quarta-feira, 19 de agosto de 2020

Pensamento do Dia

 

Em defesa do livro

A proposta de incluir a taxação do livro na reforma tributária, como quer o ministro Paulo Guedes, encarecendo em até 20% o preço de capa do exemplar, continua provocando reações. Para Ricardo Ramos Filho, presidente da UBE (União Brasileira de Escritores), a medida conspira contra os objetivos de desenvolver e aumentar a competitividade do país no cenário internacional.

O êxito nessas metas depende substancialmente da formação cultural e técnica que é impossível sem o acesso amplo à leitura, que não deve ser um privilégio, mas uma prerrogativa de toda a população.


Mais grave do que a própria proposição é a justificativa do ministro, de que “livros são artigos para a elite”, e o governo “os dará de graça aos pobres”. Ricardo Ramos conclama o poder público em todas as instâncias e a sociedade a se conscientizarem de que o valor dos livros diz respeito também à construção da cidadania. Além disso, a aparente generosidade oficial traz embutida uma sutil forma de doutrinação: o governo doa não só os livros, como o que se deve ler.

Mas eis que o colunista Lauro Jardim descobriu que as editoras têm um aliado de peso para não deixar que a reforma tributária de Paulo Guedes acabe com a isenção de impostos dos livros — a bancada evangélica. Ele explica: “em suas várias versões, a Bíblia continua sendo um dos livros mais vendidos do país, ano após ano”.

Não por acaso, ele classificou essa ajuda de “divina”.

Já o documento oficial da União Brasileira de Escritores, depois de considerar essas questões, termina manifestando sua “indignação” ante a proposta de tributação dos livros, que ameaçaria de modo grave a sobrevivência do setor, afetando editoras, livrarias e gráficas, em especial as pequenas, atingindo de modo contundente o mercado de trabalho e a renda de autores e demais profissionais.

Trata-se de um governo coerente: assim como nega a ciência e despreza a cultura, valoriza as armas e taxa os livros.

Confissão do latifúndio

Por onde passei,
plantei
a cerca farpada,
plantei a queimada.

Por onde passei,
plantei
a morte matada.


Por onde passei,
matei
a tribo calada,
a roça suada,
a terra esperada…

Por onde passei,
tendo tudo em lei,
eu plantei o nada.
Pedro Casaldáliga 

O integralismo no poder

Culto à personalidade. Estímulo à compreensão messiânica da liderança. Forja de inimigos artificiais. Discurso autocrático, antiliberal e anticomunista, de fé nacionalista, embocadura cristã e musculatura miliciana para o confronto. Fetiche com a projeção fálica de uma intervenção militar. Constituição de uma máquina panfletária para difundir teorias conspiratórias. Críticas doutrinárias à democracia, propositalmente confundida com o (criminalizado) establishment e entendida mesmo como empecilho; sendo necessário — em nome de uma nova política — destruir os padrões viciados da atividade político-partidária.

A que me refiro? Estarei incorrendo em repetição, mais uma vez esmiuçando o caráter da revolução reacionária bolsonarista? Sim e não.

Sim; porque esses elementos compõem o sistema de crenças do bolsonarismo, com sua pulsão de morte e a incapacidade de lidar com a liberdade senão como condição para impor os próprios modos. E não; porque me dediquei a listar somente estandartes do “Estado integral” segundo a doutrina do integralismo — o maior movimento de extrema-direita da História do Brasil até hoje, cuja influência tem assento no governo Bolsonaro e integra o pensamento do dito grupo ideológico, que prefiro chamar de sectário, aquele, poderoso, olavista, que toca a tal guerra contra o tal marxismo cultural.



Integralismo em 1932: algo novo — atraente para a juventude — numa sociedade intolerante (pautada pelo autoritarismo de Vargas) e amedrontada; o clima de medo (o perigo vermelho) impulsionando a adesão e o financiamento ao movimento. O ideal “Deus, pátria e família” encarnado no chefe nacional Plínio Salgado; o líder para o exercício do que seria uma democracia orgânica — que prescindiria das intermediações da democracia representativa.

Bolsonarismo em 2018: algo novo — sedutor para os jovens — numa sociedade intolerante (condicionada pelo espírito do tempo lavajatista) e amedrontada; o clima de medo (o Foro de São Paulo à espreita) impulsionando a adesão e o financiamento ao fenômeno. O slogan “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos” encarnado no mito Bolsonaro; aquele que fala diretamente ao povo, líder para o exercício do que seria uma democracia plebiscitária — que tornaria desnecessária qualquer mediação político-institucional.

Em 1969, o integralismo — obcecado pelo controle das formações individuais — seria o agente político que implementaria a disciplina de Educação Moral e Cívica no país. Em 2020, o integralismo domina — não à toa, como base estratégica para a reconstituição de uma fantasiosa civilização brasileira —o Ministério da Educação; e também a pasta dos Direitos Humanos.

O mais antigo alerta — ao menos para este escriba — sobre as semelhanças entre o bolsonarismo e a tradição integralista foi do publicitário Alexandre Borges, notável conhecedor da dinâmica política dos anos 1930, cuja natureza autoritária desaguaria na ditadura do Estado Novo. Ele me chamava a atenção para o caráter militarista do integralismo — aliás, muito aderente entre militares — e para a importância, no esquema do movimento, da milícia integralista, que conjugava serviço de informações e planejamento para operações policiais; que, na prática, resultaram em ações armadas tanto quanto nos fundamentos do que seria a Lei de Segurança Nacional.

Ainda no final de 2017, diante do fosso de oportunidades aberto pela depressão política que nutria discursos que costuravam elogio à autoridade e desprezo à atividade político-partidária, Borges informava que estudar apenas a emergência do nacional-populismo nos EUA e na Europa, embora necessário, não bastaria; e que seria mesmo preciso olhar para dentro, para a história do integralismo, a experiência fascista brasileira, com seu ímpeto para o golpismo, se quiséssemos compreender o conjunto de valores reacionários — cultura enraizada em quase século — que anima e lastreia o bolsonarismo. (E que não nos enganemos sobre a guinada circunstancial — com objetivo em 2022 —que leva Bolsonaro a uma quadra mais populista que autoritária.)

Há dois livros novos a respeito na praça. “O fascismo em camisas verdes”, de Leandro Pereira Gonçalves e Odilon Caldeira Neto, publicado pela FGV Editora. E, pela Planeta, “Fascismo à brasileira”, de Pedro Doria. São trabalhos fundamentais, muito bem pesquisados (o de Doria, ademais, um thriller), que tiram da estante do exotismo, como se passagem irrelevante de nossa história, um movimento que — desde a década de 1930 — nunca deixou de estar entre nós; muito articulado, por exemplo, tanto à TFP quanto aos skinheads brasileiros, cujo tripé misoginia, racismo e homofobia é facilmente identificado no DNA do que se convencionou chamar de nova direita no Brasil.

Duas obras que retratam o integralista como uma espécie de soldado de Deus e da pátria, responsável pela construção de uma grande nação; o que seria destino indesviável deste país. Não é uma fotografia de época.

Justiça alemã decide que recolher comida do lixo é roubo

Após meses de disputas judiciais, o Tribunal Constitucional da Alemanha decidiu nesta terça-feira  que a prática de recolher comida do lixo pode ser punida como roubo.

O caso em questão teve início em 2019, quando duas estudantes foram apanhadas recolhendo alimentos do contêiner de lixo de um supermercado da Baviera. Como o recipiente estava trancado e pronto para a coleta, a Corte Suprema do estado classificou a ação como roubo.


As jovens, Caro e Franzi, foram condenadas a cumprir oito horas de serviços à comunidade em liberdade condicional e receberam multa de 225 euros. Em novembro, elas recorreram junto ao Tribunal Constitucional. "Não prejudicamos ninguém", alegaram, ressaltando que o supermercado não tinha mais interesse nos itens, que simplesmente apodreceriam no lixo.

As duas ganharam o apoio da ONG Sociedade para os Direitos de Liberdade (GFF, na sigla em alemão), que se propõe a defender nos tribunais casos referentes a direitos e liberdades individuais. De seu ponto de vista, coletar comida jogada fora não representa prejuízo para a sociedade.

O contêiner estava numa zona de entregas do supermercado, pronto para ser recolhido. Segundo os juízes, as estudantes o abriram usando uma chave de boca que haviam trazido.

As acusadas alegaram que o supermercado não tinha interesses digno de proteção na comida descartada, portanto seria inadequado criminalizar a retirada dos alimentos. Além disso, seria necessário o manejo responsável e sustentável dos alimentos, com vistas ao bem comum. O desperdício maciço e, em muitos casos, evitável, é nocivo à sociedade, argumentaram.

O Tribunal de Karlsruhe não aceitou a apelação apresentada pelas duas jovens. Segundo os juízes, a legislação deve "proteger os direitos fundamentais de propriedade civil previstos na lei, mesmo em termos de itens sem valor econômico".

O supermercado em questão, como proprietário dos alimentos, pretendia que os itens fossem destruídos pela empresa de coleta de lixo "de modo a excluir qualquer risco de responsabilização pelo consumo de alimentos parcialmente expirados e possivelmente também estragados", segundo a decisão da corte. Portanto, esse interesse do estabelecimento de não ser exposto a deveres de diligência adicionais pela segurança dos alimentos deve ser fundamentalmente aceito.

Os juízes sugeriram que deveria haver meios de lidar com o desperdício de comida de maneira diferente, mas ressalvou não caber à Justiça avaliar o melhor modo de fazê-lo, e sim ao Legislativo.

A Sociedade para os Direitos de Liberdade em Berlim declarou que "a decisão deixa claro que os políticos devem agir" para mudar as leis. Punir "quem resgata alimentos comestíveis do lixo" iria de encontro ao objetivo declarado do governo federal de evitar o desperdício de alimentos, criticou a entidade.

Sobre o horror

Não sei o que é mais assustador: as linhas em branco ou a escuridão absoluta. Talvez seja uma questão do momento. Abro o computador e leio sobre a confusão em frente ao hospital em que uma menina de 10 anos está internada. Ela está lá para fazer um aborto legalmente amparado, ressalto, embora não devesse ter a necessidade em tempos novos. Ela foi estuprada pelo tio por quatro anos, ou seja, desde os 6 anos de idade. A confusão se deu pois grupos foram protestar contra o procedimento. Chamaram a menina e os médicos de assassinos e houve tentativa de invasão ao local. Uma menina de 10 anos grávida após anos de abuso sexual. Quem lê estas linhas provavelmente já está ciente do caso. Repito, porque a atrocidade, a vileza que empesteia a mente e os atos dos que se julgam guardiões da moral me choca a quase um nível de incredulidade. Não deveria me espantar em tempos reacionários, mas ainda é difícil. É duro acordar para este mundo.



Encaro a esperança como uma página vazia. Algo que devemos preencher e ser preenchidos de volta. É inútil desejar uma melhoria sem pôr a cara a tapa. Sem ter a força para permanecer em pé enquanto apanhamos das dificuldades. É preciso ter muita presença de espírito, casca grossa e um par de sapatos de corrida confortáveis. A realidade em meio a ódio e incerteza testa, e clama por nosso pior lado. Que quer desistir, que quer bater sem saber o motivo, que deita em posição fetal. Qual é o manual de condicionamento mental para proteger da loucura alheia, que sussurra para a sua loucura de estimação? Se só acaba quando termina, como saberemos que este é o fim, meu belo amigo? Santo Rocky Balboa, rogai por nós.

Revi “Apocalypse Now”. A versão “redux”, de 3h22, que considero mais imersiva em seu tema. Mais do que um filme de guerra, é uma alegoria para o enlouquecimento em seu estado mais selvagem. A fala do destruído coronel Kurtz ecoa: “O horror… O horror…”. A cena real é paralela à encenação fílmica. Um ambiente de caos, em que líderes absolutos brotam de dentro da selva e sacrificam os seus por causas pessoais. O horror e o terror moral são amigos, em que o coração é usado para amar e matar. É impossível descrever de forma adequada o horror. Talvez daí minha reação estática, de congelamento, quando me deparo com aqueles que preferem estupro e a morte de uma criança em nome de um propósito escuso. O exército de Kurtz se transfigurou nesses que acamparam em frente a um hospital em busca de sangue. A tela escurece.

A crônica inicia o último round. Escrever é dar uma mão em uma terra desesperada. A quem, não sei. A zona de guerra que habitamos são linhas em branco que formam a narrativa humana. O autor preenche a página com letras e espaços. Como o ser humano o faz? A comoção instantânea ou parcial não tapa sequer os buracos entre os dentes. Hoje a tragédia da menina comove, com razão. Entretanto, há o mesmo sentimento quando uma mulher mais velha é abusada e desacreditada? O ato é o mesmo. As reações, no entanto, divergem. Enquanto não se há empatia, se pôr no papel de quem sofre, apenas explodimos bombas retóricas a esmo e acertamos inocentes. Como a crônica, terá uma função de ser preencher um espaço e sumir. Seu único amigo é o fim, assim como este o é para a tristeza e a raiva. O que assusta é preenchimento pela escuridão absoluta. O momento de ocupar de outra forma os espaços não deve se restringir ao agora. Deve ser sempre.