Tenho alimentado ao longo da minha vida, enquanto escritor, um certo número de obsessões. Obsessões são fundamentais no processo criativo. Um escritor não deve ter medo de se repetir. Em literatura (ou nas artes plásticas, no cinema ou na música) a repetição tem um belo nome: chama-se estilo.
Sempre que ouço alguém falar sobre o processo criativo dos escritores e o papel das obsessões nesse processo, lembro-me de um caso que me contou a escritora espanhola Rosa Montero. Conheci Rosa há uns bons dez anos, em Roma, no júri de um prêmio literário do qual eu também fazia parte. Foi um caso de amizade à primeira vista. Descobrimos que partilhávamos várias obsessões, a começar pelas lagartixas — o narrador de um dos meus romances é uma lagartixa; num dos romances de Rosa uma das personagens principais tem uma lagartixa como mascote. Além disso Rosa tatuou uma lagartixa no pulso direito.
Outra das obsessões de Rosa são os anões. Essa particular obsessão irritou um ou dois críticos literários. Incomodada, Rosa prometeu a si mesma escrever um romance no qual não entrasse nenhum personagem baixinho. Tinha algumas ideias. Começou a desenvolvê-las. Contudo, o romance resistia. Não avançava. Decorreram semanas num combate infeliz. Finalmente, o nó desfez-se e o romance começou a desenrolar-se. Publicou-se o livro. Numa das primeiras entrevistas, um dos jornalistas troçou: “Mais um anão, Rosa?!”. Só nessa altura a escritora se deu conta de que uma das personagens surgia nas páginas iniciais do livro com uma estatura mediana; porém, ia perdendo centímetros ao longo das páginas. No desfecho, era já uma mulher muitíssimo pequena.
Conclusão? Em primeiro lugar convém não levar demasiado a sério as críticas maldosas; em segundo lugar, não devemos nunca lutar contra as nossas obsessões. Afinal de contas, são elas que nos empurram para a escrita.
São raros os grandes artistas que nunca se repetem. As exceções sempre me deram um certo medo. O diretor pernambucano Heitor Dhalia é um bom exemplo. Vi “O cheiro do ralo”, em 2006, e fiquei muito impressionado com o vigor iconoclasta e a ousadia formal do projeto. Três anos mais tarde entrei numa sala de cinema, um pouco por acaso, e assisti ao doce “À deriva”. Não sabia quem era o diretor. Julguei — pelo ritmo, pela temperatura das cores, pelo olhar sobre o Brasil — que fosse algum europeu da velha guarda, por certo um francês. Não acreditei quando, à saída do cinema, um amigo me assegurou que o diretor do filme era a mesma pessoa responsável pel’“O cheiro do ralo”. Mais recentemente vi “Serra Pelada”. Gosto dos três filmes, por motivos diversos, e nem podia ser de outra forma, já que não existe a menor relação de parentesco entre eles. É como se “O outono do patriarca”, “À espera dos bárbaros”, e “O último voo do flamingo”, para citar três romances de autores com estilos muito diferentes (García Márquez, Coetzee e Mia Couto), tivessem sido escritos pela mesma pessoa.
Imagino três sujeitos, cada um deles com uma firme e exuberante personalidade, coexistindo no interior do espírito espaçoso (tem de ser mesmo muito espaçoso) de Heitor Dhalia. Ou isso, ou ele aluga o seu espírito a diferentes entidades. Não conheço pessoalmente Dhalia, mas gostaria muito.
Tudo isto para dizer que me descobri, recentemente, prisioneiro de uma nova obsessão, por sinal particularmente obscena e inquietante: Donald Trump. A verdade — confesso com vergonha — é que dou por mim a pesquisar, logo de manhã, muito cedo, os últimos escândalos do personagem. Leio tudo, em português, inglês, francês e espanhol. Chego até a usar o Google Tradutor, com consequências trágicas, para tentar perceber o que escrevem sobre ele os jornais russos. A minha namorada proibiu-me de voltar a mencionar o nome de Trump diante dela, sobretudo durante as refeições. Não consigo. Sei sobre Trump coisas que não pretendo saber sobre mim. Hoje mesmo, enquanto escrevia esta coluna, descobri que o cabelo de Trump tem aquele aspecto curioso porque, segundo um dos seus médicos, ele toma todos os dias um antiandrogênio destinado a combater a calvície. O medicamento pode ter efeitos secundários desagradáveis. Não os mencionarei aqui.
Felizmente, ou infelizmente, não estou sozinho nesta obsessão. Tenho a certeza de que Donald Trump será personagem de muitas centenas de livros e de filmes ao longo das próximas décadas. Ocorre-me que o mundo teria imenso a ganhar se nos fosse possível ler esses livros e ver esses filmes hoje, e não daqui a cinquenta anos. Imagino que o passado seria mais agradável se a humanidade tivesse lido, ontem, o que se escreve hoje sobre Hitler, Mao ou Stalin. Tiranos loucos podem dar bons personagens literários. O ideal seria tê-los apenas como ficção. Ficção preventiva, digamos assim.
José Eduardo Agualusa
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