quinta-feira, 12 de dezembro de 2019

Desigualdade rouba até 18 anos de expectativa de vida na América Latina

Uma mulher que mora em uma das áreas menos favorecidas de Santiago viverá 18 anos a menos do que outra mulher que more na mesma cidade, mas em um bairro mais abastado. A vida dessa mulher — e de muitas outras — será quase duas décadas mais curta por culpa das brutais desigualdades da capital chilena, que por esses dias protagoniza numerosas revoltas contra seu Governo com essas injustiças como principal argumento.


“Acreditávamos que no Panamá e em Santiago as diferenças iriam ser importantes porque são dois países com muita desigualdade e as grandes cidades costumam representar a desigualdade dos países”, diz Usama Bilal, “mas no caso de Santiago a magnitude do problema nos surpreendeu”. O epidemiologista espanhol, pesquisador da Universidade Drexel, é o principal autor de um estudo publicado no The Lancet Planetary Health e que pela primeira vez coloca números na desigualdade social em seis grandes cidades latino-americanas que somam mais de 50 milhões de habitantes.

“Hoje, em Santiago, há protestos e a desigualdade social está no centro desses protestos. Nós fornecemos dados às pessoas para que possam ver que é real, que existe. E que seja a sociedade a dar a resposta se essa desigualdade é socialmente aceitável”, afirma Bilal. E acrescenta: “Esses dados podem empoderar a população para que ela faça pedidos aos seus governantes”.

Em Santiago, dependendo da região da cidade, as diferenças de expectativa de vida são esses 18 anos para mulheres e nove para homens; na cidade do Panamá, de 15 anos para ambos os sexos; na Cidade do México, de 11 para homens e nove para mulheres; em Buenos Aires (Argentina) e em Belo Horizonte (Brasil) de quatro e seis; e de quatro e três em San José da Costa Rica.
“Acreditávamos que as diferenças seriam importantes, mas no caso de Santiago a magnitude do problema nos surpreendeu”, diz Bilal

“Esses resultados destacam a importância de desenvolver políticas urbanas focadas em reduzir desigualdades sociais e melhorar condições sociais e ambientais nos bairros mais pobres das cidades da América Latina”, diz Ana Diez Roux, coautora do estudo e pesquisadora principal do projeto Salurbal, que estuda como as políticas e distribuições urbanas influenciam na saúde dos latino-americanos.

“Vendo os mapas observamos padrões muito claros em alguns lugares; por exemplo, se você observa um mapa da pobreza de Santiago, é praticamente nosso mapa de expectativa de vida, mas ao contrário”, diz Bilal. “Esses padrões que aparecem nas cidades nos mostram que não é aleatória essa divisão de expectativa de vida e que esse algo determina a segregação espacial”, diz o especialista de 33 anos.

“Esses resultados destacam a importância de desenvolver políticas urbanas focadas em reduzir desigualdades sociais”, afirma Ana Diez Roux

No caso de Santiago, os pesquisadores se surpreenderam com a magnitude da diferença, quase 20 anos, porque são desigualdades que costumam ser encontradas em unidades urbanas menores: no âmbito do bairro e no do distrito. Em Madri (Espanha), entretanto, há diferenças de 10 anos de expectativa de vida entre os bairros mais privilegiados e os mais desfavorecidos (somente de quatro anos entre os distritos), enquanto em Buenos Aires está por volta da metade. “Quando há poucas diferenças pode ser que as unidades urbanas sejam muito heterogêneas”, afirma Bilal, de modo que a segregação não é tão segmentada. Não podem divulgar expectativas exatas de vida associadas a bairros concretos nesse estudo por questões de confidencialidade.
Brecha educacional e econômica

Para analisar o impacto do nível socioeconômico nessas diferenças, os cientistas usaram dados do nível educacional, que lhes serviram de indicador claro dos recursos de cada segmento da população, que pode explicar grande parte dessa brecha. No caso de Santiago, a diferença em expetativa de vida entre as áreas com maiores e menores níveis de estudos pode chegar a ser de até oito anos para homens e 12 anos no caso das mulheres.

“Essa é a primeira vez que se mapeia a magnitude extrema das desigualdades em expectativa de vida em várias cidades da América Latina, e constitui um primeiro passo fundamental para poder diminuí-las e erradicá-las no futuro”, afirma o epidemiologista. Começou com seis, mas Bilal tem 2 milhões de dólares (8 milhões de reais) dos Institutos Nacionais de Saúde dos EUA (NIH) para estudar a saúde dos habitantes das mais de 700 cidades com mais de 100.000 habitantes dos EUA e 10 países latino-americanos.
“Esses dados podem empoderar as pessoas para que elas façam pedidos aos seus governantes”, afirma o epidemiologista

A América Latina é uma das regiões mais desiguais do planeta, mas muitas dessas injustiças permanecem desconhecidas por falta de dados concretos que as materializem em toda sua crueza em cima da mesa. E as cidades são bons laboratórios para se estudar esses problemas sociais que prejudicam a saúde da população como a pior das epidemias. De modo que uma equipe de epidemiologistas, coordenada por Bilal, decidiu apontar o microscópio à desigualdade urbana latino-americana, onde 80% da população vive.

Esse estudo é a prova de conceito de que suas medições funcionam, por isso escolheram cidades que tiveram bons dados de grande quantidade de distritos diferentes (e bairros). Mais adiante reduzirão as dimensões dessas células mínimas de estudos a blocos menores, com dados que permitam aos pesquisadores georreferenciar as mortes e encontrar padrões e correlações mais claras.

Os pesquisadores observaram maior diferença dentro das cidades do que entre elas, como afirma Bilal: “Se compararmos entre as cidades, a desigualdade é menor do que dentro delas, por isso não costuma ser muito útil quando falamos da expectativa de vida de uma cidade inteira, menos ainda se falamos da expectativa de vida dos países”.

Pirralha pôs o capitão na roda e ainda tirou onda

O cérebro de Jair Bolsonaro começa a funcionar no momento em que ele acorda e não para até que ele estacione o carro oficial na frente do Palácio da Alvorada para conversar com os repórteres. Ali, ao vislumbrar microfones e gravadores, a língua do presidente perde o contato com seus neurônios. E a massa cinzenta de Bolsonaro envia para os seus lábios pensamentos sombrios. Foi num desses momentos que o capitão pronunciou —do nada, sem que ninguém perguntasse— o nome de Greta Thunberg, a adolescente sueca que virou ambientalista.

Os repórteres perguntaram a Bolsonaro se ele estava preocupado com a morte de dois índios Guajajara, no Maranhão. Ninguém mencionou o nome de Greta. Mas a língua do presidente, hoje a principal liderança da oposição, achou que seria uma grande ideia colocar na roda a ativista mirim da Suécia. A língua estava irritada porque Greta dissera nas redes sociais que os índios são assassinados no Brasil por tentarem proteger a floresta do desmatamento ilegal.

"Qual o nome daquela menina lá? Lá de fora, lá. Aquela Tabata, não. Como é? Greta. A Greta já falou que os índios morreram porque estão defendendo a Amazônia", ironizou a língua do presidente. "É impressionante a imprensa dar espaço para uma pirralha dessa aí. Uma pirralha!"


Difícil saber o que impressiona mais, se a fama planetária da pirralha ou se o gênio presidencial que se deixa hipnotizar pelas palavras de uma adolescente que ele considera abominável. De um lado, uma menina de 16 anos. Na outra ponta, um tiozão de 64 anos que macaqueia o ídolo Donald Trump, outro crítico mordaz da criança ambientalista.

Greta respondeu à língua de Bolsonaro nas redes sociais, o habitat natural do presidente. Com humor ferino, ela adotou no seu perfil eletrônico a definição de "pirralha"— assim, na língua do detrator, sem tradução. Por mal dos pecados, a revista Time elegeu Greta como personalidade do ano de 2019. Fez isso menos de 24 horas depois de Bolsonaro ter manifestado sua inconformidade com o destaque que a mídia dá à pirralha.

Nesse embate inusitado, a pirralha nocauteou o capitão. A adolescente jogou a isca. E o tiozão mordeu. A menina de 16 anos colocou a genialidade sexagenária na roda. E ainda tirou onda. O porta-voz da Presidência, Rêgo Barros, negou que Bolsonaro tenha sido descortês. "Pirralha é uma pessoa de pequena estatura, uma criança", ele disse. Verdade. O problema é que Greta está em fase de crescimento. E Bolsonaro encolhe a cada entrevista que concede na porta do Alvorada.

Teocracia? Não, obrigado

A história da velha Europa devia servir pelo menos para perceber que quando a religião manda no Estado a coisa vai sempre correr mal, mais tarde ou mais cedo. As guerras religiosas que os povos europeus sofreram há séculos são o exemplo acabado disso mesmo. A revolução americana mostrou que a via do estado laico é melhor garantia da liberdade de crença e prática religiosa a todos os cidadãos. Todavia as religiões sempre pugnaram por deter nas suas mãos o poder político ou pelo menos viverem em concubinato com ele, influenciando-o no sentido da satisfação dos seus próprios interesses.

Por seu lado a revolução francesa seguiu um caminho contra a religião e deu lugar à desgraça jacobina que se viu. No seu afã de se mostrarem diferentes dos ingleses os franceses experimentaram um caminho perigoso que levou a altos e baixos, mas com imenso sofrimento de muita gente. De facto a melhor resposta não é a imposição social do laicismo a uma sociedade que em grande parte nunca deixou de ser religiosa.

Toda a gente se incomoda com o regime teocrático xiita que sufoca gerações no Irão desde 1979. O país está a viver a crise mais profunda dos últimos 40 anos. Pede-se nas ruas o fim do governo islâmico e, em consequência, a repressão provocou quase 450 mortos em apenas quatro dias, segundo o “The New York Times”. Há muito quem sonhe com uma teocracia cristã no seu país, embalados por uma escatologia controversa e de legitimidade hermenêutica muito discutível. A ideia de que mundo está no “maligno” (I João 5:19), associada a algumas tradições exegéticas de tipo triunfalista, acabam por potenciar a luta para assumir o poder político em nome da fé. Mas a experiência diz que quando uma religião assume o poder acabará por perseguir todas as outras, por se achar a única iluminada por Deus, e por tentar a proeminência quando não mesmo o monopólio do mercado religioso.


Veja-se o caso dos Estados Unidos. Os líderes evangélicos desde há muito que se têm vindo a movimentar, através da Moral Majority, e depois do Tea Party e dos neoconservadores de direita para imporem a sua agenda política. Chegou-se ao ponto de defender cegamente Trump em nome dos ganhos dessa agenda, como o apoio incondicional a todas as movimentações políticas e militares do moderno estado de Israel (como se esta fosse a mesma nação aliançada com Iavé nos tempos do Antigo Testamento), e os tópicos da moral sexual. As recentes declarações de Franklim Graham (filho do famoso evangelista Billy Graham) diabolizaram todos que se opõem à política errática do presidente americano. O próprio Trump chamou para a Casa Branca Paula White, uma tele-evangelista milionária e espalhafatosa que prega a teologia da prosperidade, tão ao jeito da religião yankee.

Um dia ouvi uma das expoentes do carismatismo americano afirmar publicamente em Lisboa, que as igrejas nos EUA estavam a pedir a Deus para que a oração antes de cada aula nas escolas públicas americanas voltasse a ser lei, o que é anticonstitucional e sobretudo uma atroz falta de bom senso. Então crentes e não crentes ou crianças de famílias de outras religiões teriam que se sujeitar a uma acção religiosa? Gostariam eles que, se vivessem num país muçulmano os filhos tivesses que rezar a Alá todos os dias na escola?

Mas veja-se o caso ainda mais problemático do Brasil de Bolsonaro. Um capitão extremista de direita, expulso do exército e que durante as décadas em que foi deputado federal nunca contribuiu para o país com qualquer projecto de lei que se visse, ganhou as eleições graças ao dualismo político actual em terras de Vera Cruz. Havia que combater o lulismo e os eleitores castigaram o PT devido à extrema corrupção e insegurança no país irmão. Os evangélicos foram especialmente motivados contra a agenda fracturante do governo Dilma, mas há muitos anos que sonham com um presidente evangélico que estabeleça uma espécie de teocracia cristã no Brasil.

Mas quando é que esta gente entenderá que Jesus Cristo nunca frequentou os corredores do poder, e nunca disputou eleições porque, como disse: “O meu reino não é deste mundo; se o meu reino fosse deste mundo, pelejariam os meus servos, para que eu não fosse entregue aos judeus; mas agora o meu reino não é daqui” (João 18:36)? Quando irão compreender que foi ele o primeiro a definir uma separação clara entre estado e religião: “Dai pois a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus” (Mateus 22:21).

Os líderes religiosos que lutam por alcançar poder político apenas revelam que não têm estatura moral e espiritual para o desempenho das suas funções pastorais. Além disso, como diz o académico Roberto Romano: “Se a democracia ostenta defeitos, suas mazelas confessadamente têm origem em seres humanos que erram e podem corrigir seus equívocos. Com a teocracia nenhum limite obriga o governante, pois seus decretos são divinos. No fundo de todo teocrata dormita um totalitário. É tempo de aprender tal lição da história religiosa e política.” 

Brasil da Justiça à bala


Bolsonaro estuda reeditar decreto de Temer que permite explorar minério na Renca

O Governo de Jair Bolsonaro estuda reeditar o decreto da gestão Michel Temer que pretendia extinguir a Reserva Nacional do Cobre e Associados (Renca), uma floresta preservada de 46.450 quilômetros quadrados localizada nos Estados do Pará e do Amapá, no Norte do Brasil. O objetivo é permitir a exploração mineral de parte dessa área, que equivale à metade de Portugal. Em 2017, o então presidente Michel Temer tentou acabar com a proteção ambiental da zona sob o mesmo pretexto, o de exploração comercial. A pressão de parte da opinião pública e de representantes da classe artística brasileira, no entanto, fez com que ele revogasse o decreto que tratava do tema.


Um ano depois, sem alarde, Temer publicou um decreto que deixa em aberto a possibilidade de exploração mineral na área. Até o momento, nenhum novo registro de exploração foi feito, segundo técnicos do Ministério das Minas e Energia.

A proposta sobre a elaboração dos estudos para extinguir a Renca surgiu já no início da gestão Bolsonaro, foi reforçada em abril, quando o presidente esteve em Macapá (AP) inaugurando um aeroporto e ganhou força na última semana, depois que ele foi questionado por parlamentares governistas. “Almocei com o presidente na semana passada e ele me falou que mandou fazer os estudos”, afirmou ao EL PAÍS o vice-líder do Governo no Senado, Lucas Barreto (PSD-AP). Ele é um dos principais defensores da liberação de parte da área da reserva para mineração. Dois assessores com acesso ao Palácio do Planalto confirmaram a versão de Barreto e disseram que a decisão sobre o tema está próxima de ser tomada.

Antes de fazer qualquer anúncio sobre a Renca, Bolsonaro assinou na terça-feira a medida provisória da regularização fundiária, chamada por opositores de “MP da Grilagem”. Por meio dela será possível fazer a autodeclaração de imóveis rurais de até 1.650 hectares que não tenham registros. A expectativa é que cerca de 600.000 áreas sejam registradas, parte delas na Amazônia.

Líder da oposição no Senado, Randolfe Rodrigues (REDE-AP), levou nesta semana a preocupação com o tema para a Conferência do Clima em Madri (COP 25), onde ele participa de uma série de reuniões e painéis com autoridades ambientais e representantes de governos estrangeiros. “Todos com quem converso estão escandalizados com a possibilidade de se extinguir a Renca”, disse Rodrigues.

Na avaliação do senador, o Governo tem dado vários sinais de que um decreto está próximo de ser assinado e as falas públicas do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, demonstram que o Brasil tem conduzido de maneira equivocada o assunto. “O discurso do ministro na COP 25 teve uma clara perspectiva de sequestrador. A síntese da fala dele é essa: eu tenho floresta, se vocês não me derem dinheiro, eu desmato”.

Criada há 35 anos, a Renca tem cinco áreas protegidas em que, pela legislação atual, não poderia ser realizada a exploração mineral. São duas terras indígenas, três unidades de conservação de proteção integral. Há ainda outras quatro unidades de conservação de uso sustentável, que, em tese, há a possibilidade de exploração. Pelos cálculos da ONG ambientalista WWF, cerca de 30% da Renca poderia ser minerada. Defensor da exploração da área, o senador Barreto diz que essa área não chega a 4%, o equivalente a aproximadamente 2.160 quilômetros quadrados. “Não queremos que se derrube todas as árvores. Queremos uma exploração mineral de uma pequena parcela para ajudar a desenvolver nosso Estado”, afirmou.

Os defensores da extinção total ou parcial da Renca dizem que seria possível explorar nela ouro, ferro, fosfato, titânio, manganês, nióbio, fósforo e tântalo. “Estudos feitos na década de 1970/80 dizem que teríamos mais de um trilhão de dólares para explorar. Imagina esse valor atualizado”, disse o senador Barreto. Na sua avaliação, o dano ambiental seria localizado, já que apenas regiões montanhosas seriam exploradas, sob forte fiscalização e, na necessidade de recuperação ambiental, elas poderiam ocorrer em até três décadas.

Dados extraoficiais estimam que cerca de 5.000 garimpeiros atuam na área da Renca e há entre 30 e 40 pistas de pousos clandestinas. “Hoje somos escravos ambientais. Nosso povo passa fome. E uma moldura na parede com fotos de árvores não enche a barriga. A revogação da Renca promoverá um ordenamento legal da mineração artesanal”, ponderou Barreto.

Na avaliação de quem atua em projetos na área, mais preocupante do que qualquer impacto local é o potencial dano ao redor da área a ser explorada. A área da Renca é isolada de ordenamentos urbanos. O acesso é difícil. “Para se explorar a maioria dos minérios tem de se planejar toda uma logística com estradas, ferrovias, tem de ter energia elétrica. Ou seja, precisaria de um conjunto de outros empreendimentos que, provavelmente, serão mais impactantes do que a mineração em si”, disse Décio Yokota, coordenador-executivo-adjunto do Instituto de Pesquisa e Formação Indígena (Iepé).

Sobre o argumento de que é necessário desenvolver economicamente a área, Yokoda defende que sejam criadas alternativas sustentáveis para a região, e não só projetos que tenham seu fim em si mesmo. “As grandes hidrelétricas, as mineradoras, fazem a destruição, exploram, extraem e quando fecham, é o fim, mesmo. Não gera riqueza local”, disse. E acrescentou: “A situação social e econômica das cidades próxima a Renca é gravíssima. Tenho certeza que todas os moradores delas querem qualquer nova possibilidade, nem que seja uma usina nuclear”.

A destruição da razão como projeto

Cada assassinato de um indígena no Brasil diz algo sobre a relação esquizofrênica do país consigo mesmo. Muitos brasileiros não querem saber sobre as raízes indígenas de seu país e não querem ouvir a mensagem dos primeiros brasileiros sobre paz, respeito e preservação da natureza. É uma mensagem sensata. Mas a extrema direita do Brasil a odeia. Por trás disso há um profundo desprezo pela ciência, pela razão e pelo senso comum. Desprezo este que está se espalhando cada vez mais pelo Brasil. E com consequências mortais.

No sábado passado, duas lideranças indígenas da etnia Guajajara foram assassinadas no Maranhão. Um mês antes, fora morto a tiros no mesmo estado o "guardião da floresta" Paulo Paulino Guajajara, conhecido como "Lobo Mau". Em 2019, o número de mortes de líderes indígenas já é o maior em 11 anos.

Responsável pelos assassinatos é a máfia dos desmatadores, grileiros, latifundiários e garimpeiros. Ela toma conta de forma insidiosa da Amazônia. Qualquer um que viaje pelo Norte do país hoje em dia reconhecerá os sinais por todas as partes. O maior tesouro do Brasil está sendo destruído sistematicamente.


Mas em vez de combatida, essa máfia é encorajada pelo governo brasileiro, em especial pelo ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles. Ele chamou desmatadores ilegais numa Terra Indígena de "pessoas do bem que trabalham". Parece que Salles até coopera com os criminosos. A Folha de S. Paulo publicou uma matéria sobre a recepção que Salles deu a vários infratores ambientais do Acre. Depois suspendeu a fiscalização na reserva Chico Mendes.

As consequências dessa política são claras: o desmatamento ilegal na Amazônia cresceu neste ano 30% e bate um novo recorde. Nas Terras Indígenas, a alta no desmatamento é de até 74%. Como se isso já não fosse suficiente destruição, a Funai quer suspender a supervisão de dez Terras Indígenas com povos isolados. Seria uma espécie de sentença de morte para os últimos povos isolados do Brasil.

A destruição da Amazônia, de sua história e sua cultura é um dos principais projetos do atual governo. Ficará como sua vergonhosa herança para as gerações futuras. O governo alega que está interessado no desenvolvimento econômico. Mas está cientificamente provado que uma Amazônia intacta é economicamente muito mais valiosa. Sua destruição terá consequências ecológicas, sociais e econômicas catastróficas para o Brasil.

Torna-se claro que o Brasil caiu nas mãos de ideólogos perigosos. São fanáticos dos quais, em outros tempos, se riria sonoramente. Agora eles estão tentando moldar o Brasil de acordo com suas ideias lunáticas do período pré-iluminista. O novo presidente da Funarte acha que o rock leva ao aborto e ao satanismo. Segundo ele, os Beatles surgiram para implantar o comunismo.

O homem que provavelmente vai liderar a Fundação Palmares afirma que não há racismo no Brasil. A escravidão, diz ele, era "benéfica para os descendentes". A ministra da Família, Damares Alves, recomenda a abstinência como o melhor remédio contra a gravidez na adolescência. Isso pode ser tecnicamente correto, mas não é uma política de Saúde responsável e decidida com base na realidade: isso é fundamentalismo religioso ao estilo iraniano.

Por último, mas não menos importante, Olavo de Carvalho agora pôde apresentar sua versão da história do Brasil no canal estatal TV Escola. Carvalho é um teórico da conspiração e extremista de direita, poderia encarnar muito bem um professor louco num filme de Hollywood. Agora ele é a estrela orientadora intelectual do governo brasileiro. Não Voltaire, Rousseau, Kant ou, para mencionar um pensador humanista excepcional brasileiro, Leandro Karnal: mas sim Olavo de Carvalho, com suas baixarias. Pode-se imaginar para onde se dirige um país que se comprometeu com a idiotice total.

O efeito do desprezo à iluminação, ao conhecimento e à razão é um discurso público cada vez mais baixo e ridículo. Além disso, tem consequências fatais, não só na Amazônia. Um exemplo simples: por antipatia pessoal o presidente mandou desativar quase todos os radares fixos no país. O efeito: os acidentes graves cresceram no país, e as rodovias têm alta de acidentes com vítimas pela primeira vez desde 2011. Qualquer pessoa mais ou menos inteligente poderia ter previsto isso.

A política agrícola é igualmente brutal e antimoderna. Não se concentra num cultivo sustentável de alimentos com cada vez menos pesticidas, mas sim em cada vez mais agrotóxicos. Só neste ano 467 pesticidas foram aprovados, um novo recorde. Segundo o Greenpeace, desses produtos, 22 contêm ingredientes ativos que têm seu uso proibido na União Europeia; 25 constam na lista dos produtos extremamente ou altamente tóxicos à saúde humana. Ironicamente, uma das últimas levas de novos registros colocou mais 57 produtos no mercado no dia 3 de outubro, quando se comemora o Dia Nacional da Abelha. Somente entre dezembro de 2018 e fevereiro de 2019, foram registradas as mortes de 500 milhões desses polinizadores por conta do uso de agrotóxicos.

Os agrotóxicos contaminam os rios do Brasil, como o São Francisco. E, claro, envenenam também a população. Entre 2007 e 2014, foram registradas quase 2 mil mortes por intoxicação agrícola. É cientificamente comprovado que, mesmo em pequenas doses, os inseticidas causam sérios problemas, principalmente em crianças, como alteração no QI, déficit de atenção, hiperatividade, autismo e transtornos psiquiátricos. Uma política sensata orientada para o bem-estar da população faria, portanto, tudo para limitar a utilização de pesticidas. Em vez disso, o governo expande seu uso para satisfazer os interesses lucrativos das indústrias agrícolas e químicas.

Outro exemplo dessa política fanaticamente cega: o Excludente de Ilicitude em Operações de Garantia da Lei e da Ordem que o presidente tanto deseja. Ele corresponde na prática a uma licença para matar, como qualquer estudioso da área de segurança iria confirmar. Parece que no Rio o excludente já está em vigor. Em 2019, a polícia do estado matou tantas pessoas como não matava desde quando começaram as estatísticas, em 1998. Muitas vezes os mortos não são criminosos, mas crianças como a menina Ágatha, de oito anos.

De certa forma, é então consequente que o novo partido do presidente, Aliança pelo Brasil, se apresente com um logo feito de pistolas e balas. Não livros que ensinam, mas balas que matam. Por exemplo, os primeiros e sábios habitantes do Brasil.
Philipp Lichterbeck

Pirralho

Segundo o porta-voz do Palácio do Planalto, a palavra usada na terça-feira pelo presidente da República para se referir à jovem ativista ambiental Greta Thunberg tem significado diferente do entendido pela imprensa. Rêgo Barros disse que “pirralha” significa “criança ou pessoa de pequena estatura”. Muito bem, valendo-se dos sentidos das palavras que estão nos dicionários ou que deles transcendem, pode-se usar o mesmo termo para designar o chefe do porta-voz.

Bolsonaro é um pirralho. Claro que ele não é uma criança, apesar de suas constantes birras e sucessivos beicinhos. Mas trata-se, sim, de uma pessoa de pequena estatura. Segundo o dicionário, a palavra estatura significa altura e porte, ou grandeza e relevância. Obviamente o presidente, a despeito do cargo que ocupa, é uma pessoa que não consegue se destacar pela sua relevância. Ao contrário, em menos de um ano no cargo transformou-se em objeto de chacota mundial.

Sua história parlamentar também retrata o percurso de um pirralho. Ele passou sete mandatos de deputado federal no baixo clero da Câmara. Fora suas grosserias rotineiras, nada do que fez ao longo de 28 anos teve qualquer relevância ou consequência política. Foi um parlamentar de pequena estatura do começo ao fim da sua carreira. Num dos momentos mais cruciais da história nacional, na votação do impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, foi ao microfone do plenário render elogios a um torturador.

Não vale a pena enumerar os diversos episódios que provam a dimensão do presidente no seu primeiro ano de mandato. Serviria apenas para cansar o leitor. Usando unicamente a agressão à jovem ativista sueca é fácil mostrar como Bolsonaro é pequeno. Greta havia dito que “os povos indígenas estão literalmente sendo assassinados por tentar proteger a floresta do desmatamento ilegal”. E o que ele fez ao ser indagado sobre o episódio, uma vez que Greta se referia a índios guajajaras mortos no Maranhão?

“É impressionante a imprensa dar espaço a uma pirralha dessa aí”, respondeu o presidente do Brasil, com a sua habitual falta de noção.

Ontem, a jovem sueca foi premiada pela revista “Time” como “Personalidade do Ano”, uma das maiores honrarias no mundo político, econômico, científico, esportivo e acadêmico. Antes de saber da distinção dada a Greta, nossa excelência voltou a desqualificá-la em razão da sua idade. Outra vez a chamou de pirralha, repetindo o tirambaço no próprio pé. A revista americana classificou a premiação como “power of youth”, ou poder da juventude, no idioma de Jair Bolsonaro.

Aos 16 anos, Greta Thunberg é a pessoa mais jovem a ganhar a indicação da “Time” desde que o prêmio foi instituído, em 1927. Ela bateu candidatos fortes, muito fortes, como o presidente Donald Trump, a presidente da Câmara dos Deputados dos EUA, Nancy Pelosi, o dono do Facebook, Mark Zuckerberg, a duquesa de Sussex, Meghan Markle, a primeira negra da família real britânica, os manifestantes de Hong Kong, os curdos da Síria e as artistas e ambientalistas Taylor Swift e Jennifer Lopez.

Não é pouca coisa. A ativista foi laureada um ano e meio depois de iniciar um dos mais importantes movimentos contra o aquecimento global. Ela começou a faltar às aulas das sextas-feiras na sua escola em Estocolmo para solitariamente ir se manifestar em frente ao Parlamento sueco. Sua iniciativa em muito pouco tempo ganhou expressão internacional, culminando com a greve mundial pelo clima que levou quatro milhões de pessoas às ruas em setembro. Foi recebida pelo Papa e fez discurso para chefes de Estado na ONU.

Ao atacar uma personagem global de estatura maior que a sua, tratando-a como se fosse uma criança se metendo em assunto de adultos, Bolsonaro errou feio. Parecia não se dar conta ou não se importar com o fato de Greta estar claramente ao lado do bem, do futuro. Ao tratá-la como pirralha que não merece sua atenção, Bolsonaro posicionou-se do outro lado. E aproveitou para evidenciar mais uma vez qual é o seu patamar.
Ascânio Seleme