quinta-feira, 25 de junho de 2015

Novos tempos

Já demos um passo além da banalidade. Nosso tempo é o da boçalidade.

Eliane Brum 

Intolerância não tem graça

Na comédia “Em Busca do Cálice Sagrado”, de 1975, o grupo britânico Monty Python faz piada com o fundamentalismo cristão na Idade Média. Em uma cena famosa, a população de um vilarejo veste uma mulher com trajes de bruxa, prende em seu rosto um nariz de bruxa e exige que ela seja queimada na fogueira. Afinal, trata-se de uma bruxa, grita a multidão enfurecida.

O noticiário da última semana lembra o filme, mas não tem graça nenhuma. No Brasil de 2015, a intolerância religiosa está mostrando sua face em ataques a terreiros, cemitérios e até a crianças.

Em poucos dias, fanáticos apedrejaram uma menina de 11 anos que voltava de um culto de candomblé, danificaram o túmulo do médium Chico Xavier e atacaram um templo carioca de umbanda, destruindo a imagem de uma santa.

Os episódios ocorreram na mesma semana em que a Câmara começou a discutir um projeto que transforma o “ultraje a culto” em crime hediondo. No texto, o deputado evangélico Rogério Rosso ataca a Parada Gay e afirma que o país vive uma onda de “cristofobia”.

Os fatos sugerem que há sim uma ofensiva de intolerância, mas os principais alvos são outros: homossexuais e praticantes de cultos de matriz africana. O clima de ódio é alimentado por pregadores radicais, que tratam a orientação sexual alheia como afronta, bradam contra “demônios” e chamam religiões afro de “feitiçaria” e “macumba”.

Alguns líderes evangélicos já deram o bom exemplo ao repudiar os atos de violência, mas também é preciso barrar iniciativas que visam mudar as leis com base em interpretações literais da Bíblia.

Em outra comédia do Monty Python, “A Vida de Brian” (1979), o protagonista é confundido com Jesus e termina cantando do alto de uma cruz. A depender de parte dos nossos legisladores, o filme seria proibido no Brasil, e os humoristas estariam na cadeia.

Lula não muda

Lula cospe no prato em que comeu mesa PT

Do Ano do Pinóquio ao Ano da Hiena

O ano passado será conhecido como o Ano do Pinóquio, tantas as mentiras contadas durante a campanha eleitoral, não se limitando apenas às promessas não cumpridas de Dilma, mas de todos os candidatos.

Neste 2015, porém, o patrono será outro. Por enquanto vivemos o Ano da Hiena, aquela que ri enquanto come cocô. Ninguém escapa.

Começa pelo trabalhador, maior vítima da inflação, que assiste a perda do valor aquisitivo de seu salário, enfrenta o desemprego e a redução de seus direitos. Nada tem que comemorar, mas até agora não explodiu, como seria de esperar. O empresário também sofre, em especial o pequeno, sem crédito para expandir seus negócios e obrigado a sacrificar a família levando-a, para trás do balcão. Sem falar na carga de impostos sempre crescente. Certos potentados passam algumas semanas na cadeia, mas basta ver as fotografias, quando são libertados, para concluir que as grades não recuperam ninguém.

A mídia não fica atrás, na medida em que só parcialmente cumpre o dever de informar. Denuncia a corrupção no governo e no Congresso, mas omite-se na análise da miséria e da pobreza, sem desmentir presidentes que falam na incorporação de 36 milhões de brasileiros à classe média. Mentira ou ilusão, tanto faz, mas vá algum dos barões da imprensa tentar viver com o salário mínimo, como sobrevivem perto de 50 milhões de trabalhadores.

O que dizer do PT, posto em frangalhos pela ação de seus dirigentes empenhados em cargos e empregos, como também em marcha batida para fazer um papelão nas eleições municipais de outubro do ano que vem. E nas de 2018, caso não se dê o milagre da multiplicação do bom senso. Quando foi para o poder, o partido era uma esperança. Doze anos e meio depois, transformou-se numa caverna de frustrações.

A tentação é de fulanizar os risos e a refeição. A presidente Dilma, por exemplo, deu para mostrar os dentes sempre que vê uma câmera do televisão ou comparece a uma solenidade qualquer. Até mesmo diante da agressão verbal que sofreu do Lula, sorriu ao dizer que o antecessor, mais do que qualquer outro, tem o direito de criticá-la. Ignora o que vem por aí, continua pedalando sua bicicleta e mandando, lá do fundo do poço, sorrisos em profusão.

Por último, o próprio Lula, que se não riu nas duas oportunidades públicas em que demoliu o PT e a sucessora, foi flagrado às gargalhadas quando se refugiou na sala de Paulo Okamoto, no Instituto Lula. Pior a situação não poderia estar para ele, perdendo para Aécio Neves, nas pesquisas, por mais de dez pontos. Seu apelo à revolução petista e à volta da utopia exprime seu estado de espírito, ainda mais porque em vez de unir, dividiu os companheiros de alto a baixo.

Como ainda faltam seis meses para o 31 de dezembro, outros candidatos poderão manter suas apostas. Que tal o Ano do Rato?

No petrolão, o que está em jogo é a honradez da Justiça

Enfim, a “cereja do bolo” caiu nas malhas da Justiça. Já estava ficando muito estranho o fato de as principais empreiteiras terem seus executivos presos na Operação Lava Jato e a maior de todas, a Odebrecht, aquela que navegava em mar calmo, apesar de ser a que mais contratos possuía ou possui com a Petrobras.

Os demais envolvidos no superfaturamento, no cartel das obras e no pagamento de propinas a diretores, gerentes, superintendentes, políticos e partidos, estavam incomodados com a situação. Os advogados das outras empresas já estavam arquitetando uma estratégia envolvendo o instituto da isonomia. Por que os nossos executivos estão presos e os da cereja do bolo continuam livres, leves e soltos?

Agora, se advier alguma manobra para salvar as empreiteiras corruptas, o arcabouço jurídico do país desmorona. No inconsciente coletivo do povo ficará claro que o crime compensa. As pessoas honestas terão a sensação de que agiram como bobas a vida toda e que o certo é mamar nas tetas gordas do Estado.


Quanto mais ilícitos, mais a certeza da impunidade, pois sobrarão recursos para pagar os advogados de alto escalão, aqueles mesmos que no Mensalão protagonizaram o espetáculo teatral egolátrico perante os ministros da Corte Constitucional. Alguns não conseguiram a absolvição de seus clientes, mas muitos réus todos cumprindo prisão domiciliar, próximo a ganhar indulto e perdão judicial, com já aconteceu com José Genoino.

Se persistirem e se tornarem realidades os rumores que rondam o cenário contra as ações moralizadoras do juiz Sérgio Moro, podem estar certos de que o país sairá desmoralizado perante o palco das nações. A partir da salvação de executivos e de empreiteiras corruptas. deverão ser abertas todas as trancas das cadeias do país, até para ser cumprido o preceito constitucional, cláusula pétrea, da isonomia de tratamento.

Não é fácil encarar com isenção o que se passa hoje no país


Iniciar estas linhas por quem? Pelo jogador Neymar ou pelo fraco técnico Dunga, que, antes do jogo contra a Venezuela, com inaceitável submissão ao jogador, deixou para o primeiro a decisão de voltar ao Brasil ou de ficar na delegação (por nossa conta!) até o término da competição, depois que o titular da camisa 11 foi justamente punido com a expulsão no jogo contra a Colômbia? Ou não é assim que se deve tratar esse menino mimado, que perdeu totalmente a noção de limite?

Apenas um palpite: Neymar deveria ter sido expulso quando demonstrou, logo no início do jogo, atitude antiesportiva, além de comportamento truculento diante do árbitro. Ou melhor: deveria ter sido sacado do campo pelo técnico antes de ser expulso e, em seguida, severamente punido por ele com o afastamento, não só do seu comando em campo, mas do time por uma partida. Essa seria a atitude correta.


Ou devo iniciar estas linhas a partir do prazo de 30 dias úteis, concedido pelo Tribunal de Contas da União (TCU), para que a presidente Dilma explique as razões (e elas não existem) das graves irregularidades cometidas nas suas prestações de contas de 2014?

Ou, então, devo iniciá-las pela feliz recepção que o governo Nicolás Maduro, da Venezuela, depois de concordar com sua visita, proporcionou à comitiva de senadores brasileiros em Caracas? Digo “feliz recepção” porque essa visita só se tornou importante por ter revelado, uma vez mais, que o sucessor de Hugo Chávez, prestigiado pelo governo Dilma como se fosse notável estadista, não passa de um déspota, que está com os dias contados. Como os outros que se foram.

Mas, dentre tantos acontecimentos que deprimem e envergonham os brasileiros, o que mais reflete nossa triste realidade talvez seja a palestra recente (dessa vez não remunerada…) que o ex-presidente Lula deu no instituto que leva o seu nome, com a presença do velho amigo Gilberto Carvalho e de religiosos. Até agora, ninguém se manifestou sobre as razões dessa palestra, muito menos denunciou o motivo por que foi amplamente noticiada pela imprensa, considerada pelo palestrante não só inimiga, mas totalmente vendida à elite branca.


Depois de criticar duramente sua criatura e seu governo (que é também dele), a “gerentona” e/ou a “mãe dos pobres” (que ele inventou), Lula afirmou que o PT está abaixo do “volume morto”, mas ele e Dilma também estão no “volume morto”; depois de dizer que o governo Dilma é um governo de mudos e que ela não consegue nem viajar, nem falar; depois de cobrar da presidente uma agenda positiva, Lula insistiu na demagogia (ou na mentira?) como tática política (ou não é assim que se traduz o que ele disse?): “Na falta de dinheiro, tem de entrar a política. Nesses últimos cinco anos, fizemos muito menos atividade política com o povo do que fizemos no outro período. Isso acabou, Gilberto”!

A reação de Neymar contra o juiz é grave, mas qual terá sido a razão da sua atitude? Não será nada estranho se amanhã me disserem que sua expulsão se deveu unicamente a motivos pessoais.


Foi difícil iniciar estas linhas, mas está fácil encerrá-las: a política e o futebol foram tragados pela corrupção. E ela não está num só partido, num só político ou apenas na seleção. Está em nosso tecido social. Não nos cansemos de repetir, portanto, que a reforma do nosso país tem de começar a partir de nós e com a educação à frente.

Quando seremos, enfim, capazes de entender isso?

Lá e cá, segundo Eça

A precária democracia brasileira


Os brasileiros gostamos de acreditar que vivemos numa democracia plena e madura. São abundantes, no entanto, os incômodos sinais da precariedade do regime. Eleições regulares e limpas, apenas, não são suficientes para qualificar um regime como democrático – a autocracia venezuelana, campeã mundial de consultas populares, talvez seja o melhor exemplo disso. Tampouco Poderes aparentemente independentes bastam para que se possa considerar completo o ciclo de maturidade democrática. Nem mesmo a existência de uma imprensa livre autorizaria a conclusão de que vivemos num ambiente de democracia estável.

Na verdade, a construção de uma democracia digna desse nome apresenta todos esses aspectos, entre outros tantos, mas apenas como uma consequência natural do que se poderia chamar de “cultura democrática”. E esta o Brasil está ainda muito longe de ter, principalmente porque o Estado ainda é tratado como patrimônio pessoal de quem detém o poder.

Cultura democrática pode ser definida como a que privilegia a autonomia dos indivíduos para se organizar, sem interferência ou dependência do Estado, senão como aquele que garante a paz social e o cumprimento das leis. O cientista político Francisco Ferraz dedicou a essa importante questão seu mais recente livro, Brasil: A Cultura Política de uma Democracia Mal Resolvida (AD2000 Editorial), e lá se lê que o País ainda não se democratizou de fato, pois nenhum dos avanços circunstanciais que o Brasil teve conseguiu mudar “essa fixação brasileira pelo Estado patrimonialista, centralizador e intervencionista que nos acompanha desde o descobrimento”.

Para entender o atual estágio da democracia no Brasil, Ferraz faz uma anatomia dessa forma de governo ao longo da História ocidental e analisa as principais experiências ditas democráticas, qualificando-as de acordo com a solidez institucional que apresentam. Aqueles que consideram o Brasil uma democracia vigorosa, forte o bastante para resistir à tentação autoritária subjacente aos projetos messiânicos que de tempos em tempos se nos apresentam, terão na leitura desse ensaio uma desconfortável sensação de que estão enganados.


A fragilidade democrática brasileira não é um caso isolado. Pode-se dizer, como faz Ferraz, que a democracia liberal, representativa e constitucional, tida como o modelo para o qual convergiriam naturalmente todas as sociedades civilizadas, não passou “de uma exceção, quase uma anormalidade” nos últimos dois séculos. Isso porque a democracia é, dentre as soluções de governabilidade, a de construção mais penosa – desde que, claro, estejamos a falar de uma democracia verdadeiramente estável, e não de uma pseudodemocracia, cuja solidez é apenas aparente.

Para Ferraz, grande parte da classe política e dos cidadãos brasileiros tem “uma visão simplificadora, idealizada e infantilizada de democracia”. Essa visão, diz ele, dá margem a “soluções fáceis”, quase sempre na direção do paternalismo e do autoritarismo. Basta ver a quantidade de Constituições e de reformas constitucionais que o Brasil já teve para perceber que, de fato, o padrão nacional é de instabilidade.

No Brasil alteram-se regras essenciais ao sabor das conveniências. A atual “reforma política”, cujo debate está envenenado por interesses particulares dos principais protagonistas, prova essa fragilidade. Não se busca uma reforma para consolidar instituições democráticas, mas para atender a objetivos passageiros e paroquiais. É uma reforma que, inevitavelmente, resultará em algo que deverá ser reformado num futuro próximo, perpetuando o improviso.

Ademais, aqui não se lida com o contraditório como próprio das democracias, travado no âmbito das instituições. O debate tem sido pautado nas ruas e vem sempre carregado de ódio, numa polarização inconciliável. A busca pelo poder tornou-se o valor central, a despeito de qualquer outra consideração. Não à toa, o centro do turbilhão político brasileiro é ocupado há anos pelo PT, que, embora se jacte de seu espírito democrático, nunca aceitou o contraditório, sempre foi radicalmente contrário a todas as iniciativas dos governos aos quais fez oposição e, uma vez no poder, julgando-se portador da verdade histórica, tratou de desqualificar seus opositores como inimigos do próprio Estado.

O problema é o que o PT e seus assemelhados entendem por democracia. Com a leitura do trabalho de Ferraz, fica claro que a democracia ao gosto petista é a flácida o bastante para lhe permitir aparelhar o Estado e sujeitar o funcionamento das instituições a seus imperativos, quase sempre ao arrepio dos interesses nacionais. Em democracias desse tipo, diz Ferraz, “tudo está sempre em questão e nada é sagrado para todos, o consenso mínimo é frágil e a independência e a autonomia das instituições estão sempre expostas ao risco de serem subordinadas a interesses setoriais, partidários e de curto prazo”.

Quando o controle do poder se vê sob ameaça, a estratégia é minar o sistema representativo em si mesmo. É sintomático que em épocas de crise, como a atual, os petistas levantem a bandeira da democracia dita “direta”. Na narrativa que lhes é conveniente, seria uma consequência natural do suposto avanço da consciência democrática dos brasileiros, traduzido pelas manifestações de junho de 2013.

Mas, como mostra Ferraz, o apelo a ações diretas para articular as insatisfações e os protestos “é sempre um indicador de que as instituições políticas não funcionam satisfatoriamente”. E adverte: “Muitos, ingenuamente, consideram que esses são momentos áureos da democracia. Não são”. O poder deve ser entregue a quem possa ser responsabilizado por seu mau uso – e a massa é, por definição, inimputável. Eis por que a democracia direta, defendida como a forma mais pura e radical de democracia, sempre serviu apenas dar um verniz de legitimidade a tiranias.

Desigualdade, uma referência equivocada

A preocupação dos ideólogos do ressentimento com a desigualdade faz com que sejam criados índices com o propósito de medir a distância entre ricos e pobres.

Tais medições são fruto da equivocada visão de que se há alguém ganhando, haveria alguém perdendo.
Qualquer medição econômica que levasse efetivamente em consideração o bem estar da população, objeto da análise, não deveria medir a distância entre ricos e pobres, mas a distância daquelas pessoas da miséria.

Numa sociedade absolutamente livre, onde as trocas voluntárias por valores são espontâneas e resultado da manifestação da vontade própria de cada indivíduo, não há transações sem que haja a mútua satisfação entre os envolvidos, num processo justo de distribuição de riqueza que ocorre concomitante e constantemente sempre que um fenômeno econômico acontece.

Assim, sempre que alguém empreende para aumentar a sua riqueza, carrega junto com ele, na elevação de seu capital, todos aqueles que de forma direta ou indireta participam daquele processo produtivo, sendo, pela complexidade e capilaridade das transações, muito difícil de se visualizar até onde a geração de ganhos afeta positivamente a sociedade, mas, sem dúvida, sabe-se que afeta e melhora o nível de qualidade de vida de toda a população alcançada pelo fenômeno principal de construção de valor.

Quando um novo valor é colocado à disposição do mercado, para que seja adquirido pelas pessoas, incentiva-se, de forma crescente e geométrica, que todos os que demandarem aquele bem criem, se já não o tiverem feito, e coloquem também à disposição do mercado, valores para que possam obter recursos para adquirirem, aquele recentemente criado.

Já, por outro lado, e de forma perversa, quando a distribuição de renda é feita através da coerção, não há estímulo para a necessária criação de valor para uma troca voluntária, basta que o beneficiário passivo de qualquer distribuição, aguarde que um poder determinado use de violência, expropriando o proprietário de um determinado bem e, obviamente, de seu valor, para entregá-lo injustamente a quem nada fez para merecê-lo.

DESIGUALDADE

É por isso que, quanto mais livre for uma sociedade, mais rica será sua população e, independentemente da distância entre ricos e pobres, ou seja, sem dar relevância à desigualdade, mais distante da miséria se encontrarão todos os indivíduos daquela sociedade. E, de outro lado, quanto mais regulada for a sociedade, caracterizada pelo alto grau de intervenção governamental, mais próxima da miséria estará toda a população, sem que as diferenças irrelevantes entre ricos e pobres sejam eliminadas.

Provavelmente, nas sociedades livres, estarão no topo da pirâmide de distribuição de renda aqueles que tiverem produzido mais valor para os demais e para si.

Nas sociedades fechadas, onde a coerção predomina, mais ricos estarão os que detém o poder da força, que não criam valor algum, criam apenas intimidação e, eventualmente, destruição.

O desencanto de certa juventude 'nem-nem'


Em minhas andanças dos últimos tempos, tenho ficado angustiada com o que observo estar acontecendo entre jovens de classe média.

Pertenci a uma geração em que as meninas não faziam curso superior, quando muito estudavam pedagogia, e se preparavam para ser mães de família. Fui exceção à regra porque sempre adorei estudar e sempre trabalhei fora. (Até hoje estudo muito e ainda sofro pesadamente por já estar aposentada. Gostaria de fazer ainda uma porção de coisas. Mas ninguém quer dar um bom emprego a alguém de mais de 70 anos).

Pouco depois, isso mudou, e todos, rapazes e moças, demandavam os cursos superiores e empregos bons. É claro que estou me referindo aos de classe média: os pobres ficavam retidos nos cursos elementares ou eram obrigados a aceitar o emprego que aparecesse, sem qualquer qualificação mais sofisticada. E os ricos? Bem, os ricos sempre têm direito a escolher. Agora vejo crescer um fenômeno desconcertante e que não se restringe a este ou àquele país do mundo.

De um lado, o desespero dos que querem estudar e que, em busca de seu diploma de curso superior, aceitam bolsas que vão ter de pagar depois de formados. Dia desses, encontrei uma fluminense nessa situação: a jovem, já mãe de uma filha, casada, está terminando sua tese de doutoramento ainda pagando o curso superior que conseguiu fazer a duras penas. Escusado dizer que ela ainda acumula todos os seus esforços com um emprego que lhe demanda muita atenção. Mas ela ainda tem sorte, porque a maioria dos jovens pobres entre 18 e 25 anos são os que mais sofrem com o desemprego que se abate sobre as sociedades, dominadas pela loucura do capital financeiro e dos governantes que a ele servem. Então, você encontra legiões de desesperados buscando qualquer “bico” para ganhar qualquer coisa e sobreviver.

Doutro lado, um grupo grande de jovens de classe média que nem querem estudar, nem querem trabalhar. São denominados juventude “nem-nem”. Têm todas as condições para ir a boas universidades e não conseguem se adaptar a nenhuma rotina de estudo. Têm condições de obter um razoável emprego e optam por vagar por aí, sem eira nem beira.

Conheci uma jovem assim em Berlim. Encantadora, fala mais de uma língua, se vira, como dizem eles, por diversos lugares. Já morou na Argentina, passou pelo Brasil, frequentou a universidade em Göttingen, na Alemanha, e com pouco tempo largou-a e foi bater pernas no Laos, na Tailândia e no Vietnã. Agora, faz trabalhos eventuais como garçonete em Berlim.

Estou também às voltas com um jovem que está do mesmo jeito, matriculado numa boa universidade nos Estados Unidos e que não quer fazer coisa alguma. Enquanto a mãe dá duro para sustentá-lo e ao irmão, ele fica no lero-lero. E o avô pagando caro os cursos em que ele toma bomba sistematicamente.

Conversei muito, recentemente, com os dois, em separado. E fiquei chocada com o desencanto de ambos: não têm nenhum ideal, não desejam coisa alguma, nada os move. O que pode explicar esse desencanto? 

Preconceitos, delitos e chacinas

Essas palavras não teriam sentido não fosse pela existência de códigos, leis, credos e mandamentos que governam e classificam o comportamento. Sem classificações não haveria tabus, pecado, crime e ideias (pré)concebidas – preconceitos!

Por outro lado, uma ausência de normas suprimiria até mesmo as fronteiras entre identidades e emblemas sociais. Nós só sabemos quem somos por contraste e, em certas fases da vida, pela admoestação e pelo paciente cuidado dos mais experientes.


Aprendemos a ser de modo penoso, complexo e, sem dúvida, contraditório, pois o que é proibido em certas situações pode ser obrigatório em outras. Numa guerra transformamos um pecado mortal – matar – num ato de bravura. Ademais, não é fácil compreender o diferente como alternativo: como um modo de fazer o que fazemos de modo diverso.

As identidades são relacionais e contextuais. Um paulista e um nordestino que se percebem preconceituosamente em São Paulo viram solidários “brasileiros” por contraste com os “gringos” em Buenos Aires. Entretanto, um argentino e esses brasileiros se transformam em patriotas “latino-americanos” em Washington, onde contrastam com os “ianques imperialistas”. Numa visita a Paris, porém, todo esse conjunto vira “americano” por oposição ao “velho mundo” europeu. Mas, se alguns europeus, brasileiros, argentinos e americanos forem a Tóquio, todos se percebem como “ocidentais” diante de um mundo sem monoteísmos, sem culpa judaico-cristã, mas tornam-se bárbaros e analfabetos.

Para saber quem somos, temos que nos botar em relação. Embora os emblemas sejam fixos, os elos e o que se torna um emblema de identidade variam muito.

Quando dava aulas na Universidade de Notre Dame, vi números sobre a “diversidade étnica” dos seus professores. Setenta por cento eram “brancos” ou “caucasianos” (uma palavra que, nesse contexto, não faz sentido no Brasil) e os 30% restantes pertenciam a muitos outros grupos étnicos, com predominância dos “hispânicos”. Intrigado, ampliei minha busca para descobrir que no meu departamento havia um e apenas um “hispânico”! Imediatamente, um lado meu perguntou: quem é esse “hispânico” perdido no meio dos “brancos”? É você, idiota!, respondeu um outro lado, obrigando-me a tomar um uísque e a me dar conta de um importante traço cultural dos Estados Unidos.

É que na cultura americana você não se autoclassifica etnicamente. Muito pelo contrário, você é classificado pela coletividade. Eu era um “hispânico” e não um “branco” naquele sistema de classificação. E não tinha como protestar porque no contexto americano a “etnia” (antigamente chamada de “raça”) era um código desenhado para discriminar negros (e outros alienígenas) por costumes e legislação.

Vejam a reviravolta. Uma sociedade na qual a autonomia e a opinião individual são direitos estabelecidos, existem áreas onde isso é suprimido. No Brasil, ter opinião é pecado, mas a diversidade física e as leis que regulam o sistema de cotas se fundam na autodefinição. Se você se considera branco, negro ou índio, você assim se classifica.

Lá, a ênfase é na “raça” como uma “realidade” englobante de uma pessoa. Aqui, a ênfase é na “cor”, algo que, obviamente, varia de acordo com pessoas e, mais que isso, com situações. A “raça” é inapelável, mas a “cor” (que faz parte de um sistema de aparências) permite toda a sorte de negociações. Num caso, a classificação é pela “origem” (que alguns chamam de “essência”) no outro, é pela “aparência”, conforme demonstrou o sociólogo Oracy Nogueira, num ensaio lapidar publicado em 1954.

Mas, acrescento, há contratempos em ambos os estilos de classificar. Nos limites de uma crônica, pode-se afirmar que qualquer política de identidade é algo delicado e complexo. Por quê? Porque as pessoas podem ser oprimidas pelo sistema desenhado para libertá-las. A autoclassificação pode inventar o falso “índio” ou “negro”. Já os sistemas totalizados, nascidos no princípio do “separados, mas iguais”, promovem violência e alimentam o ódio racial com seus massacres e a indignação moral de quem, pelas normas do sistema, seria inapelavelmente “branco”, mas se classifica como “negro” o que, nos Estados Unidos segregados, caracteriza o fenômeno negativo do “passing”. Do passar-se por outro.

Foi exatamente esse julgamento que enredou Rachel Dolezal, uma “branca” que quis ser negra num país onde negros eram discriminados e linchados e, hoje, são presos ou mortos pela polícia! Por coincidência, no momento em que escrevo, explode o massacre de Charleston, no qual nove negros são chacinados por um jovem branco racista.

O assunto longo leva a uma questão curta: você se classificaria como judeu no nazismo, como burguês na Rússia soviética ou como gay no Brasil?

É válido classificar seres humanos por meio de uma única (e inapelável) dimensão? O que é mais sensato? Classificar de modo definitivo ou discutir crítica e honestamente a classificação?