domingo, 11 de maio de 2025

Pensamento do Dia

 


Grande mal

A ignorância dos que detêm o poder é perigosa por si só — e a do povo pode piorar as coisas. A ignorância fortalece regimes autoritários e enfraquece a democracia. Sem saber o suficiente sobre os problemas do país ou o que diferencia os partidos políticos, o eleitor pode fazer escolhas imprudentes e se arrepender depois. 

Peter Burke

Gaza está sozinha no mundo

Poucos meses atrás, o poeta palestino Mosab Abu Toha se declarou dilacerado. Preso e libertado pelas forças israelenses na sua Gaza natal em 2023, obteve salvo-conduto para sair do enclave. Bons tempos aqueles em que salvo-condutos ainda eram fornecidos. Do Egito, ele migrou para os Estados Unidos. E foi dessa terra estrangeira que refletiu sobre seu estado d’alma em entrevista ao canal Al-Jazeera. O salto entre o “ontem” e o “agora”, disse, fora brutal. “Imagine estar num abrigo em Gaza com seus pais, irmãos, filhos, sem conseguir proteger nenhum deles. Você é incapaz de prover comida, água, medicamentos, nada. E agora você se vê nos Estados Unidos, justamente o país que financia o genocídio. É desesperador”, resumiu ele.


Nesta semana o poeta de 31 anos recebeu o prestigioso prêmio Pulitzer por ensaios publicados na revista The New Yorker sobre os efeitos físicos e emocionais da carnificina em curso. Em paralelo, também recebeu ameaças de grupos da extrema direita americana que exigem sua depo1]rtação. Acabou cancelando palestras agendadas em diversas universidades do país.

Mesmo que quisesse ser deportado para seu chão, Abu Toha não conseguiria. A Faixa de Gaza está selada por terra, mar e ar. Ninguém entra nem sai desde que o governo israelense de Benjamin Netanyahu, em 22 de março último, rompeu a trégua acordada numa tentativa extrema de obter a capitulação do Hamas.

Difícil não ver ironia nas comemorações, nesta semana, dos 80 anos do final da Segunda Guerra. A vitória das Forças Aliadas e da União Soviética contra o nazismo não parece ter produzido uma humanidade menos cínica. Moscou comemora com razão a quase sobre-humana resistência da antiga Leningrado (hoje São Petersburgo) ao histórico cerco militar de 872 dias. Hitler havia ordenado que não seria dada a opção de rendição à cidade. Ela deveria simplesmente cessar de existir, destruída por bombardeios, fome, doenças, apagamento de vida. Ainda assim, Leningrado resistiu, defendida até a última unha pelo Exército Vermelho e por uma população civil comparável à da Faixa de Gaza hoje (mais de 2 milhões). Estima-se que perto de 1,5 milhão de civis não tenham sobrevivido ao cerco.

Pergunta: para que serve o colossal aparato militar russo exibido na Praça Vermelha se ninguém, ali, é capaz ou está interessado em salvar uma única criança a minguar em Gaza?

Também vem à mente o bloqueio de Berlim Ocidental, já em plena Guerra Fria. Em junho de 1948, os soviéticos interromperam todo e qualquer trânsito de pessoas, mercadorias, fornecimento de eletricidade e água à população sob tutela de França, Grã-Bretanha e Estados Unidos. A medida ordenada por Stálin visava ao isolamento da vida naquele setor, para obter controle total sobre a cidade dividida. Como é sabido, os aliados ocidentais reagiram, montaram uma complexa logística aérea e abasteceram as necessidades dos quase 2,5 milhões de berlinenses ilhados (novamente, população próxima aos 2,3 milhões de palestinos de Gaza). Durante 321 dias, conseguiram despejar mais de 1,5 milhão de toneladas de suprimentos aos sitiados. Foram tão eficientes que Stálin desistiu do bloqueio e foi tratar de ampliar seu império alhures.

Hoje, os Estados Unidos apoiam a erradicação da vida civil em Gaza, enquanto Reino Unido e França desviam o olhar para não parecer cúmplices. Dos “países-irmãos” árabes muçulmanos, já se falou aqui — historicamente, pouco a esperar.

E a ONU? Nada fez no mais longo cerco da História da guerra moderna — o de Sarajevo, capital da Bósnia e Herzegovina, que durou quase quatro anos da década de 1990. Vivia-se então a desintegração da antiga Iugoslávia, e a Sérvia pretendia criar uma continuidade territorial na Bósnia, por meio da limpeza étnica dos muçulmanos. Ao longo do cerco, 64% da população da cidade não sobreviveu às privações. Sem falar no massacre de Srebrenica, enclave muçulmano em território sérvio declarado “zona de segurança” pela ONU, também no âmbito da desintegração iugoslava. Ali, o horror foi fulminante — durou apenas 11 dias em julho de 1995. O bastante para se tornar o maior massacre cometido na Europa desde a Segunda Guerra.

É claro que cada matança, bloqueio ou cerco histórico reflete as dinâmicas militar, política e humanitária de seu tempo. Não é diferente em Gaza. Mas nem por isso deixa de ser horrendo que continuemos a assistir calmamente a mais um estrangulamento de povo. Gaza está sozinha no mundo. Solidariedade não basta para mudar a história.

Ansiolítico para a politização da vida

A democracia deveria ser chata. O tédio indica que as coisas funcionam bem, políticos e partidos circulam pelas posições de poder quase aleatoriamente e sem solavancos, juízes de que não se sabe o nome fazem o seu trabalho com tranquilidade, e os demais serviços públicos acontecem como o dia sucede a noite. As pessoas tocam a vida sem se ocupar muito do que ocorre nos palácios e nas assembleias.

Há mais de dez anos esse padrão se alterou num punhado de países democráticos. Simulacros de batalhas de vida ou morte impregnaram o cotidiano. Tornou-se hábito denunciar as agendas ideológicas de cientistas, artistas, professores, magistrados, empresários, sacerdotes, esportistas, diplomatas, jornalistas e inseri-las no grande jogo da política. Ganhar eleição virou credencial para bagunçar o coreto institucional e sabotar contratos sociais profundos e longevos.

Como a autoajuda ainda não saiu de moda, arrisco algumas sugestões para atravessar esse período tempestuoso minimizando, quem sabe, as avarias no casco mental.


Brasília é Brasil. Não caia no conto do vigário de que a política se transformou num clube fechado de privilegiados imorais dedicados a esfolar os bons cidadãos na planície. Se você for eleito presidente e seus amigos virarem deputados, senadores e ministros do Supremo, a situação não melhora.

O radical é o conservador de amanhã. A história universal dos agitadores mostra que o espírito da abertura à novidade é espancado tão logo o demagogo molda o governo à sua feição e se cerca de bajuladores. Na oposição a gente faz bravata, disse um sábio político brasileiro. Acredite nele.

Político não é salvador nem exterminador da pátria. A paixonite por um candidato deveria ser encarada e tratada como síndrome aditiva. O ódio mortal também. Em regimes democráticos o pior canalha acerta aqui e ali, e o melhor estadista de vez em quando apronta uma cabeluda. Venere e execre entidades sobrenaturais, não seres humanos.

Política nacional nem sempre salva a lavoura. É mais importante preocupar-se com a instrução que as crianças recebem num raio de 5 km de você do que esgoelar-se pela anistia em Brasília. Governos e burocracias locais fazem diferença em temas cruciais.

Politizar e moralizar tudo é artimanha de preguiçosos e néscios. A despeito das opiniões políticas de García Márquez, Vargas Llosa, Nana Caymmi e Aldir Blanc, um universo estético e artístico com códigos próprios envolve as suas obras. Navegar por ele e nele desenvolver afinidades e críticas faz bem à alma, propicia elevação e gozo. O crápula pode ser sublime, e a vestal, cantar como uma gralha. O que uma celebridade afirmou sobre eleições e candidatos não tem valor especial. Ignore.

Há menos conspirações do que imagina nossa vã ideologia. Maquinações de vilões para destruir o planeta só abundam nos filmes da Marvel. Empresas farmacêuticas não planejam controlar nossos corpos ou evitar que a natureza sozinha nos cure e nos fortaleça. Falta de vacina e de antibiótico pode matar mesmo, e a melhor opção não estará nos florais de Bach, no leite cru, na cloroquina nem na homeopatia.

Valorize o saber, não os sabichões. Procure ser menos conclusivo e mais especulativo ao abordar um campo de conhecimento que mal arranha. Amplie suas informações, aprenda sobretudo a fazer as boas perguntas e a tomar distância de quem posa de profeta para anunciar novidades radicais.

Política é teatro cívico. Os papéis se invertem, inimigos viscerais se tornam aliados, as derrotas e as vitórias nunca são totais nem irreversíveis. Faça como um político, não odeie a ponto de não negociar; não ame a ponto de não contrariar.

Converse com quem você acha que detesta. Teclar é fácil, quero ver dizer barbaridades de uma pessoa na frente dela, num papo individual. Provavelmente vocês descobrirão que estão mal informados sobre as convicções de cada um, que há preocupações e defeitos comuns e que não vale a pena gastar tanta energia com política. Ouça, repense, proponha.

Bolsonaro cria aliança entre golpistas e ladrões para atacar STF no conclave do capeta

Enquanto os católicos esperavam que o Espírito Santo se manifestasse em Roma, no Congresso Brasileiro Jair e a ladroagem do Congresso desenhavam seus pentagramas para fugir da cadeia e trazer o golpe de volta do inferno.

Foi o conclave do capeta.

Na última quarta-feira, a Câmara dos Deputados aprovou uma sacanagem para interromper a ação penal contra o deputado Alexandre Ramagem (PL-RJ), acusado (e obviamente culpado) no inquérito do golpe. O plano era aproveitar para interromper o julgamento dos outros réus no mesmo inquérito, como Bolsonaro e Braga Netto.


A manobra Ramagem serviu para provar que nada naquele papo de anistia era sobre a Débora do Batom, sobre o pipoqueiro, sobre o sorveteiro. Assim que começou a conversa de anistiar só as Déboras da vida, os líderes do golpe bolaram a manobra Ramagem. Ela salva os líderes do golpe, mas não faz nada por Débora, pelo pipoqueiro ou pelo sorveteiro.

Dois dias depois, o STF decidiu o óbvio: a suspensão só vale para os crimes que Ramagem cometeu depois de se tornar deputado. E só vale para Ramagem.

O inquérito do golpe não vai parar, mas o escândalo é o seguinte: a manobra Ramagem foi aprovada pela totalidade da direita brasileira e pela ampla maioria dos deputados. Essa gente toda topou continuar tensionando as instituições democráticas em nome dos piores interesses.

Além das organizações extremistas "Partido Liberal" (91%) e "Partido Novo" (100%), 89% dos deputados do PP, 83% dos deputados do União Brasil, 90% do Republicanos, 72% do MDB e 57% do PSD votaram a favor da manobra Ramagem.

O conclave do capeta consagrou uma aliança poderosíssima: a federação entre os direitistas que temem o STF porque tentaram golpe de Estado, os direitistas que temem o STF porque roubaram dinheiro público e a facção majoritária dos direitistas que temem o STF porque tentaram golpe de Estado e porque roubaram dinheiro público.

Por que os ladrõezinhos de sempre do Congresso Brasileiro se aliaram aos bolsonaristas contra o STF ?

Não tenho dúvida de que todos eles teriam apoiado um golpe bem-sucedido. Essa é a natureza deles, essa é sua origem histórica.

Mas por que brigar com o STF para puxar o saco de um golpe que fracassou?

É verdade: o Centrão, no fundo, são as ruínas da Arena, partido criado pela ditadura militar. Sim, Bolsonaro e Aras mataram a Lava Jato e desmontaram o combate à corrupção no Brasil. É claro, ninguém no Congresso esqueceu que foi durante o governo Bolsonaro que foi criado o orçamento secreto.

Mas, até aí, gratidão não é o ponto forte dessa turma. Na verdade, há uma comunhão de interesses entre ladrões e golpistas.

No STF há vários processos contra deputados que roubaram dinheiro público, especialmente no orçamento secreto. Para os ladrões do Congresso, a turma do Jair é um instrumento conveniente para pressionar o STF a parar outros inquéritos além do inquérito do golpe.

E assim o golpismo bolsonarista vai sobrevivendo, graças a essas transfusões de sangue do centrão.

Era o que faltava para a direita voltar a ser a Arena: juntar golpe e ladroagem. Ainda falta um nome para a aliança, mas isso deve ser resolvido ano que vem: lá pelo mês de junho devem passar a se chamar "Movimento Tarcísio Presidente".

Quando o diabo faz política

"Para obter o seu objetivo, o diabo é capaz até de citar as Escrituras" (Shakespeare em "O Mercador de Veneza"). Um filme a que se pode assistir como paráfrase desse pensamento é "O Diabo de Cada Dia" (2020), de Antonio Campos, sobre uma corrente do mal perpetuada em pequena cidade de Ohio (EUA). Vê-se como a religião molda trajetórias de vida, desenhando personagens com linhas distorcidas, desvirtuando o que se entende por fé. A ignorância total da realidade é aprofundada pela interpretação enviesada da Bíblia a cargo de um duvidoso pastor.


Um vilarejo desses é uma espécie de quintal de grande metrópole, assim como os sul-americanos foram chamados de "quintal" da América pelo neofascismo instalado em Washington. O que transcorre no filme é modelo da obtusidade dos protocolos populares da fé entre nós. Uma infra-teologia, raspas do atraso americano, molda o espaço de onde parte a crença para abraçar o destino humano em suas relações com o invisível. Mas o espanto diante dos comportamentos bizarros exibidos a olhos públicos decorre de quem tenta buscar um mínimo de racionalidade para o que acontece, quando as causas se localizam no mundo equívoco criado pela imaginação mítica do rebanho.

Pouco tempo atrás, pareciam ligadas a um clima alucinatório orações coletivas a pneus de caminhão, indivíduos em marcha como autômatos descontrolados, multidões com celulares acima das cabeças em aparente apelo por uma intervenção dos céus. Amenizado o clima, porém, o fenômeno se reedita nas redes e em frente ao hospital do internamento de Bolsonaro. Numa postagem, dizia um fiel que, abaixo de Deus na Terra, só o numinoso capitão.

Esses eventos fanáticos resultam da exasperação de uma das subculturas oligofrênicas, plenas de analfabetos funcionais (68 milhões de brasileiros acima de 18 anos, segundo o recente indicador de várias fundações, institutos, Unesco e Unicef), que coabitam com o sistema público de costumes e crenças. É síndrome de doença epidêmica da alma coletiva. O movimento antivacina, fortalecido durante a pandemia da Covid, faz parte de uma latência dessa natureza não só entre nós, como em outros países. Em 1966, numa epidemia de poliomielite, um pastor holandês proibiu os paroquianos de vacinar seus filhos, sob o pretexto de uma "punição de Deus". Numa antiga concepção judaico-cristã, qualquer calamidade seria interpretada como castigo de Deus a pecadores. Para espíritos mais obscuros, "coisa do diabo".

Daí ao salto no mundo da política é apenas circunstância, quando profecias bíblicas se tornam políticas de Estado. Diabo, outro nome para terror existencial, é matéria de neofascismo com Trump. Ao modo de Lúcifer, ele forjou uma foto em trajes papais e tem oficiado ritos cristãos. Eventos desrespeitosos, principalmente agora com um novo papa. A amplitude dessa efervescência fake não tem escala geográfica. Tanto faz país, metrópole, vilarejo, as quatro paredes de um templo suburbano ou uma "church" (o inglês marca a diferença de uma instalação de ricos), pastos para o pior do ser humano. Com ou sem inferno: não à toa, já se disse que "o diabo é um otimista se acredita que pode piorar as pessoas" (Karl Kraus).