Greta ousou tanto que está na capa da prestigiosa revista Time — é a pessoa do ano. Há quem a descreva como líder, personalidade ou ativista. O melhor de todos os títulos é exatamente o mais simples: é a pessoa do ano para o mundo. Uma pessoa “com uma mensagem”, como ela mesma se define. Mas a política não é um espaço plural para as mulheres, e menos ainda para as meninas com deficiência. Desqualificar o pensamento de Greta é um gesto naturalizado pelo capacitismo entranhado na misoginia: uma menina com autismo não pode ser alguém com ideias razoáveis. Por isso, até mesmo o título pessoa lhe é espoliado pela deficiência — a pessoa com deficiência é reduzida ao que falta ou excede em seu corpo. No seu caso, o autismo ameaça a legitimidade de apresentar-se em público sem sofrer desqualificações pela juventude ou pela neurodiversidade.
Gente bem-intencionada repete o coro de que Greta seria uma marionete, uma alegoria para a participação de jovens na política de adultos. É verdade que Greta não é uma cientista de jaleco branco com publicações internacionais sobre os efeitos do aquecimento global. É só uma menina que fincou os pés na porta do parlamento sueco em greves sistemáticas da escola. “Algumas pessoas dizem que eu deveria estudar para ser uma cientista climática, pois poderia ‘resolver a crise climática’. Mas a crise climática já foi solucionada”, diz ela, em um sarcasmo sobre seu lugar de mensageira da certeza — se não há dúvidas científicas sobre a crise climática, o que faltam são mensageiras do jargão científico. Ela é uma delas.
Se rejeitar o título de marionete a aproxima da experiência de outros jovens engajados em questões políticas, Greta enfrenta uma jornada muito particular de desqualificação: é interpelada pela deficiência. Sua resposta ao ódio capacitista é apropriar-se do diagnóstico médico do autismo como uma “dádiva”, uma singularidade existencial que movimenta seu estranhamento sobre o senso de normalidade do mundo. Acompanhá-la exige um descentramento de quem se sente interpelado por ela: sua epistemologia é binária, seus discursos são breves como seu senso de urgência, suas alegorias sobre a crise climática seguem seus sentimentos de finitude do planeta. Os que rejeitam ou se sentem incomodados pela interpelação de Greta se unem e, em coro, esbravejam “pirralha raivosa”.
Como Greta, nós também acreditamos que “vivemos em um mundo estranho”. Para nós, o mais estranho é que a rejeição ao debate político não se dá por argumentos, mas por “cancelamento” ou “apagamento” de pessoas. Há uma personificação do ódio — é a menina com deficiência que se torna o alvo de quem ignora a crise climática. O mesmo ocorre com defensores de causas feministas, anti-racistas ou de direitos humanos — são pessoas ameaçadas por ousarem desafiar a normalidade de uma ordem política desigual. O cancelamento dos mensageiros da democracia é uma das características do esvaziamento do político pelo ódio e, mais temerosamente, como diria Hannah Arendt, um forte sinal de fumaça das políticas fascistas de banalidade do mal.
Debora Diniz, pesquisadora da Universidade de Brown/ Giselle Carino diretora da IPPF/WHR
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