domingo, 15 de dezembro de 2019

'Fóssil colossal'

Definitivamente, não se pode dizer que 2019, primeiro ano do governo Jair Bolsonaro, tenha sido positivo para a imagem do Brasil no exterior. O presidente atribui o mau momento à mídia, às esquerdas, a uma espécie de propaganda negativa sistemática. Mas será que é isso mesmo?

Na sexta-feira, em Madri, a Conferência do Clima da ONU (COP) conferiu ao Brasil o prêmio “Fóssil Colossal”, que, como o próprio nome diz, é uma ironia com os piores desempenhos na proteção do meio ambiente. É dramático, porque o Brasil despencou de um extremo a outro: de líder mundial de proteção para alvo de chacota.


No mesmo dia, a prestigiada revista Nature incluiu o professor Ricardo Galvão entre os cientistas do ano. E quem vem a ser? O presidente do Inpe que foi demitido e humilhado publicamente depois de Bolsonaro achincalhar os dados do instituto sobre desmatamento. E, veja bem, os novos dados coletados pelo próprio governo confirmaram depois o quanto o Inpe estava certo.

Em meio a essa sucessão de vexames, o presidente bateu boca num dia com a ativista adolescente Greta Thunberg – a quem chamou de “pirralha” – e no dia seguinte ela surgiu, toda poderosa, como personagem do ano e da capa da revista Time. O presidente bem poderia ter passado sem mais essa.

Apesar de tudo, os dados que estão para ser consolidados vão confirmar que, em 2019, o Brasil manteve o desempenho nas importações e só perdeu um pouco nas exportações. E por questões pontuais: a má performance da Argentina, um dos maiores parceiros, e a epidemia do rebanho suíno da China, que reduziu muito a necessidade de soja para alimentar os porcos. Descontados esses infortúnios, o desempenho é considerado bom, estável, e pronto a crescer.

E, afinal, o que é melhor para o Brasil? Os Estados Unidos e a China – as duas maiores potências – manterem o clima de beligerância e os ataques mútuos, ou efetivarem o acordo de paz?

Há controvérsias, mas parece prevalecer a avaliação de que é muito melhor para todo o mundo, literalmente, e para o Brasil, particularmente, que os dois gigantes se entendam, porque isso garante equilíbrio mundial, estabilidade, segurança e estanca a previsão de queda do crescimento global.

Quanto mais economia, desenvolvimento, comércio, melhor, muito melhor do que vantagens eventuais que a agricultura brasileira possa ter com a guerra. Ok. Se a China deixa de comprar produtos agrícolas norte-americanos, a tendência é de que desvie o foco para os brasileiros. Mas isso é pontual, residual, restrito a um único setor.

Ainda no cenário internacional, o Brasil perdeu e os EUA ganharam com o excesso de reverência de Bolsonaro a Donald Trump. E, no regional, o pedido de refúgio do ex-presidente boliviano Evo Morales vai consolidando a Argentina como o novo polo da esquerda sul-americana, depois que a Venezuela virou pó. A Argentina polo da esquerda e o Brasil da direita não é um cenário tranquilizador.

Apesar disso, Bolsonaro e Fernández têm trocado recados apaziguadores e promessas de pragmatismo nas relações comerciais e diplomáticas em termos mais abrangentes. Espera-se que sim, mas lembrando que Bolsonaro é Bolsonaro e que o kirchnerismo é o kirchnerismo.

Por fim, 2019 registrou ataques de Bolsonaro a Macron, sua mulher, Fernández, Bachelet, Greta, Leonardo Di Caprio, ONGs e aos povos do Chile e do Paraguai (ao enaltecer Pinochet e Stroessner), além de ter gerado temores, no mundo desenvolvido e nos nossos parceiros tradicionais, sobre as políticas indigenista, ambiental, cultural, educacional e de direitos humanos. Aos olhos do mundo, o Brasil anda para trás.

Imagem do Dia

Amsterdam (Holanda)

Brasil precisa priorizar as quase 1 milhão de famílias vivendo na pobreza sem Bolsa Família

Em fevereiro de 2017, um estudo divulgado pelo Banco Mundial defendia que o Brasil precisava aumentar seus gastos com o programa Bolsa Família para evitar que milhares de novas famílias passassem a viver na pobreza durante a recessão econômica, quando milhares perderiam seus empregos. A previsão se mostrou correta: no mês passado, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) informou que, em 2018, chegou a 13,5 milhões o número de brasileiros vivendo abaixo da linha da extrema pobreza - 4,5 milhões a mais que em 2014.

Na definição global do Banco Mundial, é considerado em situação de extrema pobreza quem dispõe de menos de US$ 1,90 por dia, o que equivale a aproximadamente R$ 140 por mês. Já a linha de pobreza é de rendimento inferior a US$ 5,5 por dia, o que corresponde a cerca de R$ 406 por mês.

Esta semana, os números mostraram mais uma evidência do retrocesso social: em 2018, o país o caiu uma posição no ranking mundial do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), divulgado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), referência mundial em medida de bem-estar da população.


Responsável por coordenar os programas de desenvolvimento humano do Banco Mundial para o Brasil, o argentino Pablo Acosta defende que, quase três anos depois do alerta, o governo precisa priorizar o socorro às famílias que vivem na pobreza, mas ainda não foram atendidas com o benefício.

"Há quase 1 milhão de famílias, não temos o número exato, mas quase um milhão de famílias que se qualificam para o Bolsa Família, mas ainda não estão no programa. E a razão principal isso é porque havia um orçamento fixado no começo do ano e não se pode permitir que mais gente entre. Então, uma das recomendações, não apenas nossa, mas de muitos outros, é de que realmente precisamos priorizar incluir essas famílias no programa, porque elas são elegíveis", afirmou Acosta, doutor em Economia e especialista em proteção social e mercado de trabalho.

Na visão do Banco Mundial, em períodos difíceis para a economia, as políticas redistributivas como os programas de transferência de renda se revelam ainda mais importantes. O Bolsa Família atende às famílias que vivem com renda per capita de até R$ 89 mensais, e com renda entre R$ 89,01 e R$ 178 mensais. De acordo com o Ministério da Cidadania, em setembro, o programa atendeu 13,5 milhões de famílias, somando um valor total de R$ 2,5 bilhões. O benefício médio foi de R$ 189,21.

Pelas regras do banco, é missão da entidade trabalhar diretamente com o governo de cada país membro; por esse regulamento, o ministro da Economia é o governador responsável pelo seu país no conselho de diretores do Banco Mundial, o que exige interação constante entre os técnicos em reuniões e encontros, explica Acosta.

"Tudo o que fazemos é dedicado a apoiar a economia e o desenvovimento do país, e isso requer constantes discussões e interações em diferentes níveis de poder, não só em nível federal, mas também com alguns Estados e municípios".

O executivo elogia que, de uns tempos para cá, a pauta social tenha crescido no debate político, tanto em iniciativas do Executivo quanto trazidas pelo próprio Congresso.

E diz que, para se tornar uma economia rica, o Brasil precisará priorizar o investimento nas pessoas, em especial para educar melhor os jovens para serem trabalhadores mais produtivos. Mais que reduzir o custo para a contratação, como prevê o programa Verde Amarelo, lançado pelo governo do presidente Jair Bolsonaro, é preciso melhorar a qualidade da educação e dar mais treinamento para que eles consigam lugar no mercado de trabalho.

"Acreditamos que é um dos fatores mais importantes, ter uma população educada e um trabalho produtivo. E isso, basicamente, é investir em pessoas".

O que só Bolsonaro sabe sobre o caso Marielle?

O universo tem mistérios que jamais vamos entender. Um deles é essa mania que Jair Bolsonaro tem de oferecer matéria-prima para os que tentam, sem sucesso, entender os seus mistérios. O que leva o presidente a parar o carro oficial na frente do Palácio da Alvorada para despejar sobre microfones e gravadores uma frase como essa? "No caso Marielle, outras acusações virão. Armações! Vocês sabem de quem".

Sem dar nome aos bois, Bolsonaro soou como se apontasse a língua para Wilson Witzel. Isso porque, em outubro, o presidente acusou o o governador do Rio de Janeiro de "vazar informações" e "manipular" as investigações sobre o assassinato de Marielle Franco para incriminá-lo.

Naquela ocasião, irritado com uma reportagem da Rede Globo, Bolsonaro disse que, 20 dias antes da veiculação da notícia, recebera de Witzel a informação de que um porteiro havia enfiado seu nome no inquérito sobre a execução de Marielle Franco. Witzel desmentiu Bolsonaro. O porteiro se desdisse em novo depoimento. E ninguém falou sobre o assunto novamente.

De repente, Bolsonaro volta à carga para anunciar novas "armações". Na mesma aparição, o presidente disse a apoiadores que foram ao portão do Alvorada para festejá-lo que seu governo apresenta resultados, "apesar de grande parte da imprensa" da "gente do mal".

Ora, um presidente que diz coisas definitivas sobre um assassinato —vêm aí novas armações contra mim—, mas não define muito bem as coisas, não precisa de imprensa ou de gente malévola para se enrolar. Bolsonaro tropeça na própria língua. Parece atormentado pela síndrome do que está por vir. E o país se pergunta: O que só Bolsonaro sabe sobre o caso Marielle?

A pirralha raivosa e os patriarcas

O presidente Jair Bolsonaro foi o primeiro a ventilar seu ressentimento à menina Greta, “é só uma pirralha”, disse ele. Trump retrucou “Greta precisa controlar sua raiva”. Parece ser mesmo insuportável aos patriarcas olhar uma menina miúda, de olhos firmes, e serem obrigados a silenciar-se diante de um “how dare you?”. A pergunta não é sobre como eles ousam desqualificá-la pela juventude, pelo gênero ou pela deficiência — é mais abstrata e impessoal: Greta provoca-os sobre como ousam ocupar o poder e ignorar o justo para a humanidade.

Greta ousou tanto que está na capa da prestigiosa revista Time — é a pessoa do ano. Há quem a descreva como líder, personalidade ou ativista. O melhor de todos os títulos é exatamente o mais simples: é a pessoa do ano para o mundo. Uma pessoa “com uma mensagem”, como ela mesma se define. Mas a política não é um espaço plural para as mulheres, e menos ainda para as meninas com deficiência. Desqualificar o pensamento de Greta é um gesto naturalizado pelo capacitismo entranhado na misoginia: uma menina com autismo não pode ser alguém com ideias razoáveis. Por isso, até mesmo o título pessoa lhe é espoliado pela deficiência — a pessoa com deficiência é reduzida ao que falta ou excede em seu corpo. No seu caso, o autismo ameaça a legitimidade de apresentar-se em público sem sofrer desqualificações pela juventude ou pela neurodiversidade.


Gente bem-intencionada repete o coro de que Greta seria uma marionete, uma alegoria para a participação de jovens na política de adultos. É verdade que Greta não é uma cientista de jaleco branco com publicações internacionais sobre os efeitos do aquecimento global. É só uma menina que fincou os pés na porta do parlamento sueco em greves sistemáticas da escola. “Algumas pessoas dizem que eu deveria estudar para ser uma cientista climática, pois poderia ‘resolver a crise climática’. Mas a crise climática já foi solucionada”, diz ela, em um sarcasmo sobre seu lugar de mensageira da certeza — se não há dúvidas científicas sobre a crise climática, o que faltam são mensageiras do jargão científico. Ela é uma delas.

Se rejeitar o título de marionete a aproxima da experiência de outros jovens engajados em questões políticas, Greta enfrenta uma jornada muito particular de desqualificação: é interpelada pela deficiência. Sua resposta ao ódio capacitista é apropriar-se do diagnóstico médico do autismo como uma “dádiva”, uma singularidade existencial que movimenta seu estranhamento sobre o senso de normalidade do mundo. Acompanhá-la exige um descentramento de quem se sente interpelado por ela: sua epistemologia é binária, seus discursos são breves como seu senso de urgência, suas alegorias sobre a crise climática seguem seus sentimentos de finitude do planeta. Os que rejeitam ou se sentem incomodados pela interpelação de Greta se unem e, em coro, esbravejam “pirralha raivosa”.

Como Greta, nós também acreditamos que “vivemos em um mundo estranho”. Para nós, o mais estranho é que a rejeição ao debate político não se dá por argumentos, mas por “cancelamento” ou “apagamento” de pessoas. Há uma personificação do ódio — é a menina com deficiência que se torna o alvo de quem ignora a crise climática. O mesmo ocorre com defensores de causas feministas, anti-racistas ou de direitos humanos — são pessoas ameaçadas por ousarem desafiar a normalidade de uma ordem política desigual. O cancelamento dos mensageiros da democracia é uma das características do esvaziamento do político pelo ódio e, mais temerosamente, como diria Hannah Arendt, um forte sinal de fumaça das políticas fascistas de banalidade do mal.
Debora Diniz, pesquisadora da Universidade de Brown/ Giselle Carino  diretora da IPPF/WHR

Pensamento do Dia


Pororoca de ilusões

“Outros povos podem ser felizes ou desgraçados por obra de estranhos. Os povos democráticos são os únicos que têm o bem e o mal feitos por suas próprias mãos” - J. F. Assis Brasil, político gaúcho, 1893

Nunca vi, mas posso imaginar a beleza do vagalhão, do grande estrondo que se forma na foz do Rio Amazonas quando aquele enorme curso d’água colide com as águas de outros rios.

A pororoca é um fenômeno real, maciço e formidável, que qualquer pessoa pode perceber a grande distância; uma difícil metáfora, portanto, para o nosso momento político, permeado muito mais por ilusões, incongruências, movimentos erráticos e até por desatinos que por ações organizadas e efetivas. O mais comum no curso da História brasileira é as forças políticas se contraporem de forma previsível, uma tentando ser pragmática e racional, obediente aos requisitos da economia, e a outra se deixando levar por (ou adotando como tática) algum delírio populista, de fundo emocional, religioso ou ideológico.

Penso, no entanto, que o Brasil atual se afastou daquele cenário tradicional e nada faz crer que retornará tão cedo à normalidade. Afastou-se – excetuado, naturalmente, o esforço do ministro Paulo Guedes no manejo da economia – em vista da linha divisória que se estabeleceu entre duas tribos alucinadas: petistas versus bolsonaristas.


Para bem apreender a referida mudança parece-me imprescindível remontar à eleição de 2018, na qual a maioria dos eleitores votou numa das duas principais alternativas com o único intuito de evitar a outra.

Os partidos ditos “de centro” naufragaram porque imaginaram poder navegar em seus frágeis barquinhos oratórios, não percebendo o portento vagalhão que se avizinhava. Claro, o embate das duas rejeições não se formou no vácuo. Constituiu-se no caldo de cultura de hostilidade a tudo e a todos que ganhou corpo em função da situação econômica, da maré montante da violência, da deslealdade de certas autoridades no tocante a suas respectivas missões institucionais e, não menos importante, dos fatos trazidos a público pela Operação Lava Jato. Este último aspecto merece breve reflexão. Não é raro uma sociedade reagir negativamente a uma grande mudança em razão do desconforto e do mau humor que ela engendra – refiro-me aqui à constatação de que a corrupção se alastrara por todo o corpo político, contaminando os três Poderes e grande parte do meio empresarial –, não obstante tal mudança ser o ponto de partida para um importante avanço na vida pública.

Comecei falando de duas grandes ilusões. Para delinear a ilusão petista seria útil remontar às origens do Partido dos Trabalhadores, relembrar a desconjuntada composição de seus quadros e seu idílico “socialismo por construir” – esboço de uma ideologia evocativa das catacumbas. Parece-me, porém, suficiente frisar que a unidade e o dinamismo daquela imensa maçaroca repousava sobre um fato deveras estapafúrdio: a devoção quase religiosa a um líder populista, Luiz Inácio Lula da Silva, que nunca levou a sério qualquer projeto de País, empenhando-se tão somente, e em tempo integral, em levar avante sua pequena Realpolitik. Paradoxalmente, a condutibilidade atmosférica do petismo deveu-se desde sempre a seu descompromisso com políticas consistentes de crescimento e a sua rasa fundamentação intelectual.

Deixo para os pesquisadores de opinião e para os psicólogos sociais a tarefa de descrever as antenas que levaram Jair Bolsonaro a captar e personificar a crescente dilaceração da sociedade brasileira de alguns anos para cá. Não posso eximir-me de dizer algo sobre o governo Bolsonaro, que em poucos dias concluirá seu primeiro ano, mas adianto que dificilmente terei algo de novo a dizer a esse respeito. O que primeiro salta aos olhos é o bifrontismo do governo. De um lado, a área econômica, sob o comando de Paulo Guedes e de Roberto Campos Neto, presidente do Banco Central, trabalhando com afinco e coesão, numa direção que me parece correta. Do outro, uma acentuada cacofonia, da qual o próprio presidente participa com notável intensidade. O presidente tem dito e repetido que economia “é com o Guedes”, ficando ele, o presidente, com o restante. Nesse aspecto, penso que o presidente se equivoca redondamente, uma vez que tal distinção inexiste na prática governamental. Ajustar as contas públicas, atrair investimentos e repor a economia nos trilhos do crescimento é uma operação complexa, que exige a colaboração de todos os setores do Executivo, em colaboração com os outros dois Poderes, orientando-se o conjunto no sentido de estabelecer a estabilidade e previsibilidade do “ambiente de negócios”.

Ora, com todo o respeito, sou obrigado a registrar que o presidente fala muito mais do que deve, intervindo de forma errática em diversos temas que não lhe dizem respeito. Falta-lhe, evidentemente, a chamada “liturgia do cargo”, ou seja, a sobriedade, o comedimento e a imparcialidade sem os quais a mais alta magistratura não funciona a contento. No contexto atual, o papel do presidente precisa ser muito mais o de um pacificador que o de um incitador de conflitos.

Mas qual será, no essencial, a grande ilusão bolsonarista? É, a meu juízo, sua incapacidade de enxergar o Brasil numa perspectiva histórica mais dilatada. A melhor ilustração dessa deficiência é ter o presidente colocado na estratégica área da educação um técnico aplicado, mas que não dá indícios de conhecer os entraves que a paralisam. Sabemos todos que o Brasil ainda se digladia com a chamada “armadilha da baixa renda”. Se nosso anseio de retomar o crescimento do PIB se mantiver na faixa de 2% a 3% ao ano, levaremos pelo menos 25 anos para dobrar nossa renda per capita. Não é exagero afirmar que tal cenário beira o insustentável.

Tortura a céu aberto

A tontura da fome é pior do que a do álcool. A tontura do álcool nos impele a cantar. Mas a da fome nos faz tremer. Percebi que é horrível ter só ar dentro do estômago
Carolina Maria de Jesus

Que democracia é esta?

Vejo, com frequência, pessoas duvidando de que estamos em um regime democrático, com um olhar crítico e cético sobre os partidos políticos, onde um grupo de caciques, quase todos com relações promiscuas com o grande capital – principalmente em períodos pré-eleitorais – dominam o jogo político. Como é possível confiar em tais mecanismos de representatividade, diante de tanto descalabro? Ou então lançam dúvidas sobre o poder judiciário: “Ah! Esse STF, sempre tomando decisões ao sabor de interesses inacessíveis para nós, pobres mortais!” Isto, sem falar na brutal desigualdade social que, impermeável ao tempo, singra em nossa história, qual uma nave dos insensatos, parindo, geração após geração, uma população de desassistidos, com destino já selado pela inacessibilidade ao ensino de qualidade, principal mecanismo para romper os grilhões da vulnerabilidade social.

Democracia, um valor universal – principalmente após a queda do Muro de Berlim – é o legado cultural de uma nação. O nosso é um legado de valores políticos, marcado por regimes autoritários, capitalismo de compadrio, que vê o Estado como mais um patrimônio para suas estratégias empresariais, onde a corrupção é a palavra-chave para implementá-las, cavando, de forma profunda, a perversa vala das desigualdades.

E nós, cidadãos comuns, com seu cotidiano ocupado pelo trabalho, os impostos e a família, qual é o nosso papel nesse negócio chamado democracia? Ironicamente, somos sujeito – quando damos forma à classe política, por meio do voto – e objeto, ou vítima, se preferirem, quando temos nossas vidas – do nascimento até a morte – afetadas por decisões dessa elite política que escolhemos para nos governar. E por que países como Noruega, Suécia e outros, como as grandes democracias europeias, nos parecem funcionar tão bem? A resposta, se é possível resumir em uma variável, vem da formação da cultura política de seu povo, forjada a ferro e fogo, tendo o cidadão no centro do processo decisório, e o Estado menos vulnerável ao acossamento das elites. Isso não cai do céu, é uma conquista permanente!


Com as manifestações de rua de junho de 2013, algo de muito importante começou a acontecer. Setores da sociedade civil foram às ruas marcar, de forma violenta, sua insatisfação contra o status quo. Depois, na esteira da Operação Lava Jato, vieram as manifestações em favor do impeachment de Dilma, dando, de quebra, espaço a extrema direita. O bolsonarismo é uma onda antidemocrática que, surfando nas ondas do antipetismo, chega ao poder com o que há de mais abjeto em um sistema político: a intolerância à diversidade humana e o uso da violência contra tudo aquilo que lhes é diferente. Estes dois atributos são seus principais “recursos intelectuais”.

A este fenômeno – a guinada abrupta do eleitorado saltando de um petismo corrupto para uma direita neomedieval-, dei o nome de “o pêndulo da irracionalidade”.

Foram nossas escolhas que moldaram este cenário de extrema dificuldade para o ambiente democrático. As instituições estão sendo testadas no limite, e caberá a nós, eleitores, fazermos as escolhas que ajudem a quebrar essa danosa polarização entre lulistas e bolsonaristas, substituindo a paixão irracional que dividiu o país pela racionalidade – fazendo uso da razão para distinguir onde estamos sendo capturados pela falsas narrativas ideológicas – elevando a qualidade das nossas escolhas nas próximas eleições.

Sim, vivemos em plena democracia, nossa democracia, brasileira como a feijoada e a jabuticaba, com todas as severas limitações de eleitores e líderes, e um Estado oneroso, ineficiente e corporativista, os quais, em conjunto a fazem funcionar. E será com ela que teremos de seguir nossa história, pois sem ela instala-se o caos e a barbárie do autoritarismo, já experimentado por nós, décadas atrás. No autoritarismo, fenecem os valores civilizatórios, os partidos e a sociedade civil são esmagados pelo peso da bestialidade humana, concentrada na mão do tirano.

Os 3 Cs do populismo: Crise, corrupção e cinismo

“Considera-se usualmente que as Democracias morrem pelas armas, em golpes de estado e revoluções. Hoje em dia, contudo, é mais provável que sejam lentamente estranguladas em nome do povo.” (The Economist, 29.08.2019)

Um pouco por todo mundo, incluindo Portugal, tem emergido uma panóplia de “novos” partidos políticos, uma parte dos quais de natureza claramente ‘populista’.

O populismo corresponde a posições políticas que enfatizam a ideia do ‘povo’, um grupo ‘virtuoso’ e ‘moralmente bom’, contrapondo-o a uma ‘elite’ (política, mas não só) considerada corrupta e centrada na maximização do seu bem estar/ interesse. Os partidos populistas são frequentemente liderados por figuras carismáticas que se apresentam como a ‘voz do povo’, explorando cinicamente a insatisfação do cidadão comum .


Três fatores têm contribuido para a emergência desta ‘onda’ populista que está a minar os regimes democráticos: 1) a crise económica e financeira; 2) as circunstâncias económicas individuais, designadamente o desemprego e a precariedade do mercado de trabalho; 3) a percepção de uma corrupção crescente.

A mais recente crise económica e financeira convenceu grande parte dos eleitores de que estariam a ser governados por ‘elites’ desinteressadas, incompetentes e egoístas, mais preocupadas em ‘salvar’ os bancos e o sistema financeiro em geral do que preservar os empregos e o nível de vida do cidadão comum. Adicionalmente, diversos estudos (1) mostram que na Europa o desemprego tem sido uma razão fundamental da votação em partidos populistas de direita. Finalmente, o aumento da corrupção percecionada tem igualmente gerado uma perda de confiança na ‘elite’ política. No mais recente inquérito mundial da Ipsos MORI (2), os políticos surgem como o grupo profissional menos confiável do mundo. Os inúmeros e aparentemente infindáveis escândalos que envolvem os partidos incumbentes, abrangendo toda a latitude do espectro político, têm gerado uma insatisfação com a ‘elite’ política e, consequentemente, o surgimento de novos partidos populistas.

Os populistas aproveitam e cavalgam nesta onda crescente de ressentimento. Ainda que uma grande parte dos populistas façam parte do tal grupo de ‘ricos’ e ‘poderosos’, eles satirizam as ‘elites’ incumbentes de forma hipócrita/ cínica e, frequentemente, incoerente.

É da mais elementar honestidade intelectual reconhecer que nem todo o ‘povo’ é virtuoso e moralmente imaculado, assim como nem toda a ‘elite’ é corrupta e desinteressada. O grande problema do populismo é que as atitudes cínicas/ sarcásticas/ hipócritas corroem e desintegram as instituições democráticas que levaram décadas ou séculos e erigir.

Como afirmou Winston Churchill, “ninguém acredita que a democracia é perfeita ou onisciente. Na realidade, a democracia é a pior forma de governo, à exceção de todos os outros já experimentados ao longo da história.”

Aurora A. C. Teixeira