oito anos. Obama serviu para segurar bastante a barra das sabotagens, mas os indícios de um rumo boçal e retrógrado já estavam no ar.
No cinema, por exemplo, já aparecia o desejo psicótico desse país. Qual cinema do mundo que celebra permanentemente a violência, o sangue, a porrada e a inclemência? Qual o cinema que retrata toda hora a destruição do próprio país, como em “Independence Day”?
Quando eu vi “Forrest Gump”, senti (e escrevi) que alguém como Trump viria nos infernizar a vida. Estavam ali os sinais. Primeiro, me espantou o infinito sucesso de “Forrest Gump”. Foi das maiores bilheterias da história. Por quê? – pensei. E escrevi que aquele filme transformava os últimos 30 anos da história americana num trem de banalidades, desmoralizando as lutas civilizatórias que a América travou nos anos 60, 70. “Forrest Gump” condena os que criticaram o conformismo e o preconceito. Tudo aquilo que contestou o sonho americano, tentando aperfeiçoá-lo, é ridicularizado para impor uma “sabedoria do idiota”, superior a qualquer reflexão culta ou politicamente moderna.
No filme, o movimento negro foi retratado como um grupo de loucos que espancam mulheres, os hippies parecem mendigos palhaços, as liberdades sexuais conquistadas são viradas em sujas orgias pecaminosas e decadentes, os heroicos veteranos do Vietnã, aleijados e abandonados, foram retratados como detestáveis e mentirosos, na época em que Bush vivia alcoolizado no Texas, fora da guerra pelas graças do pai. No filme, a namorada de Gump, Jenny, é punida por seus excessos, já que ela foi hippie, namorou um negro, contestou a guerra em Washington. Por isso, morre castigada por um vírus misterioso, uma sugestão da Aids. Escrevi: “Forrest Gump é o precursor do que seremos. É o habitante ideal da sociedade conformista do futuro. É o idiota que venceu”. Não foi por acaso que Bush, em 2004, discursou em Yale para os alunos: “Eu sou a prova de que um mau estudante pode ser presidente...!”.
“Gump” foi lançado em 95. Em 96, outro filme, “Independence Day”, prefigura (e não só ele, mas outros como “Godzilla”, “Deep Impact”, “Armagedon”, tantos...) a América e o mundo de hoje. “Gump” era o personagem, e “Independence Day”, o cenário e contexto.
Para quem não viu, “Independence Day” conta a história de ETs invadindo os Estados Unidos.
Com o fim da Guerra Fria, os americanos ficaram sem inimigos claros. No imaginário de Hollywood, os inimigos passaram a ser os rebeldes e os psicopatas antissociais que Gump condena ou então, no caso de “Independence”, os ETs – que eram visivelmente uma metáfora de invasores estrangeiros. Seriam quem? Os chicanos, os islâmicos, os excluídos, nós, de Governador Valadares? Quem tinha ocupado o lugar dos comunistas? Em plena propaganda da “globalização liberal”, já estava ali, visível a olho nu, o nacionalismo republicano, o protecionismo e a paranoia unilateral contra o resto do mundo que Trump, esse perigoso narcisista sádico, trouxe.
E mais: o filme denotava um desejo inconsciente de autodestruição, um desejo de vitimização paranoica, de modo a legitimar revides e vingança.
Escrevi em 96: “O filme atende os desejos dos terroristas (muito antes de Osama Bin Laden, que deve ter se inspirado nesses enredos). No filme, a América é destruída com fogo e sangue, espatifada com amor e ódio – um pavoroso delírio de ruína misturado com um patriotismo vingativo. Os marginais e vagabundos (como os contestadores dos anos 60) vibravam na cena em que os ETs destroem a Casa Branca”.
Quando vi “Forrest Gump” e “Independence Day", notei que algo importante estava mudando, tive a visão esquisita de um futuro torto.
E não deu outra: veio o 11/9 e agora o Trump, o Forrest Trump. Senti que a barra pesava nos Estados Unidos – vi que o “godzilla” republicano já andava solto.
Hoje os Estados Unidos estão diante de um dos maiores desastres de sua história. Toda a grandeza da democracia americana virou um pesadelo humorístico. O mundo perde o respeito pela América diante desse suicídio. Esse bufão é o retrato caricatural da estupidez e da crueldade do Partido Republicano, que virou o inimigo interno do próprio pais. Ele é o homem-bomba da América. E pode estourar no mundo também, completando o xadrez sinistro dos líderes populistas atuais, do porco da Coreia, passando por Putin, Assad etc.
Agora, sentimos medo e depressão. A ficção virou realidade? Ou será o contrário?
Arnaldo Jabor
Foram dois sucessos internacionais e também dois recados para o mundo de hoje.
Relendo hoje os dois textos, vejo que as condições objetivas para a “desconstrução” do mundo atual pelo Trump já eram cozinhadas no fogão das bruxas. Dava para ouví-las como em “Macbeth” cantando “Something Wicked This Way Comes” (coisas terríveis vêm por aí...).
Na era Clinton, a sabotagem dos republicanos já estava rolando. Não deram um minuto de sossego para o homem. A cada dia inventavam uma nova sacanagem.
Foram acusações imobiliárias em Whitewater, pecados em Little Rock, até que, em um belo dia, caiu do céu a história da Monica Lewinsky dando chance ao promotor Kenneth Starr de liderar a campanha mais implacável que vi na vida, prefigurando o golpe de direita que depois se consumou com a reeleição de Bush. Estranhamente, tudo começou e acabou em sexo – da boca de Monica até o Trump puxando as mulheres pelas partes íntimas.
Hoje, já dá para ver que as administrações democratas são fogos fátuos perto dos fundamentalistas do Tea Party – a verdadeira América é fisicamente republicana.
Obama foi uma dádiva da sorte. Ele veio meio fora da curva, por seu raro carisma. Se o Mitt Romney tivesse ganhado, a desgraça de hoje já teria começado há oito anos. Obama serviu para segurar bastante a barra das sabotagens, mas os indícios de um rumo boçal e retrógrado já estavam no ar.
Quando eu vi “Forrest Gump”, senti (e escrevi) que alguém como Trump viria nos infernizar a vida. Estavam ali os sinais. Primeiro, me espantou o infinito sucesso de “Forrest Gump”. Foi das maiores bilheterias da história. Por quê? – pensei. E escrevi que aquele filme transformava os últimos 30 anos da história americana num trem de banalidades, desmoralizando as lutas civilizatórias que a América travou nos anos 60, 70. “Forrest Gump” condena os que criticaram o conformismo e o preconceito. Tudo aquilo que contestou o sonho americano, tentando aperfeiçoá-lo, é ridicularizado para impor uma “sabedoria do idiota”, superior a qualquer reflexão culta ou politicamente moderna.
No filme, o movimento negro foi retratado como um grupo de loucos que espancam mulheres, os hippies parecem mendigos palhaços, as liberdades sexuais conquistadas são viradas em sujas orgias pecaminosas e decadentes, os heroicos veteranos do Vietnã, aleijados e abandonados, foram retratados como detestáveis e mentirosos, na época em que Bush vivia alcoolizado no Texas, fora da guerra pelas graças do pai. No filme, a namorada de Gump, Jenny, é punida por seus excessos, já que ela foi hippie, namorou um negro, contestou a guerra em Washington. Por isso, morre castigada por um vírus misterioso, uma sugestão da Aids. Escrevi: “Forrest Gump é o precursor do que seremos. É o habitante ideal da sociedade conformista do futuro. É o idiota que venceu”. Não foi por acaso que Bush, em 2004, discursou em Yale para os alunos: “Eu sou a prova de que um mau estudante pode ser presidente...!”.
“Gump” foi lançado em 95. Em 96, outro filme, “Independence Day”, prefigura (e não só ele, mas outros como “Godzilla”, “Deep Impact”, “Armagedon”, tantos...) a América e o mundo de hoje. “Gump” era o personagem, e “Independence Day”, o cenário e contexto.
Para quem não viu, “Independence Day” conta a história de ETs invadindo os Estados Unidos.
Com o fim da Guerra Fria, os americanos ficaram sem inimigos claros. No imaginário de Hollywood, os inimigos passaram a ser os rebeldes e os psicopatas antissociais que Gump condena ou então, no caso de “Independence”, os ETs – que eram visivelmente uma metáfora de invasores estrangeiros. Seriam quem? Os chicanos, os islâmicos, os excluídos, nós, de Governador Valadares? Quem tinha ocupado o lugar dos comunistas? Em plena propaganda da “globalização liberal”, já estava ali, visível a olho nu, o nacionalismo republicano, o protecionismo e a paranoia unilateral contra o resto do mundo que Trump, esse perigoso narcisista sádico, trouxe.
E mais: o filme denotava um desejo inconsciente de autodestruição, um desejo de vitimização paranoica, de modo a legitimar revides e vingança.
Escrevi em 96: “O filme atende os desejos dos terroristas (muito antes de Osama Bin Laden, que deve ter se inspirado nesses enredos). No filme, a América é destruída com fogo e sangue, espatifada com amor e ódio – um pavoroso delírio de ruína misturado com um patriotismo vingativo. Os marginais e vagabundos (como os contestadores dos anos 60) vibravam na cena em que os ETs destroem a Casa Branca”.
Quando vi “Forrest Gump” e “Independence Day", notei que algo importante estava mudando, tive a visão esquisita de um futuro torto.
E não deu outra: veio o 11/9 e agora o Trump, o Forrest Trump. Senti que a barra pesava nos Estados Unidos – vi que o “godzilla” republicano já andava solto.
Hoje os Estados Unidos estão diante de um dos maiores desastres de sua história. Toda a grandeza da democracia americana virou um pesadelo humorístico. O mundo perde o respeito pela América diante desse suicídio. Esse bufão é o retrato caricatural da estupidez e da crueldade do Partido Republicano, que virou o inimigo interno do próprio pais. Ele é o homem-bomba da América. E pode estourar no mundo também, completando o xadrez sinistro dos líderes populistas atuais, do porco da Coreia, passando por Putin, Assad etc.
Agora, sentimos medo e depressão. A ficção virou realidade? Ou será o contrário?
Arnaldo Jabor
Uma rede de cumplicidades
Por suspeita de corrupção, a Caixa Econômica Federal iniciou uma revisão dos atos de seus executivos responsáveis pela gestão do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço nos últimos cinco anos. Abriu uma dezena e meia de inquéritos internos para apurar “eventual prática de atos lesivos” em negócios do fundo FI-FGTS. Treze deles foram iniciados nas últimas duas semanas.
Trata-se de um fundo de investimentos de natureza privada, sob administração da Caixa — um banco público —, que na última década empenhou R$ 30 bilhões em projetos escolhidos como prioritários pelos governos Lula, Dilma e Temer. Essa montanha de dinheiro pertence aos 41 milhões de trabalhadores cotistas do Fundo de Garantia. Seu tamanho é suficiente, por exemplo, para cobrir duas vezes o buraco aberto nas finanças do Estado do Rio.
Investigações do Ministério Público e da Polícia Federal indicam perdas superiores a 10% do valor dos ativos do FI-FGTS. Na origem estão financiamentos suspeitos a empresas privadas, decididos em áreas da Caixa loteadas entre o PT e seus antigos aliados do PMDB, entre eles Eduardo Cunha e Geddel Vieira Lima.
Esses prejuízos tendem a ser multiplicados, porque é grande a vulnerabilidade dos sistemas de controle da Caixa, agora desnudada nas milhares de páginas das ações na Justiça Federal. Elas revelam padrões de caos administrativo em negócios bilionários de grupos como JBS, J&F Investimentos, Marfrig, Bertin/Contern, BR Vias, Oeste-Sul, OAS, Comporte, Big Frango, Inepar, Digibrás e Haztec, entre outros.
Nas confissões há relatos de contratos assinados em boates. O suborno variava entre 10% e 30% — quando da “comissão” de um terço do valor do contrato, o empresário levava “garantias” de que não seria importunado com a cobrança do empréstimo.
Os detalhes sobre tráfico de influência, improvisos e métodos incompatíveis com a racionalidade caracterizam a festa com dinheiro dos trabalhadores em negócios obscuros, sob ostensivo patrocínio do PT e do PMDB e encobertos por uma estrutura sindical-corporativista.
É inexplicável que a Caixa tenha demorado ano e meio para começar a investigar suspeitas em negócios com dinheiro do Fundo de Garantia. Ministério Público, Polícia Federal e Controladoria-Geral da União (CGU) estão no caso há 18 meses. A CGU tentou obter uma série de documentos. Às vésperas do Natal de 2015, recebeu alguns dos papéis solicitados. Quase todos censurados.
A Caixa impôs tarjas pretas sobre 90% das páginas dos relatórios sobre as suas decisões de investir recursos do Fundo de Garantia em negócios privados. Um deles, o baiano OAS, recebeu R$ 500 milhões quando já estava à beira da falência.
A decisão tardia sobre os inquéritos internos evidencia uma rede de cumplicidades entre políticos, empresários e burocratas nesse banco público.
José Casado
Trata-se de um fundo de investimentos de natureza privada, sob administração da Caixa — um banco público —, que na última década empenhou R$ 30 bilhões em projetos escolhidos como prioritários pelos governos Lula, Dilma e Temer. Essa montanha de dinheiro pertence aos 41 milhões de trabalhadores cotistas do Fundo de Garantia. Seu tamanho é suficiente, por exemplo, para cobrir duas vezes o buraco aberto nas finanças do Estado do Rio.
Esses prejuízos tendem a ser multiplicados, porque é grande a vulnerabilidade dos sistemas de controle da Caixa, agora desnudada nas milhares de páginas das ações na Justiça Federal. Elas revelam padrões de caos administrativo em negócios bilionários de grupos como JBS, J&F Investimentos, Marfrig, Bertin/Contern, BR Vias, Oeste-Sul, OAS, Comporte, Big Frango, Inepar, Digibrás e Haztec, entre outros.
Nas confissões há relatos de contratos assinados em boates. O suborno variava entre 10% e 30% — quando da “comissão” de um terço do valor do contrato, o empresário levava “garantias” de que não seria importunado com a cobrança do empréstimo.
Os detalhes sobre tráfico de influência, improvisos e métodos incompatíveis com a racionalidade caracterizam a festa com dinheiro dos trabalhadores em negócios obscuros, sob ostensivo patrocínio do PT e do PMDB e encobertos por uma estrutura sindical-corporativista.
É inexplicável que a Caixa tenha demorado ano e meio para começar a investigar suspeitas em negócios com dinheiro do Fundo de Garantia. Ministério Público, Polícia Federal e Controladoria-Geral da União (CGU) estão no caso há 18 meses. A CGU tentou obter uma série de documentos. Às vésperas do Natal de 2015, recebeu alguns dos papéis solicitados. Quase todos censurados.
A Caixa impôs tarjas pretas sobre 90% das páginas dos relatórios sobre as suas decisões de investir recursos do Fundo de Garantia em negócios privados. Um deles, o baiano OAS, recebeu R$ 500 milhões quando já estava à beira da falência.
A decisão tardia sobre os inquéritos internos evidencia uma rede de cumplicidades entre políticos, empresários e burocratas nesse banco público.
José Casado
Eles não estão entendendo
Semana retrasada, antes de retornar a Brasília, um cidadão que não conhecia me interpelou na rua do Passeio, no centro do Rio: “Tem jeito? Tem saída? O Brasil dos políticos se divide hoje entre os que roubaram e os que ainda não conseguiram roubar. Isso vale para a direita e para a esquerda”. Completou com um alerta: “você e seu partido ainda estão em observação...”. Este sentimento de decepção e desconfiança predomina na população brasileira.
Motivos não faltam. O ano legislativo começou com a eleição em 1º turno tanto do presidente do Senado (e do Congresso Nacional) quanto do presidente da Câmara (e vice-presidente da República). Eunício de Oliveira (PMDB/CE) e Rodrigo Maia (DEM/RJ) foram citados em delações da Lava-Jato até com codinomes: “Índio” e “Botafogo”. Dizem “não perder um segundo de sono com isso” (Eunício) e “ter preocupação zero” (Rodrigo). Eduardo Cunha – antecessor de Maia, que o apoiava – usava essas mesmas expressões.
A maioria absoluta de congressistas não considerou relevante o fato – que há de ser apurado com o avanço das investigações, garantidas pelo ministro Fachin. Pior: não pareceu perceber o tamanho da crise da representação. Nas alegações de defesa das candidaturas vitoriosas para todos os cargos de direção das duas Casas, em nenhum momento se falou em tentar superar o abismo que há entre a política institucional, seus partidos e a população. Ao contrário, para aprovar as chamadas ‘reformas’, com seu viés precarizador de direitos dos de baixo, as assembleias ‘da Federação’ e ‘do Povo’ criarão normas ainda mais rígidas para o acesso da cidadania interessada. Sobre eliminar o domínio dos grupos econômicos na política, nada.
Muitos votos dos parlamentares em seus pares, para constituir as Mesas Diretores, derivaram de acordos para nomeação de comissionados e indicação de relatorias de projetos – o que dá visibilidade. A autoproteção para eventuais investigados e réus não faltou: vários vencedores, ao falar em “defesa do Parlamento”, referiam-se aos mandatos sob suspeição. Por trás da aparente calmaria dos grandes vencedores, o consumo de ansiolíticos se amplia...
Só um aspecto do reiterado discurso desafinou: o da propalada “independência do Legislativo”. Aí estão os presidentes da Câmara e do Senado jurando compromisso com a pauta do Executivo, essa mesma que jamais foi apresentada à população quando da constituição originária dos Poderes, nas eleições nacionais de 2014. Nada de novo: Dilma também não implementou o que tinha proclamado na vitoriosa campanha.
Lá se foi o primeiro mês de 2017, com seus sinais nada promissores. Além da morte surpreendente e trágica do então relator da Lava-Jato, a tosca e chocante “torcida” de alguns pelo falecimento – também inesperado – da esposa do ex-presidente Lula, o que divergência política alguma justifica. E as febres amarela e da violência ceifando muitas outras vidas.
Talvez como corolário desses tempos dissonantes, a rádio MPB FM do Rio de Janeiro, que só tocava música brasileira, encerrou suas atividades em fevereiro. Até música boa no dial anda rara... Menos mal que Vinícius e Carlinhos Lyra nos socorrem: “E no entanto é preciso cantar/ mais que nunca é preciso cantar/ e alegrar a cidade”.
Motivos não faltam. O ano legislativo começou com a eleição em 1º turno tanto do presidente do Senado (e do Congresso Nacional) quanto do presidente da Câmara (e vice-presidente da República). Eunício de Oliveira (PMDB/CE) e Rodrigo Maia (DEM/RJ) foram citados em delações da Lava-Jato até com codinomes: “Índio” e “Botafogo”. Dizem “não perder um segundo de sono com isso” (Eunício) e “ter preocupação zero” (Rodrigo). Eduardo Cunha – antecessor de Maia, que o apoiava – usava essas mesmas expressões.
Muitos votos dos parlamentares em seus pares, para constituir as Mesas Diretores, derivaram de acordos para nomeação de comissionados e indicação de relatorias de projetos – o que dá visibilidade. A autoproteção para eventuais investigados e réus não faltou: vários vencedores, ao falar em “defesa do Parlamento”, referiam-se aos mandatos sob suspeição. Por trás da aparente calmaria dos grandes vencedores, o consumo de ansiolíticos se amplia...
Só um aspecto do reiterado discurso desafinou: o da propalada “independência do Legislativo”. Aí estão os presidentes da Câmara e do Senado jurando compromisso com a pauta do Executivo, essa mesma que jamais foi apresentada à população quando da constituição originária dos Poderes, nas eleições nacionais de 2014. Nada de novo: Dilma também não implementou o que tinha proclamado na vitoriosa campanha.
Lá se foi o primeiro mês de 2017, com seus sinais nada promissores. Além da morte surpreendente e trágica do então relator da Lava-Jato, a tosca e chocante “torcida” de alguns pelo falecimento – também inesperado – da esposa do ex-presidente Lula, o que divergência política alguma justifica. E as febres amarela e da violência ceifando muitas outras vidas.
Talvez como corolário desses tempos dissonantes, a rádio MPB FM do Rio de Janeiro, que só tocava música brasileira, encerrou suas atividades em fevereiro. Até música boa no dial anda rara... Menos mal que Vinícius e Carlinhos Lyra nos socorrem: “E no entanto é preciso cantar/ mais que nunca é preciso cantar/ e alegrar a cidade”.
A escassez de esperança
As últimas eleições municipais, conjugadas com a tomada de Michel Temer da Presidência da República, trouxeram um novo alento ao povo brasileiro. No caso de Michel Temer, especialmente porque se abrandou a incerteza em torno da qual gravitava o país, mal comandado por Dilma Rousseff e seu grupo, todos aplicados, e apenas, na tarefa de salvar-lhe o mandato, finalmente ceifado, com a graça de Deus, por seu impeachment.
Durante quase dois anos sobrevivemos, nós, brasileiros, à guerra travada pelos opositores a Dilma, que nada realizou, de um lado pela indigência de ideias e de políticas que pudessem servir para expressar o que se poderia chamar de um governo; o segundo mandato de Dilma foi, ao extremo, desastroso, incapaz e irresponsável. De outro lado, para acentuar tamanha miséria política –, aí colaboraram aplicadamente figuras dos demais Poderes do Estado, do Judiciário e do Legislativo, imersos na desídia, no descaso e no descompromisso com o interesse público.
Um paradeiro de tudo, a não ser da luta permanente e determinada pelo poder que feriu de morte a atividade econômica, o desenvolvimento social e o crescimento do país. O legado é o desemprego, a miséria e a fome de nossos dias. Mergulhamo-nos, sem volta, no mais profundo abismo; e pior que, em dez meses de governo Temer, o que mudou? Nada; pelo contrário, nossas carências se agravaram.
E como não nos bastasse esse quadro de desesperança, as eleições municipais trouxeram com elas as mesmas históricas mazelas. As consequências naturais da entrada de novos mandatários e seus grupos são, muitas vezes, a revisão de tudo que se poderia imaginar como passível de mudanças; quase sempre pouco ou nada evolui, pouco ou nada se transforma porque o modelo de governar é um paciente terminal que ser recusa a morrer. É o modelo que mantém tudo à venda ou disponível ao escambo no grotesco balcão das relações políticas. Trocam-se secretarias, coordenadorias, assessorias ou outros poleiros pelo voto fácil de vereadores das câmaras municipais para aprovação de medidas do interesse de administrações e de seus administradores.
Continuamos descortinando sempre o mesmo palco, onde são levadas as mesmas peças que se repetem em enfadonhas temporadas de quatro anos; mudam-se, às vezes, seus atores, mas se repete a encenação melancólica e vulgar que traduz o deboche e o desrespeito com a sociedade e com a coisa pública.
O Brasil está inundado pela corrupção, pela fraude, pela mentira, pela criminosa inversão de prioridades, que desassiste populações miseráveis para irrigar, por exemplo, orçamentos de câmaras municipais, cuja soma, no país, compromete um investimento de R$ 10 bilhões para seu custeio. Esse é o valor que custa o Legislativo municipal das cidades brasileiras. Tem sentido? É moral tal gasto? É moral o orçamento das assembleias legislativas de todos os Estados brasileiros, da Câmara dos Deputados, do Senado Federal?
Tenhamos também atenção para o que custa o Judiciário brasileiro, cuja vergonha está estampada na recém-votada Lei Orgânica da Magistratura. Um compêndio de privilégios, que corrói talvez a última esperança que a sociedade ainda tem, que é no Poder Judiciário. Perdida essa esperança, o que nos restará?
Durante quase dois anos sobrevivemos, nós, brasileiros, à guerra travada pelos opositores a Dilma, que nada realizou, de um lado pela indigência de ideias e de políticas que pudessem servir para expressar o que se poderia chamar de um governo; o segundo mandato de Dilma foi, ao extremo, desastroso, incapaz e irresponsável. De outro lado, para acentuar tamanha miséria política –, aí colaboraram aplicadamente figuras dos demais Poderes do Estado, do Judiciário e do Legislativo, imersos na desídia, no descaso e no descompromisso com o interesse público.
E como não nos bastasse esse quadro de desesperança, as eleições municipais trouxeram com elas as mesmas históricas mazelas. As consequências naturais da entrada de novos mandatários e seus grupos são, muitas vezes, a revisão de tudo que se poderia imaginar como passível de mudanças; quase sempre pouco ou nada evolui, pouco ou nada se transforma porque o modelo de governar é um paciente terminal que ser recusa a morrer. É o modelo que mantém tudo à venda ou disponível ao escambo no grotesco balcão das relações políticas. Trocam-se secretarias, coordenadorias, assessorias ou outros poleiros pelo voto fácil de vereadores das câmaras municipais para aprovação de medidas do interesse de administrações e de seus administradores.
Continuamos descortinando sempre o mesmo palco, onde são levadas as mesmas peças que se repetem em enfadonhas temporadas de quatro anos; mudam-se, às vezes, seus atores, mas se repete a encenação melancólica e vulgar que traduz o deboche e o desrespeito com a sociedade e com a coisa pública.
O Brasil está inundado pela corrupção, pela fraude, pela mentira, pela criminosa inversão de prioridades, que desassiste populações miseráveis para irrigar, por exemplo, orçamentos de câmaras municipais, cuja soma, no país, compromete um investimento de R$ 10 bilhões para seu custeio. Esse é o valor que custa o Legislativo municipal das cidades brasileiras. Tem sentido? É moral tal gasto? É moral o orçamento das assembleias legislativas de todos os Estados brasileiros, da Câmara dos Deputados, do Senado Federal?
Tenhamos também atenção para o que custa o Judiciário brasileiro, cuja vergonha está estampada na recém-votada Lei Orgânica da Magistratura. Um compêndio de privilégios, que corrói talvez a última esperança que a sociedade ainda tem, que é no Poder Judiciário. Perdida essa esperança, o que nos restará?
A inteligência artificial e o futuro do trabalho
A decisão dos ingleses de deixar a União Europeia e a eleição de Donald Trump pelos americanos parecem ter ao menos um elemento em comum: em ambos os casos as populações de cidades e Estados que vêm sofrendo estagnação ou algum declínio econômico penderam para essas soluções de eficácia ainda a ser provada. Por trás desses votos em comunidades sem avanços econômicos significativos nas últimas décadas, o maior temor é de que as oportunidades de trabalho se tornem mais e mais escassas.
Entretanto, por mais que os defensores do Brexit e da Trumponomics prometam “trazer os empregos de volta”, essa visão está longe de se mostrar de fácil realização. O economista Mark Muro, da Brooking Institution, afirma, em entrevista publicada em 22/1 no Estado, que a digitalização e a automação têm permitido a produção de bens e serviços com alto valor agregado sem se ter de empregar grande número de pessoas. Mesmo o retorno de algumas instalações industriais aos Estados Unidos não teria como causar impacto relevante no número de empregos.
A mesma lógica de desaparecimento gradual das vagas de emprego que afeta os EUA e a Inglaterra também engloba o Brasil ou qualquer outro país. Por essa razão, a questão dos desafios do trabalho é tão relevante e, para otimistas e pessimistas, tem tudo para ficar ainda mais intensa no futuro. Isso porque os últimos anos têm revelado um avanço descomunal não somente em termos de automação ou digitalização, mas na evolução da chamada “inteligência artificial” (AI). E um avanço ainda maior é esperado já para os próximos anos, não apenas para as próximas décadas.
A AI surgiu há cerca de 50 anos, com a missão de desenvolver máquinas capazes de resolver problemas anteriormente limitados à resolução por cérebros humanos. Um grande marco da inteligência artificial foi alcançado com duas séries de jogos de xadrez entre o então campeão mundial Garry Kasparov e o supercomputador da IBM chamado Deep Blue. Em 1996, na Filadélfia, Kasparov ganhou a série de embates por 4 a 2. Em 1997, em Nova York, uma segunda série de seis jogos – também sob as regras de torneios internacionais – terminou com a vitória do Deep Blue por 3,5 a 2,5. Apesar desse feito extraordinário, os avanços da AI nos anos que se seguiram acabaram por se mostrar decepcionantes, até para tarefas bem mais triviais do que bater um grande mestre, como, por exemplo, as soluções de reconhecimento de voz.
Com o objetivo de analisar sua evolução e seus impactos sociais, a revista The Economist publicou em meados de 2016 um detalhado relatório sobre a AI. Segundo ela, “depois de muitas falsas largadas, a inteligência artificial finalmente decolou”. Um símbolo desse salto seriam os resultados de um concurso anual de reconhecimento de imagens chamado ImageNet Challenge, em que milhões de imagens são rotuladas com a identificação do tipo de figura que representam e alimentadas em sistemas de AI concorrentes. Em 2010 o sistema vencedor conseguiu identificar 72% das imagens. Essa taxa foi aumentando ano a ano e apenas dois anos atrás (2015) outro sistema conseguiu identificar 96% das imagens, ultrapassando pela primeira vez o patamar de reconhecimento médio dos seres humanos, de 95%.
Esse exemplo ilustra o veio mais promissor de evolução da AI, chamado deep learning, ou aprendizagem profunda. A aprendizagem profunda baseia-se em redes neurais artificiais que seriam “treináveis” pelo processamento de enormes quantidades de dados, em vez de serem sistemas “explicitamente programados”. Tais dispositivos já têm sido utilizados em mecanismos de busca, bloqueadores de spams, tradutores, detectores de fraudes em cartões de crédito e nas experiências com veículos autodirigíveis. Outro exemplo impressionante são os [ITALIC]softwares[/ITALIC] de reconhecimento facial. Já existem em funcionamento quatro deles com precisão maior que 99,5%, ante uma taxa de acerto médio dos humanos de 97,5%.
Os impactos dessa “decolagem” da AI, embora não totalmente antecipáveis, prometem ser cruciais para o futuro da humanidade. O renomado físico Stephen Hawking, em artigo publicado em dezembro de 2016 no jornal "The Guardian", sustenta que “a automação das fábricas já dizimou postos de trabalho na manufatura tradicional e a ascensão da inteligência artificial provavelmente estenderá a destruição às funções das classes médias, com a sobrevivência apenas dos papéis mais criativos, de supervisão ou de cuidados pessoais”. A própria The Economist cita estudos que estimam que entre um terço e metade das funções correm o risco de ser automatizadas. As mais vulneráveis ao avanço da AI seriam as funções de rotina, tanto manuais quanto intelectuais.
Será que estaríamos chegando finalmente à plenitude da Terceira Onda, descrita por Alvin Tofler em 1980? Conseguirão os países e seus líderes reconfigurar novamente para melhor suas sociedades com o advento da AI – da mesma forma que a civilização prosperou e criou novas ocupações com a mecanização e a automação no passado –, mesmo se antevendo um impacto centenas de vezes mais intenso e rápido que nos casos anteriores?
Otimistas ou pessimistas, aqueles que têm voz na definição do futuro de suas empresas, sociedades e países deveriam regozijar-se com mais essa vitória da humanidade sobre o labor interminável e pouco significativo das tarefas repetitivas. Deveriam também privilegiar e fomentar um importantíssimo fator que esteve presente na assimilação socialmente equilibrada das mudanças tecnológicas anteriores (e no qual o Brasil tem falhado de maneira recorrente): a educação e requalificação para o desempenho de atividades mais complexas e que demandam maior capacidade cognitiva, flexibilidade, criatividade e colaboração.
A mesma lógica de desaparecimento gradual das vagas de emprego que afeta os EUA e a Inglaterra também engloba o Brasil ou qualquer outro país. Por essa razão, a questão dos desafios do trabalho é tão relevante e, para otimistas e pessimistas, tem tudo para ficar ainda mais intensa no futuro. Isso porque os últimos anos têm revelado um avanço descomunal não somente em termos de automação ou digitalização, mas na evolução da chamada “inteligência artificial” (AI). E um avanço ainda maior é esperado já para os próximos anos, não apenas para as próximas décadas.
A AI surgiu há cerca de 50 anos, com a missão de desenvolver máquinas capazes de resolver problemas anteriormente limitados à resolução por cérebros humanos. Um grande marco da inteligência artificial foi alcançado com duas séries de jogos de xadrez entre o então campeão mundial Garry Kasparov e o supercomputador da IBM chamado Deep Blue. Em 1996, na Filadélfia, Kasparov ganhou a série de embates por 4 a 2. Em 1997, em Nova York, uma segunda série de seis jogos – também sob as regras de torneios internacionais – terminou com a vitória do Deep Blue por 3,5 a 2,5. Apesar desse feito extraordinário, os avanços da AI nos anos que se seguiram acabaram por se mostrar decepcionantes, até para tarefas bem mais triviais do que bater um grande mestre, como, por exemplo, as soluções de reconhecimento de voz.
Com o objetivo de analisar sua evolução e seus impactos sociais, a revista The Economist publicou em meados de 2016 um detalhado relatório sobre a AI. Segundo ela, “depois de muitas falsas largadas, a inteligência artificial finalmente decolou”. Um símbolo desse salto seriam os resultados de um concurso anual de reconhecimento de imagens chamado ImageNet Challenge, em que milhões de imagens são rotuladas com a identificação do tipo de figura que representam e alimentadas em sistemas de AI concorrentes. Em 2010 o sistema vencedor conseguiu identificar 72% das imagens. Essa taxa foi aumentando ano a ano e apenas dois anos atrás (2015) outro sistema conseguiu identificar 96% das imagens, ultrapassando pela primeira vez o patamar de reconhecimento médio dos seres humanos, de 95%.
Esse exemplo ilustra o veio mais promissor de evolução da AI, chamado deep learning, ou aprendizagem profunda. A aprendizagem profunda baseia-se em redes neurais artificiais que seriam “treináveis” pelo processamento de enormes quantidades de dados, em vez de serem sistemas “explicitamente programados”. Tais dispositivos já têm sido utilizados em mecanismos de busca, bloqueadores de spams, tradutores, detectores de fraudes em cartões de crédito e nas experiências com veículos autodirigíveis. Outro exemplo impressionante são os [ITALIC]softwares[/ITALIC] de reconhecimento facial. Já existem em funcionamento quatro deles com precisão maior que 99,5%, ante uma taxa de acerto médio dos humanos de 97,5%.
Os impactos dessa “decolagem” da AI, embora não totalmente antecipáveis, prometem ser cruciais para o futuro da humanidade. O renomado físico Stephen Hawking, em artigo publicado em dezembro de 2016 no jornal "The Guardian", sustenta que “a automação das fábricas já dizimou postos de trabalho na manufatura tradicional e a ascensão da inteligência artificial provavelmente estenderá a destruição às funções das classes médias, com a sobrevivência apenas dos papéis mais criativos, de supervisão ou de cuidados pessoais”. A própria The Economist cita estudos que estimam que entre um terço e metade das funções correm o risco de ser automatizadas. As mais vulneráveis ao avanço da AI seriam as funções de rotina, tanto manuais quanto intelectuais.
Será que estaríamos chegando finalmente à plenitude da Terceira Onda, descrita por Alvin Tofler em 1980? Conseguirão os países e seus líderes reconfigurar novamente para melhor suas sociedades com o advento da AI – da mesma forma que a civilização prosperou e criou novas ocupações com a mecanização e a automação no passado –, mesmo se antevendo um impacto centenas de vezes mais intenso e rápido que nos casos anteriores?
Otimistas ou pessimistas, aqueles que têm voz na definição do futuro de suas empresas, sociedades e países deveriam regozijar-se com mais essa vitória da humanidade sobre o labor interminável e pouco significativo das tarefas repetitivas. Deveriam também privilegiar e fomentar um importantíssimo fator que esteve presente na assimilação socialmente equilibrada das mudanças tecnológicas anteriores (e no qual o Brasil tem falhado de maneira recorrente): a educação e requalificação para o desempenho de atividades mais complexas e que demandam maior capacidade cognitiva, flexibilidade, criatividade e colaboração.
Imagem do Dia
Juan Rulfo, escritor mexicano, autor de "Pedro Páramo", que completaria seu centenário este ano, também adorava fotografia |
Minha nova e obscena obsessão
Tenho alimentado ao longo da minha vida, enquanto escritor, um certo número de obsessões. Obsessões são fundamentais no processo criativo. Um escritor não deve ter medo de se repetir. Em literatura (ou nas artes plásticas, no cinema ou na música) a repetição tem um belo nome: chama-se estilo.
Sempre que ouço alguém falar sobre o processo criativo dos escritores e o papel das obsessões nesse processo, lembro-me de um caso que me contou a escritora espanhola Rosa Montero. Conheci Rosa há uns bons dez anos, em Roma, no júri de um prêmio literário do qual eu também fazia parte. Foi um caso de amizade à primeira vista. Descobrimos que partilhávamos várias obsessões, a começar pelas lagartixas — o narrador de um dos meus romances é uma lagartixa; num dos romances de Rosa uma das personagens principais tem uma lagartixa como mascote. Além disso Rosa tatuou uma lagartixa no pulso direito.
Outra das obsessões de Rosa são os anões. Essa particular obsessão irritou um ou dois críticos literários. Incomodada, Rosa prometeu a si mesma escrever um romance no qual não entrasse nenhum personagem baixinho. Tinha algumas ideias. Começou a desenvolvê-las. Contudo, o romance resistia. Não avançava. Decorreram semanas num combate infeliz. Finalmente, o nó desfez-se e o romance começou a desenrolar-se. Publicou-se o livro. Numa das primeiras entrevistas, um dos jornalistas troçou: “Mais um anão, Rosa?!”. Só nessa altura a escritora se deu conta de que uma das personagens surgia nas páginas iniciais do livro com uma estatura mediana; porém, ia perdendo centímetros ao longo das páginas. No desfecho, era já uma mulher muitíssimo pequena.
Conclusão? Em primeiro lugar convém não levar demasiado a sério as críticas maldosas; em segundo lugar, não devemos nunca lutar contra as nossas obsessões. Afinal de contas, são elas que nos empurram para a escrita.
São raros os grandes artistas que nunca se repetem. As exceções sempre me deram um certo medo. O diretor pernambucano Heitor Dhalia é um bom exemplo. Vi “O cheiro do ralo”, em 2006, e fiquei muito impressionado com o vigor iconoclasta e a ousadia formal do projeto. Três anos mais tarde entrei numa sala de cinema, um pouco por acaso, e assisti ao doce “À deriva”. Não sabia quem era o diretor. Julguei — pelo ritmo, pela temperatura das cores, pelo olhar sobre o Brasil — que fosse algum europeu da velha guarda, por certo um francês. Não acreditei quando, à saída do cinema, um amigo me assegurou que o diretor do filme era a mesma pessoa responsável pel’“O cheiro do ralo”. Mais recentemente vi “Serra Pelada”. Gosto dos três filmes, por motivos diversos, e nem podia ser de outra forma, já que não existe a menor relação de parentesco entre eles. É como se “O outono do patriarca”, “À espera dos bárbaros”, e “O último voo do flamingo”, para citar três romances de autores com estilos muito diferentes (García Márquez, Coetzee e Mia Couto), tivessem sido escritos pela mesma pessoa.
Imagino três sujeitos, cada um deles com uma firme e exuberante personalidade, coexistindo no interior do espírito espaçoso (tem de ser mesmo muito espaçoso) de Heitor Dhalia. Ou isso, ou ele aluga o seu espírito a diferentes entidades. Não conheço pessoalmente Dhalia, mas gostaria muito.
Tudo isto para dizer que me descobri, recentemente, prisioneiro de uma nova obsessão, por sinal particularmente obscena e inquietante: Donald Trump. A verdade — confesso com vergonha — é que dou por mim a pesquisar, logo de manhã, muito cedo, os últimos escândalos do personagem. Leio tudo, em português, inglês, francês e espanhol. Chego até a usar o Google Tradutor, com consequências trágicas, para tentar perceber o que escrevem sobre ele os jornais russos. A minha namorada proibiu-me de voltar a mencionar o nome de Trump diante dela, sobretudo durante as refeições. Não consigo. Sei sobre Trump coisas que não pretendo saber sobre mim. Hoje mesmo, enquanto escrevia esta coluna, descobri que o cabelo de Trump tem aquele aspecto curioso porque, segundo um dos seus médicos, ele toma todos os dias um antiandrogênio destinado a combater a calvície. O medicamento pode ter efeitos secundários desagradáveis. Não os mencionarei aqui.
Felizmente, ou infelizmente, não estou sozinho nesta obsessão. Tenho a certeza de que Donald Trump será personagem de muitas centenas de livros e de filmes ao longo das próximas décadas. Ocorre-me que o mundo teria imenso a ganhar se nos fosse possível ler esses livros e ver esses filmes hoje, e não daqui a cinquenta anos. Imagino que o passado seria mais agradável se a humanidade tivesse lido, ontem, o que se escreve hoje sobre Hitler, Mao ou Stalin. Tiranos loucos podem dar bons personagens literários. O ideal seria tê-los apenas como ficção. Ficção preventiva, digamos assim.
José Eduardo Agualusa
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