sexta-feira, 8 de outubro de 2021
Bolsonaro agora faz discurso como messias do caos e da inflação
Jair Bolsonaro não está se segurando. Faz um mês, suspendeu a campanha golpista em público, parou de fazer motociata mussoliniana e ficou um tanto menos falante.
Dedicou a logorreia a fazer campanha contra vacinas e a culpar governadores pela carestia dos combustíveis. Seus assessores do centrão dizem que ele tem de sair do noticiário negativo a fim de recuperar pontos de popularidade. Nesta quinta-feira, voltou a falar mais.
Atacou de novo a vacinação contra a Covid. Também disse que o Brasil deve se preparar para “problemas de abastecimento” em 2022, pois os fertilizantes vão ficar muito caros. Sim, insinuou que pode faltar comida.
Bolsonaro até comentou que a Secretaria de Assuntos Estratégicos prepara um plano de emergência para não faltar fertilizante, mas nunca sabe o que diz, afora nos casos de pregação de golpe, morte, violências, preconceitos, ignorância ou de agitação do seu rebanho.
Primeiro, causa alarme com alarde, um alerta inútil (declarações alarmantes não produzirão mais fertilizantes) e talvez catastrofista.
A inflação do fertilizante pode ser ainda mais feia, assim como a do plástico ou de produtos que dependam ainda mais pesadamente de combustíveis ou de petroquímicos na sua fabricação. Faltam gás e carvão na Europa e na Ásia, o que também provoca aumento no preço de petróleo e derivados utilizados como alternativa. Pode ser que a crise seja atenuada se a Rússia quiser ou puder fornecer mais gás para a Europa, se a Opep decidir tirar mais petróleo do chão, se o outono e o inverno no Hemisfério Norte não forem muito frios, para ficar em problemas maiores e imediatos. Sim, é preciso antecipar crises e tentar atenuá-las, mas essa é uma conversa de loucura ingênua, em se tratando de Bolsonaro, que apenas agrava problemas, quando não os cria.
Segundo, no que diz Bolsonaro está implícito que gasolina e diesel vão também ficariam ainda mais caros, com ou sem o imposto dos governadores. O aumento de preço do petróleo antecede bem a crise que agora se dissemina pelo setor de energia inteiro. O que fez Bolsonaro a respeito?
Terceiro, Bolsonaro não fala de carne ou feijão (a não ser que esteja tratando da importância maior de comprar balas e fuzis). Nas semanas recentes, até passou a comentar com mais frequência o gás de cozinha, ainda que para fazer a promessa ignorante de baixar o preço do botijão pela metade. Em geral, prefere falar de diesel, assunto de seu eleitorado de presidente-vereador, e de gasolina. Nesta quarta-feira, tratou de fertilizante, decerto um problema sério, mas que chamou a sua atenção porque o pessoal do agro apita no seu ouvido.
O problema não é, claro, apenas falar. Bolsonaro é laborfóbico, quase nunca trabalhou na vida, não tem ideia do que é ser gerente, executivo, administrador, ignora questões de governo. Não tem vergonha na cara para assumir problema algum, além do mais. Costuma transferir responsabilidades para outrem. Talvez no fundo jamais tenha se convencido de que é presidente da República.
A epidemia tem mais de ano e meio e até agora Bolsonaro-Guedes não criaram um plano para aliviar a miséria sabida que viria e se vê faz tempo. Não há governo algum, nem badulaques para colocar na vitrine. Bolsonaro não consegue inaugurar mais do que mata-burros, pinguelas, bicas e metros de asfalto. Mais e mais deu para anunciar desastres: vai faltar luz, fertilizante. Talvez esteja certo. Sabendo de seu ócio destrutivo e de sua indiferença desumana, não se pode esperar previdência, prevenção ou tentativa de atenuar problemas importados. Bolsonaro conhece a si mesmo. É o Messias do caos.
Dedicou a logorreia a fazer campanha contra vacinas e a culpar governadores pela carestia dos combustíveis. Seus assessores do centrão dizem que ele tem de sair do noticiário negativo a fim de recuperar pontos de popularidade. Nesta quinta-feira, voltou a falar mais.
Atacou de novo a vacinação contra a Covid. Também disse que o Brasil deve se preparar para “problemas de abastecimento” em 2022, pois os fertilizantes vão ficar muito caros. Sim, insinuou que pode faltar comida.
Bolsonaro até comentou que a Secretaria de Assuntos Estratégicos prepara um plano de emergência para não faltar fertilizante, mas nunca sabe o que diz, afora nos casos de pregação de golpe, morte, violências, preconceitos, ignorância ou de agitação do seu rebanho.
Primeiro, causa alarme com alarde, um alerta inútil (declarações alarmantes não produzirão mais fertilizantes) e talvez catastrofista.
A inflação do fertilizante pode ser ainda mais feia, assim como a do plástico ou de produtos que dependam ainda mais pesadamente de combustíveis ou de petroquímicos na sua fabricação. Faltam gás e carvão na Europa e na Ásia, o que também provoca aumento no preço de petróleo e derivados utilizados como alternativa. Pode ser que a crise seja atenuada se a Rússia quiser ou puder fornecer mais gás para a Europa, se a Opep decidir tirar mais petróleo do chão, se o outono e o inverno no Hemisfério Norte não forem muito frios, para ficar em problemas maiores e imediatos. Sim, é preciso antecipar crises e tentar atenuá-las, mas essa é uma conversa de loucura ingênua, em se tratando de Bolsonaro, que apenas agrava problemas, quando não os cria.
Segundo, no que diz Bolsonaro está implícito que gasolina e diesel vão também ficariam ainda mais caros, com ou sem o imposto dos governadores. O aumento de preço do petróleo antecede bem a crise que agora se dissemina pelo setor de energia inteiro. O que fez Bolsonaro a respeito?
Terceiro, Bolsonaro não fala de carne ou feijão (a não ser que esteja tratando da importância maior de comprar balas e fuzis). Nas semanas recentes, até passou a comentar com mais frequência o gás de cozinha, ainda que para fazer a promessa ignorante de baixar o preço do botijão pela metade. Em geral, prefere falar de diesel, assunto de seu eleitorado de presidente-vereador, e de gasolina. Nesta quarta-feira, tratou de fertilizante, decerto um problema sério, mas que chamou a sua atenção porque o pessoal do agro apita no seu ouvido.
O problema não é, claro, apenas falar. Bolsonaro é laborfóbico, quase nunca trabalhou na vida, não tem ideia do que é ser gerente, executivo, administrador, ignora questões de governo. Não tem vergonha na cara para assumir problema algum, além do mais. Costuma transferir responsabilidades para outrem. Talvez no fundo jamais tenha se convencido de que é presidente da República.
A epidemia tem mais de ano e meio e até agora Bolsonaro-Guedes não criaram um plano para aliviar a miséria sabida que viria e se vê faz tempo. Não há governo algum, nem badulaques para colocar na vitrine. Bolsonaro não consegue inaugurar mais do que mata-burros, pinguelas, bicas e metros de asfalto. Mais e mais deu para anunciar desastres: vai faltar luz, fertilizante. Talvez esteja certo. Sabendo de seu ócio destrutivo e de sua indiferença desumana, não se pode esperar previdência, prevenção ou tentativa de atenuar problemas importados. Bolsonaro conhece a si mesmo. É o Messias do caos.
'O povo precisa de beleza'
Minha primeira reação foi de indignação moral. O fedor da corrupção empesteou o ar. Isso tem sido comum na história da política. Nem mesmo a Dinamarca escapou. “Há algo podre no reino da Dinamarca!”, Shakespeare escreveu no “Hamlet”.
Aí vieram as explicações. O fedor era uma ilusão. Flatulências da oposição. Mas os instrumentos para detecção de odores mostravam que o fedor existia, sintoma de que havia algo podre também na República do Brasil.
Veio depois o espanto psicótico. Percebeu-se que o mau cheiro era produzido não só por intestinos apodrecidos pela corrupção mas também por mentes apodrecidas pela loucura.
Mas o que sinto agora é outra coisa: horror estético. Tudo ficou grotesco. Barreto Pinto: somente os velhos se lembram do nome desse deputado. Apareceu na revista “O Cruzeiro” vestido de sobrecasaca e cueca samba-canção. Sobrecasacas são vestimentas de suprema nobreza. Usam-nas os regentes de orquestra, os pianistas, personalidades ilustres em cerimônias de grande pompa. Por outro lado, não havia nada de indecente numa cueca samba-canção. Todos os homens as usavam. E as mulheres gostavam de ver os seus homens na intimidade usando as ditas cuecas, as únicas que havia. Imagino até que as cuecas samba-canção as excitassem. Eram símbolos masculinos. Mas juntar sobrecasaca com cueca samba-canção é, definitivamente, grotesco. Não só grotesco como psicanaliticamente revelador: em cima, o corpo dignificado pela beleza atemporal da casaca, a máscara. Embaixo, o inconsciente, o corpo revelado e humilhado na verdade que as calças escondem, as pernas finas de velho saindo pela boca larga da cueca branca. Seus colegas parlamentares sentiram vergonha. Não o perdoaram. Foi cassado por quebra do decoro parlamentar.
Fiquei intrigado com o sentido da palavra “decoro”. Não posso me valer de um dicionário porque estou escrevendo de um lugar numa serra de Minas onde não há dicionários. Valer-me-ei do meu dicionário particular que mora na minha memória: “Decoro parlamentar, s.m. Refere-se ao estilo de comportamento verbal e corporal que um parlamentar deve ter para que as normas da estética não sejam quebradas”. Se não é isso, fica sendo…
Corrupção se castiga. Loucura se trata. Mas o grotesco é inesquecível. Quem viu não esquece mais. E embora poucos saibam disso, um povo precisa de beleza. É da beleza que nasce a esperança. O Hino Nacional é belo. Lembram-se da Fafá de Belém cantando nos comícios pelas “Diretas Já”? Todo mundo tremia e chorava por causa da beleza. A bandeira é bela, ondulada pelo vento. Quantas coisas bonitas a bandeira evoca no seu silêncio! Meu filho chorou ao vê-la pendida triste, enrolada no mastro, humilhada, escondendo-se de vergonha… E o Congresso, como um dos símbolos da nação, tem também de ser belo!
Mas isso ele não é. É impossível esquecer o grotesco: os deputados elegeram o Severino como seu modelo. O tempo passou. O grotesco ficou. A Câmara ficará severinomórfica por muito tempo…
Lembro-me da sessão em que Collor foi cassado. Todos os deputados se sabiam vistos pelo povo. Queriam posar de heróis. Vestiram suas palavras com casacas. E a cada nome que se chamava ouvia-se o ridículo: “Por Deus, pela pátria, pela família, sim, senhor presidente!”, “Pela honestidade, pela justiça, pelo Brasil, sim, senhor presidente!”. E assim, sem fim… Eu fiquei com vergonha. As sobrecasacas verbais não escondiam as pernas finas que saíam das cuecas samba-canção.
Estou cansado do grotesco. Quem nos devolverá a alegria da beleza?
Aí vieram as explicações. O fedor era uma ilusão. Flatulências da oposição. Mas os instrumentos para detecção de odores mostravam que o fedor existia, sintoma de que havia algo podre também na República do Brasil.
Veio depois o espanto psicótico. Percebeu-se que o mau cheiro era produzido não só por intestinos apodrecidos pela corrupção mas também por mentes apodrecidas pela loucura.
Mas o que sinto agora é outra coisa: horror estético. Tudo ficou grotesco. Barreto Pinto: somente os velhos se lembram do nome desse deputado. Apareceu na revista “O Cruzeiro” vestido de sobrecasaca e cueca samba-canção. Sobrecasacas são vestimentas de suprema nobreza. Usam-nas os regentes de orquestra, os pianistas, personalidades ilustres em cerimônias de grande pompa. Por outro lado, não havia nada de indecente numa cueca samba-canção. Todos os homens as usavam. E as mulheres gostavam de ver os seus homens na intimidade usando as ditas cuecas, as únicas que havia. Imagino até que as cuecas samba-canção as excitassem. Eram símbolos masculinos. Mas juntar sobrecasaca com cueca samba-canção é, definitivamente, grotesco. Não só grotesco como psicanaliticamente revelador: em cima, o corpo dignificado pela beleza atemporal da casaca, a máscara. Embaixo, o inconsciente, o corpo revelado e humilhado na verdade que as calças escondem, as pernas finas de velho saindo pela boca larga da cueca branca. Seus colegas parlamentares sentiram vergonha. Não o perdoaram. Foi cassado por quebra do decoro parlamentar.
Fiquei intrigado com o sentido da palavra “decoro”. Não posso me valer de um dicionário porque estou escrevendo de um lugar numa serra de Minas onde não há dicionários. Valer-me-ei do meu dicionário particular que mora na minha memória: “Decoro parlamentar, s.m. Refere-se ao estilo de comportamento verbal e corporal que um parlamentar deve ter para que as normas da estética não sejam quebradas”. Se não é isso, fica sendo…
Corrupção se castiga. Loucura se trata. Mas o grotesco é inesquecível. Quem viu não esquece mais. E embora poucos saibam disso, um povo precisa de beleza. É da beleza que nasce a esperança. O Hino Nacional é belo. Lembram-se da Fafá de Belém cantando nos comícios pelas “Diretas Já”? Todo mundo tremia e chorava por causa da beleza. A bandeira é bela, ondulada pelo vento. Quantas coisas bonitas a bandeira evoca no seu silêncio! Meu filho chorou ao vê-la pendida triste, enrolada no mastro, humilhada, escondendo-se de vergonha… E o Congresso, como um dos símbolos da nação, tem também de ser belo!
Mas isso ele não é. É impossível esquecer o grotesco: os deputados elegeram o Severino como seu modelo. O tempo passou. O grotesco ficou. A Câmara ficará severinomórfica por muito tempo…
Lembro-me da sessão em que Collor foi cassado. Todos os deputados se sabiam vistos pelo povo. Queriam posar de heróis. Vestiram suas palavras com casacas. E a cada nome que se chamava ouvia-se o ridículo: “Por Deus, pela pátria, pela família, sim, senhor presidente!”, “Pela honestidade, pela justiça, pelo Brasil, sim, senhor presidente!”. E assim, sem fim… Eu fiquei com vergonha. As sobrecasacas verbais não escondiam as pernas finas que saíam das cuecas samba-canção.
Estou cansado do grotesco. Quem nos devolverá a alegria da beleza?
Rubem Alves, Folha de S. Paulo, 24 de janeiro de 2006
No mundo da Dreadnoughts, inesxiste menina pobre sem absorvente
O que o veto do presidente Jair Bolsonaro à distribuição gratuita de absorventes para estudantes pobres e mulheres em situação de rua tem a ver com a Dreadnoughts Internacional, a inoxidável offshore de Paulo Guedes, com patrimônio de ao menos US$ 9,55 milhões?
A propósito: Sérgio Rodrigues, colunista desta Folha, sinta-se desafiado a fazer um ensaio combinando o nome dessas empresas dos ricos com seu grau de alienação da realidade. Ou de arrogância. Espero responder à pergunta inicial no curso do texto.
Consta que o ministro está indignado com a proporção que tomou a notícia, não a fake news, de que ele tem a tal empresa nas Ilhas Virgens Britânicas. Compreenda-se a sua fúria. Ele contou tudo à Comissão de Ética Pública. Por alguma razão inexplicada, a dita-cuja não viu contradição entre a sua empresa (e as de Roberto Campos Neto) e a lei 12.813. Há ainda o Código de Conduta da Alta Administração Federal, que também veda tal prática.
Um endinheirado qualquer ter uma offshore, devidamente declarada à Receita, não é crime. Quando se é ministro da Economia ou presidente do BC, o ordenamento jurídico define a prática como ilegal. E o código a considera antiética. Não se conferiu à tal comissão a faculdade de reinterpretar os dois textos.
A escalada do dólar, que tira comida da boca do pobre, deixa Guedes e Campos Neto mais ricos. A frase lhes pareceu, assim, de um jacobinismo juvenil? É que a alienação ou a impiedade de alguns ricos têm a idade da Terra e pedem o contraste. Ainda que a cotação da moeda não guardasse nenhuma relação com decisões tomadas pela dupla —e guarda—, isso estaria dado pela “árvore dos acontecimentos”.
Voltemos a falar daquele estrato social em que meninas deixam de ir à escola porque não dispõem de produtos para a higiene íntima. É bem provável que, num ambiente de prosperidade e de uma gestão virtuosa da economia, as peripécias da dupla não fossem percebidas por aquilo que são: um escândalo, antes de mais nada, moral, como apontei desde a primeira hora no programa “O É da Coisa” e em minha coluna no UOL.
As offshores, por si, não fazem de Guedes ou de Campos Neto larápios ou ladrões de dinheiro público. Ocorre que eles são personagens centrais de decisões que têm consequências e não podem, pois, ter o próprio patrimônio protegido das suas escolhas. O que este governo fez, por exemplo, para minorar os efeitos da estúpida inflação de alimentos? O câmbio inflacionou também o mercado de ossos.
Não proponho aqui enforcar o último dono de offshore com as tripas do último reacionário. Eu até os vejo com certa piedade. Não é que sintam prazer diante da miséria. Eles simplesmente não a entendem como questão urgente. O liberalismo à moda da casa —e peço escusas, leitor, por ainda acreditar numa versão virtuosa— especializou-se em dizer por que os pobres teriam direitos demais no Brasil. E jamais se ocupou de explicar as proteínas de menos.
Certamente há uma penca de hipócritas que transformam o sofrimento dos pobres em mero discurso ideológico, advogando soluções que seriam, antes de tudo, problemas. Não são nem meus interlocutores nem meus opositores. No mais das vezes, diga-se, são irrelevantes no debate e só servem para fazer a fama de cronistas vigaristas, que têm a grande coragem de se opor a minorias militantes.
Sou um conservador em muita coisa. Um dos traços do meu conservadorismo está em considerar que a coragem sempre será a coragem contra os poderosos, nunca contra quem os contesta, por menos razão que tenha ou por mais bobagens que diga. É a minha escolha há mais de 40 anos. Estes tempos insanos, no entanto, deram à luz também este tipo ordinário: seu destemor está em não ter receio de esfregar verdades na cara de quem nada pode.
Esses poderosos alienados não existem no vácuo. Há um ambiente também intelectual que os explica, em que menina pobre não menstrua. São, a seu modo, vítimas morais de sua concepção de mundo. Mas jamais terão de se submeter ao sopão de ossos. Que as urnas tentem corrigir os desatinos. E se não? O apocalipse não virá. Países não fecham; países pioram. Que o Brasil melhore ao menos.
A propósito: Sérgio Rodrigues, colunista desta Folha, sinta-se desafiado a fazer um ensaio combinando o nome dessas empresas dos ricos com seu grau de alienação da realidade. Ou de arrogância. Espero responder à pergunta inicial no curso do texto.
Consta que o ministro está indignado com a proporção que tomou a notícia, não a fake news, de que ele tem a tal empresa nas Ilhas Virgens Britânicas. Compreenda-se a sua fúria. Ele contou tudo à Comissão de Ética Pública. Por alguma razão inexplicada, a dita-cuja não viu contradição entre a sua empresa (e as de Roberto Campos Neto) e a lei 12.813. Há ainda o Código de Conduta da Alta Administração Federal, que também veda tal prática.
Um endinheirado qualquer ter uma offshore, devidamente declarada à Receita, não é crime. Quando se é ministro da Economia ou presidente do BC, o ordenamento jurídico define a prática como ilegal. E o código a considera antiética. Não se conferiu à tal comissão a faculdade de reinterpretar os dois textos.
A escalada do dólar, que tira comida da boca do pobre, deixa Guedes e Campos Neto mais ricos. A frase lhes pareceu, assim, de um jacobinismo juvenil? É que a alienação ou a impiedade de alguns ricos têm a idade da Terra e pedem o contraste. Ainda que a cotação da moeda não guardasse nenhuma relação com decisões tomadas pela dupla —e guarda—, isso estaria dado pela “árvore dos acontecimentos”.
Voltemos a falar daquele estrato social em que meninas deixam de ir à escola porque não dispõem de produtos para a higiene íntima. É bem provável que, num ambiente de prosperidade e de uma gestão virtuosa da economia, as peripécias da dupla não fossem percebidas por aquilo que são: um escândalo, antes de mais nada, moral, como apontei desde a primeira hora no programa “O É da Coisa” e em minha coluna no UOL.
As offshores, por si, não fazem de Guedes ou de Campos Neto larápios ou ladrões de dinheiro público. Ocorre que eles são personagens centrais de decisões que têm consequências e não podem, pois, ter o próprio patrimônio protegido das suas escolhas. O que este governo fez, por exemplo, para minorar os efeitos da estúpida inflação de alimentos? O câmbio inflacionou também o mercado de ossos.
Não proponho aqui enforcar o último dono de offshore com as tripas do último reacionário. Eu até os vejo com certa piedade. Não é que sintam prazer diante da miséria. Eles simplesmente não a entendem como questão urgente. O liberalismo à moda da casa —e peço escusas, leitor, por ainda acreditar numa versão virtuosa— especializou-se em dizer por que os pobres teriam direitos demais no Brasil. E jamais se ocupou de explicar as proteínas de menos.
Certamente há uma penca de hipócritas que transformam o sofrimento dos pobres em mero discurso ideológico, advogando soluções que seriam, antes de tudo, problemas. Não são nem meus interlocutores nem meus opositores. No mais das vezes, diga-se, são irrelevantes no debate e só servem para fazer a fama de cronistas vigaristas, que têm a grande coragem de se opor a minorias militantes.
Sou um conservador em muita coisa. Um dos traços do meu conservadorismo está em considerar que a coragem sempre será a coragem contra os poderosos, nunca contra quem os contesta, por menos razão que tenha ou por mais bobagens que diga. É a minha escolha há mais de 40 anos. Estes tempos insanos, no entanto, deram à luz também este tipo ordinário: seu destemor está em não ter receio de esfregar verdades na cara de quem nada pode.
Esses poderosos alienados não existem no vácuo. Há um ambiente também intelectual que os explica, em que menina pobre não menstrua. São, a seu modo, vítimas morais de sua concepção de mundo. Mas jamais terão de se submeter ao sopão de ossos. Que as urnas tentem corrigir os desatinos. E se não? O apocalipse não virá. Países não fecham; países pioram. Que o Brasil melhore ao menos.
Mentira como negócio
Desde que surgiu, o Facebook proclama que sua missão é “tornar o mundo mais aberto e conectado”, o que presume valorização das relações pessoais e de laços sociais. Seus algoritmos, contudo, foram programados basicamente para gerar o máximo de engajamento, o que tende a privilegiar a publicação e o compartilhamento frenético de conteúdos muitas vezes nocivos à saúde e à democracia.
Esse modelo de negócios foi denunciado no dia 5 passado por uma ex-programadora do Facebook, Frances Haugen, em depoimento ao Congresso dos EUA. Segundo ela, entre os conteúdos que geram mais interação no Facebook estão os que “fazem mal às crianças, alimentam a divisão e enfraquecem a nossa democracia”.
A suspeita é antiga. Frances Haugen tornou públicos documentos internos do Facebook que comprovariam que a empresa tinha evidências desses impactos, e não só não fez nada para reduzi-los, como pode tê-los maximizado. A se confirmar a veracidade da denúncia, ficará claro que o Facebook não se importa com o fato de que os conteúdos tóxicos que seu sistema favorece ajudam a tornar o mundo mais fechado e dividido, desde que esse engajamento lhe dê lucro e colabore para consolidar seu monopólio.
O Facebook alega que promove a responsabilidade social removendo conteúdos danosos, mas os documentos mostram que a empresa tomou medidas contra apenas uma pequena fração das publicações contendo discursos de ódio e incitação à violência.
Em 2018, o Facebook anunciou que, a fim de mitigar a radicalização, priorizaria publicações de amigos e família. Seus pesquisadores, no entanto, coletaram evidências do efeito oposto: “A desinformação, a toxicidade e o conteúdo violento prevalecem desordenadamente nos compartilhamentos”. Os documentos mostram ainda que pesquisadores do Instagram – uma das redes do Facebook, assim como o WhatsApp – mensuraram que, para 13,5% das adolescentes, a plataforma agravou ideações suicidas e para 17%, suas desordens alimentares.
Cientistas da Equipe de Integridade – da qual Haugen fazia parte – trabalharam em uma série de potenciais mudanças para reverter a tendência dos algoritmos a premiar ultrajes e mentiras. Mas os memorandos revelam que Mark Zuckerberg, o dono do Facebook, resistiu a várias dessas soluções, porque poderiam diminuir o engajamento dos usuários.
Em um artigo recente na revista The Atlantic, os psicólogos Jonathan Haidt e Tobias Rose-Stockwell fizeram uma recensão da literatura científica evidenciando que as redes contribuem para a ansiedade e depressão entre adolescentes e para a polarização política. Reunindo as melhores recomendações dessas pesquisas, os autores sugerem maneiras de remediar esses males.
Uma seria reduzir a frequência e a intensidade das performances públicas. As mídias criam mais incentivos a arroubos moralistas do que à comunicação autêntica. Reduzir a valorização do engajamento, hoje absoluta, seria um modo de induzir os usuários a julgar as publicações por seu mérito, ao invés de submetê-los a uma contínua disputa por popularidade. Outra possibilidade é reduzir o contágio da desinformação, por exemplo, utilizando a Inteligência Artificial para identificar conteúdos tóxicos e advertir os usuários.
A questão em relação a essas e outras ferramentas é quem as implementaria: os governos, as próprias redes, os usuários? O problema ganhou nova dimensão graças às denúncias de Frances Haugen. Nos EUA, já se discute uma expansão da Lei de Privacidade Infantil Online, tornando ilegal computar informações pessoais de crianças. Outra possibilidade é limitar a prerrogativa das redes sociais de não serem responsabilizadas por conteúdos publicados por seus usuários, mesmo quando moderados por elas.
Sejam quais forem as soluções encontradas, o fato é que alguma forma de regulação se faz necessária. Não se pode, a pretexto de preservar a livre-iniciativa, deixar que uma empresa construa um gigantesco monopólio, estimule a disseminação de mentiras para ampliar seu lucro e concentre poder de maneira assustadora sem que seja submetida a limites democraticamente estabelecidos.
Esse modelo de negócios foi denunciado no dia 5 passado por uma ex-programadora do Facebook, Frances Haugen, em depoimento ao Congresso dos EUA. Segundo ela, entre os conteúdos que geram mais interação no Facebook estão os que “fazem mal às crianças, alimentam a divisão e enfraquecem a nossa democracia”.
Maarten Wolterink (Holanda) |
A suspeita é antiga. Frances Haugen tornou públicos documentos internos do Facebook que comprovariam que a empresa tinha evidências desses impactos, e não só não fez nada para reduzi-los, como pode tê-los maximizado. A se confirmar a veracidade da denúncia, ficará claro que o Facebook não se importa com o fato de que os conteúdos tóxicos que seu sistema favorece ajudam a tornar o mundo mais fechado e dividido, desde que esse engajamento lhe dê lucro e colabore para consolidar seu monopólio.
O Facebook alega que promove a responsabilidade social removendo conteúdos danosos, mas os documentos mostram que a empresa tomou medidas contra apenas uma pequena fração das publicações contendo discursos de ódio e incitação à violência.
Em 2018, o Facebook anunciou que, a fim de mitigar a radicalização, priorizaria publicações de amigos e família. Seus pesquisadores, no entanto, coletaram evidências do efeito oposto: “A desinformação, a toxicidade e o conteúdo violento prevalecem desordenadamente nos compartilhamentos”. Os documentos mostram ainda que pesquisadores do Instagram – uma das redes do Facebook, assim como o WhatsApp – mensuraram que, para 13,5% das adolescentes, a plataforma agravou ideações suicidas e para 17%, suas desordens alimentares.
Cientistas da Equipe de Integridade – da qual Haugen fazia parte – trabalharam em uma série de potenciais mudanças para reverter a tendência dos algoritmos a premiar ultrajes e mentiras. Mas os memorandos revelam que Mark Zuckerberg, o dono do Facebook, resistiu a várias dessas soluções, porque poderiam diminuir o engajamento dos usuários.
Em um artigo recente na revista The Atlantic, os psicólogos Jonathan Haidt e Tobias Rose-Stockwell fizeram uma recensão da literatura científica evidenciando que as redes contribuem para a ansiedade e depressão entre adolescentes e para a polarização política. Reunindo as melhores recomendações dessas pesquisas, os autores sugerem maneiras de remediar esses males.
Uma seria reduzir a frequência e a intensidade das performances públicas. As mídias criam mais incentivos a arroubos moralistas do que à comunicação autêntica. Reduzir a valorização do engajamento, hoje absoluta, seria um modo de induzir os usuários a julgar as publicações por seu mérito, ao invés de submetê-los a uma contínua disputa por popularidade. Outra possibilidade é reduzir o contágio da desinformação, por exemplo, utilizando a Inteligência Artificial para identificar conteúdos tóxicos e advertir os usuários.
A questão em relação a essas e outras ferramentas é quem as implementaria: os governos, as próprias redes, os usuários? O problema ganhou nova dimensão graças às denúncias de Frances Haugen. Nos EUA, já se discute uma expansão da Lei de Privacidade Infantil Online, tornando ilegal computar informações pessoais de crianças. Outra possibilidade é limitar a prerrogativa das redes sociais de não serem responsabilizadas por conteúdos publicados por seus usuários, mesmo quando moderados por elas.
Sejam quais forem as soluções encontradas, o fato é que alguma forma de regulação se faz necessária. Não se pode, a pretexto de preservar a livre-iniciativa, deixar que uma empresa construa um gigantesco monopólio, estimule a disseminação de mentiras para ampliar seu lucro e concentre poder de maneira assustadora sem que seja submetida a limites democraticamente estabelecidos.
Recado papal
Menos armas e mais comida, menos hipocrisia e mais transparência, mais vacinas distribuídas igualmente e menos fuzis vendidos imprudentementePapa Francisco
A onda anticorrupção se foi e nada deixou
O forte sentimento de repulsa à corrupção foi central na crise que irrompeu em 2013 e desembocou na eleição de Bolsonaro daí a cinco anos. Cabe agora perguntar se terá algum papel nas urnas de 2022.
Décadas atrás, o pensador americano Theodore Lowi observou que o tema decerto tinha menos a ver com a presumível multiplicação das falcatruas —coisa difícil de medir— do que com a sua serventia como arma política em disputas acirradas. Argumentou ainda que, nessa condição, por não exprimir um compromisso permanente de partidos ou líderes, mais parecia uma sequência de ondas fadadas a perder força depois de arrebentar.
No Brasil, a bandeira anticorrupção foi quase sempre empunhada pela direita. Carlos Lacerda e a UDN (União Democrática Nacional) contra Getúlio Vargas nos anos 1950; Jânio Quadros com sua vassourinha contra a "bandalheira", na campanha de 1960; os golpistas de 1964 contra João Goulart; Fernando Collor contra os "marajás" em 1989. A exceção foi o PT quando, nos anos 1990, ensaiou substituir o discurso classista pela defesa da moralidade política, ensejando o apelido "UDN de macacão".
Mais uma vez, a retórica da luta contra a corrupção, ingrediente essencial do impeachment de Dilma Rousseff e da vitória de Bolsonaro, perdeu vigor. A mais clara evidência disso foi o destino de Sergio Moro, herói e algoz da Operação Lava Jato, ao colocá-la a serviço do populismo de extrema direita. Pesquisa do Ipesp mostra que, entre janeiro de 2020 e agosto de 2021, o ex-juiz perdeu 50% das intenções de voto para a Presidência da República. Nenhum dos outros possíveis presidenciáveis dá prioridade ao enfrentamento da corrupção. A onda passou, sem deixar legado institucional algum.
Fora da agenda dos partidos e dos candidatos, a certeza de que política e corrupção são unha e carne é disseminada entre os brasileiros. Reforça a percepção de que a economia funciona em benefício dos mais ricos e de que os políticos não ligam para o povo, alimentando a esperança numa solução personificada em um líder forte.
Esse é um dos achados do estudo da Ipsos Global Advisor intitulado "O Sentimento do Sistema Roto 2021" —que abrangeu 25 países. Colômbia, Brasil e Peru se destacam entre aqueles onde a corrupção percebida se enlaça fortemente com a sensação de que o sistema político se rompeu e não funciona para os cidadãos.
Enquanto assim for, o populismo de direita poderá ser vencido nas urnas --o que provavelmente acontecerá em 2022--, mas as suas raízes continuarão fortes na sociedade descrente. Cedo ou tarde, tornará a envenenar a vida política brasileira.
Décadas atrás, o pensador americano Theodore Lowi observou que o tema decerto tinha menos a ver com a presumível multiplicação das falcatruas —coisa difícil de medir— do que com a sua serventia como arma política em disputas acirradas. Argumentou ainda que, nessa condição, por não exprimir um compromisso permanente de partidos ou líderes, mais parecia uma sequência de ondas fadadas a perder força depois de arrebentar.
No Brasil, a bandeira anticorrupção foi quase sempre empunhada pela direita. Carlos Lacerda e a UDN (União Democrática Nacional) contra Getúlio Vargas nos anos 1950; Jânio Quadros com sua vassourinha contra a "bandalheira", na campanha de 1960; os golpistas de 1964 contra João Goulart; Fernando Collor contra os "marajás" em 1989. A exceção foi o PT quando, nos anos 1990, ensaiou substituir o discurso classista pela defesa da moralidade política, ensejando o apelido "UDN de macacão".
Mais uma vez, a retórica da luta contra a corrupção, ingrediente essencial do impeachment de Dilma Rousseff e da vitória de Bolsonaro, perdeu vigor. A mais clara evidência disso foi o destino de Sergio Moro, herói e algoz da Operação Lava Jato, ao colocá-la a serviço do populismo de extrema direita. Pesquisa do Ipesp mostra que, entre janeiro de 2020 e agosto de 2021, o ex-juiz perdeu 50% das intenções de voto para a Presidência da República. Nenhum dos outros possíveis presidenciáveis dá prioridade ao enfrentamento da corrupção. A onda passou, sem deixar legado institucional algum.
Fora da agenda dos partidos e dos candidatos, a certeza de que política e corrupção são unha e carne é disseminada entre os brasileiros. Reforça a percepção de que a economia funciona em benefício dos mais ricos e de que os políticos não ligam para o povo, alimentando a esperança numa solução personificada em um líder forte.
Esse é um dos achados do estudo da Ipsos Global Advisor intitulado "O Sentimento do Sistema Roto 2021" —que abrangeu 25 países. Colômbia, Brasil e Peru se destacam entre aqueles onde a corrupção percebida se enlaça fortemente com a sensação de que o sistema político se rompeu e não funciona para os cidadãos.
Enquanto assim for, o populismo de direita poderá ser vencido nas urnas --o que provavelmente acontecerá em 2022--, mas as suas raízes continuarão fortes na sociedade descrente. Cedo ou tarde, tornará a envenenar a vida política brasileira.
Consumir procurando uma felicidade que nunca chega, como compramos para construir nossa identidade
Consumismo é consumir mais do que precisamos, consumir para construir uma identidade própria, consumir para mostrar um estado socioeconômico, consumir pelo tédio, consumir para aplacar a ansiedade, consumir procurando uma felicidade que nunca chega. Ao consumo são atribuídas uma série de vantagens que ele na verdade não tem, mas o consumismo continua sendo encorajado, já que é o combustível principal do atual sistema econômico. O shopping, cheio de luzes chamativas e cores, de tentações inescapáveis e de emoções plastificadas, poderia muito bem ser uma imagem icônica de uma sociedade que se dirige despreocupadamente ao abismo.
“A razão pela que consumimos dessa forma, além de nossas necessidades, é porque o consumo é ideológico em seu núcleo”, diz Steve Miles, sociólogo da Universidade Metropolitana de Manchester e autor de livros como como Consumerism: as a way of life (Consumismo como meio de vida). “Somos obrigados a consumir de modos que não são naturais, mas que servem para manter o status quo”. A forma paradigmática dessa maneira irracional de consumir é a prática do shopping (ir às compras), fortemente publicitada por certo cinema e pela televisão: comprar por comprar se transforma em uma atividade de lazer de fim de semana e até em uma terapia para momentos de crise. A protagonista da série volta ao anoitecer para casa, com os braços cheios de sacolas de lojas, muito mais tranquila após passar a tarde percorrendo as lojas do centro. Agora isso sequer é necessário: basta uma conexão com a internet para comprar de casa produtos vindos de todo o planeta e tê-los em pouco tempo na porta de casa. Uma engrenagem azeitada nos incita constantemente a comprar: o gasto mundial em mercadotecnia em 2021 será de 657 bilhões de dólares (3,5 trilhões de reais), segundo um estudo da agência Magna, que se materializa nos 6.000 estímulos publicitários que recebemos todos os dias, de acordo com a Neuromedia.
O início do consumismo como o conhecemos costuma ser colocado nos Estados Unidos dos anos cinquenta. Na época, o desenvolvimento industrial e o clima econômico permitiram que fossem produzidos produtos baratos em grande escala para consumidores em grande escala. A indústria da publicidade se tornou maciça e sofisticada, e os créditos ao consumo se tornaram frequentes. O consumo se associava ao crescente bem-estar do pós-guerra, à casa confortável e cheia de eletrodomésticos, ao aumento das possibilidades de entretenimento. Para a socióloga do Boston College Juiet Schor, o consumismo é um fenômeno próprio das sociedades desiguais em que os de baixo tentam se equiparar aos de cima pelo modo de consumir, o que chama de consumismo competitivo.
Se antes vivia-se em bairros mais ou menos homogêneos (por exemplo, o bairro operário de periferia e os aprazíveis subúrbios norte-americanos dos anos cinquenta), onde as diferenças de classe não eram tão notórias, com a chamada incorporação da mulher ao trabalho —na verdade, a mulher sempre trabalhou na reprodução e nos cuidados— e o desenvolvimento dos veículos de comunicação maciça, as pessoas cada vez se viram mais expostas a outros grupos de referência com os quais se comparar e aos que imitar. Hoje em dia ocorrem fenômenos curiosos: o Instagram é uma rede internacional na qual estamos expostos aos estilos de vida dos privilegiados e daqueles que fingem sê-lo (influencers posando em idílicos iates, piscinas de sonho e viagens exóticas), o que move muitos a esse consumismo aspiracional. Ao mesmo tempo, marcas de luxo como a Gucci, Louis Vuitton e Versace são cada vez mais comuns em bairros pobres, e estrelas da classe trabalhadora, como os cantores de trap, fazem alarde (e publicidade) delas.
“Esta época se caracteriza por um consumo e uma produção acima dos limites biofísicos do planeta e tem a ver com a aceleração da economia que produziu a liberalização dos mercados, a globalização: há um consumo feito por pessoas precarizadas que não significa necessariamente um maior bem-estar”, diz Brenda Chávez, autora de livros como Al borde de un ataque de compras (À beira de um ataque de compras), que também aponta problemas como o desmatamento de florestas como a amazônica. “Se continuarmos nesse ritmo, consumindo mais do que a Terra pode produzir, o colapso ambiental pode estar próximo”, diz a jornalista. Gastamos a cada ano como se tivéssemos à nossa disposição 1,7 planetas Terra, de acordo com a organização Global Footprint Network.
Prova de que o consumo de hoje não tem tanto a ver com as necessidades são os relatos das empresas através de sua publicidade: na verdade, já não se publicitam produtos, ninguém diz que seu detergente lava mais branco. O que se publicitam são os valores. Nosso consumo se transforma assim em um complemento e uma definição de nossa personalidade. “Compramos uma marca porque está alinhada aos nossos valores e porque nos emociona”, diz o psicólogo Albert Vinyals, professor da Escola Superior de Comércio e Distribuição (ESCODI) da Universidade Autônoma de Barcelona e autor de El consumidor tarado (O consumidor estúpido). “Paradoxalmente, entre os valores que fomentam o consumo podem estar a sustentabilidade e, até mesmo, o anticonsumismo”. De fato, nos últimos tempos, o orgânico, o sustentável, o ecológico e até o rebelde e anticapitalista podem servir para nos fazer comprar mais. Mesmo sendo comum sermos motivados a consumir menos e consumir melhor, não está claro que mudar o modo de consumo irá mudar as coisas profundamente, além de aumentar o leque de opções para consumir. “A sociedade de consumo não irá desaparecer”, afirma o sociólogo Steve Miles, “está, na verdade, recalibrando, redefinindo, está se reinventando para camuflar a profundidade de suas credenciais ideológicas”.
Um estudo da ESCODI detecta certas tendências no consumo em tempos de pandemia: até 60% dos pesquisados, entre 18 e 45 anos, estão dispostos a diminuir seu consumo e a fazê-lo de modo mais sustentável, se mantém a preferência pela compra pela internet, mesmo em tempos de “nova normalidade”, e se torna visível um repúdio aos modelos de baixo custo que fizeram fortuna após a crise anterior. Além disso, alguns setores do consumo estão mudando do pagar pela propriedade ao pagar pelo uso. “Em outros casos”, diz Vinyals, “o que se valoriza é a experiência e até a exibição: há jovens que alugam uma Ferrari por um dia para tirar fotos e colocá-las nas redes sociais”.
Sergio C. Fanjul
“A razão pela que consumimos dessa forma, além de nossas necessidades, é porque o consumo é ideológico em seu núcleo”, diz Steve Miles, sociólogo da Universidade Metropolitana de Manchester e autor de livros como como Consumerism: as a way of life (Consumismo como meio de vida). “Somos obrigados a consumir de modos que não são naturais, mas que servem para manter o status quo”. A forma paradigmática dessa maneira irracional de consumir é a prática do shopping (ir às compras), fortemente publicitada por certo cinema e pela televisão: comprar por comprar se transforma em uma atividade de lazer de fim de semana e até em uma terapia para momentos de crise. A protagonista da série volta ao anoitecer para casa, com os braços cheios de sacolas de lojas, muito mais tranquila após passar a tarde percorrendo as lojas do centro. Agora isso sequer é necessário: basta uma conexão com a internet para comprar de casa produtos vindos de todo o planeta e tê-los em pouco tempo na porta de casa. Uma engrenagem azeitada nos incita constantemente a comprar: o gasto mundial em mercadotecnia em 2021 será de 657 bilhões de dólares (3,5 trilhões de reais), segundo um estudo da agência Magna, que se materializa nos 6.000 estímulos publicitários que recebemos todos os dias, de acordo com a Neuromedia.
Gianfranco Uber (Itália) |
O início do consumismo como o conhecemos costuma ser colocado nos Estados Unidos dos anos cinquenta. Na época, o desenvolvimento industrial e o clima econômico permitiram que fossem produzidos produtos baratos em grande escala para consumidores em grande escala. A indústria da publicidade se tornou maciça e sofisticada, e os créditos ao consumo se tornaram frequentes. O consumo se associava ao crescente bem-estar do pós-guerra, à casa confortável e cheia de eletrodomésticos, ao aumento das possibilidades de entretenimento. Para a socióloga do Boston College Juiet Schor, o consumismo é um fenômeno próprio das sociedades desiguais em que os de baixo tentam se equiparar aos de cima pelo modo de consumir, o que chama de consumismo competitivo.
Se antes vivia-se em bairros mais ou menos homogêneos (por exemplo, o bairro operário de periferia e os aprazíveis subúrbios norte-americanos dos anos cinquenta), onde as diferenças de classe não eram tão notórias, com a chamada incorporação da mulher ao trabalho —na verdade, a mulher sempre trabalhou na reprodução e nos cuidados— e o desenvolvimento dos veículos de comunicação maciça, as pessoas cada vez se viram mais expostas a outros grupos de referência com os quais se comparar e aos que imitar. Hoje em dia ocorrem fenômenos curiosos: o Instagram é uma rede internacional na qual estamos expostos aos estilos de vida dos privilegiados e daqueles que fingem sê-lo (influencers posando em idílicos iates, piscinas de sonho e viagens exóticas), o que move muitos a esse consumismo aspiracional. Ao mesmo tempo, marcas de luxo como a Gucci, Louis Vuitton e Versace são cada vez mais comuns em bairros pobres, e estrelas da classe trabalhadora, como os cantores de trap, fazem alarde (e publicidade) delas.
“Esta época se caracteriza por um consumo e uma produção acima dos limites biofísicos do planeta e tem a ver com a aceleração da economia que produziu a liberalização dos mercados, a globalização: há um consumo feito por pessoas precarizadas que não significa necessariamente um maior bem-estar”, diz Brenda Chávez, autora de livros como Al borde de un ataque de compras (À beira de um ataque de compras), que também aponta problemas como o desmatamento de florestas como a amazônica. “Se continuarmos nesse ritmo, consumindo mais do que a Terra pode produzir, o colapso ambiental pode estar próximo”, diz a jornalista. Gastamos a cada ano como se tivéssemos à nossa disposição 1,7 planetas Terra, de acordo com a organização Global Footprint Network.
Prova de que o consumo de hoje não tem tanto a ver com as necessidades são os relatos das empresas através de sua publicidade: na verdade, já não se publicitam produtos, ninguém diz que seu detergente lava mais branco. O que se publicitam são os valores. Nosso consumo se transforma assim em um complemento e uma definição de nossa personalidade. “Compramos uma marca porque está alinhada aos nossos valores e porque nos emociona”, diz o psicólogo Albert Vinyals, professor da Escola Superior de Comércio e Distribuição (ESCODI) da Universidade Autônoma de Barcelona e autor de El consumidor tarado (O consumidor estúpido). “Paradoxalmente, entre os valores que fomentam o consumo podem estar a sustentabilidade e, até mesmo, o anticonsumismo”. De fato, nos últimos tempos, o orgânico, o sustentável, o ecológico e até o rebelde e anticapitalista podem servir para nos fazer comprar mais. Mesmo sendo comum sermos motivados a consumir menos e consumir melhor, não está claro que mudar o modo de consumo irá mudar as coisas profundamente, além de aumentar o leque de opções para consumir. “A sociedade de consumo não irá desaparecer”, afirma o sociólogo Steve Miles, “está, na verdade, recalibrando, redefinindo, está se reinventando para camuflar a profundidade de suas credenciais ideológicas”.
Um estudo da ESCODI detecta certas tendências no consumo em tempos de pandemia: até 60% dos pesquisados, entre 18 e 45 anos, estão dispostos a diminuir seu consumo e a fazê-lo de modo mais sustentável, se mantém a preferência pela compra pela internet, mesmo em tempos de “nova normalidade”, e se torna visível um repúdio aos modelos de baixo custo que fizeram fortuna após a crise anterior. Além disso, alguns setores do consumo estão mudando do pagar pela propriedade ao pagar pelo uso. “Em outros casos”, diz Vinyals, “o que se valoriza é a experiência e até a exibição: há jovens que alugam uma Ferrari por um dia para tirar fotos e colocá-las nas redes sociais”.
Sergio C. Fanjul
O drama das crianças brasileiras deportadas para o Haiti
Mais de 7 mil migrantes que se encontravam em baixo da Ponte Internacional, na cidade fronteiriça texana de Del Rio, já foram deportados para o Haiti, segundo dados publicados pela Organização Internacional para as Migrações (OIM) na segunda-feira. Entre elas, estavam 381 crianças nascidas no Chile e 85 no Brasil. Estas são, portanto, brasileiras natas, ainda que de pais haitianos. Elas têm o direito de ser assistidas pelo governo brasileiro e de ser repatriadas.
Mas ao chegarem, forçadas pelo governo americano, ao aeroporto de Porto Príncipe ou de Cabo Haitiano, cidade no norte do Haiti que também recebe os voos vindos do Sul dos Estados Unidos, essas crianças e seus pais estão jogados no meio de um país à beira do colapso, em meio a uma violência quase generalizada pelas gangues que dominam, hoje em dia, grandes partes da região. Cada pessoa recebeu da OIM 120 dólares, o salário mínimo haitiano, suficiente apenas para sobreviver os primeiros dias num país que suas famílias, na maioria das vezes, tinham abandonado há muitos anos.
Na mídia, diz-se que o governo brasileiro, através da embaixada em Porto Príncipe, já está fornecendo ajuda a essas crianças. Estive no aeroporto da capital haitiana na ocasião da chegada de alguns voos, mas não encontrei nenhum representante do governo brasileiro. Por outro lado, encontrei haitianos que, durante anos e anos, tinham vivido e trabalhado no Brasil, onde seus filhos haviam nascido.
Alguns deles não sabiam que o governo brasileiro tem obrigação de ajudá-los; outros não sabiam como acionar tal ajuda. Assim, acabam se espalhando pelo Haiti, uns com a ajuda de familiares, outros se refugiando em favelas, na busca de uma moradia barata. Muitos carregam traumas pelos acontecimentos em tais viagens. Afinal, para se chegar do Chile ou do Brasil até a fronteira com os Estados Unidos, leva-se de um a dois meses. Neste percurso, eles gastam milhares de dólares com os "coyotes" – os facilitadores na travessia de um país para o outro.
Há relatos chocantes de passagens de migrantes pelas selvas do Peru e, principalmente, pelo região de Darién, no Panamá, com sua selva densa e perigosa de atravessar. Lá, na região que liga o país à Colômbia, eles são vítimas de gangues que roubam e matam. O mesmo perigo espera os migrantes no México, onde regiões inteiras estão sobre o domínio de bandos criminosos.
Além de haitianos e migrantes hispano-americanos, há também muitos brasileiros tentando entrar nos Estados Unidos de forma ilegal. Nos últimos tempos, houve inclusive notícias de crimes contra eles. Estão à busca de uma vida melhor, já que a situação econômica de muitos países – como o Brasil e o Chile – tem se deteriorado ultimamente. Assim, os EUA se transformam, cada vez mais, na "terra prometida" para muitos latinos. E também na única opção.
Cheguei ao Brasil no começo do século, quando o otimismo com o futuro era palpável. Havia uma onda de governos "progressistas" na região, que ensaiavam iniciativas de mais inclusão social. Hoje, olhando para o caos e a miséria que ronda o Haiti, encontro muitas similaridades com cidades brasileiras. A falta de comprometimento das administrações públicas com a melhoria das vidas dos cidadãos se reflete numa negligência com as cidades e seus habitantes.
Pergunto-me o que será dessas crianças haitiano-brasileiras, que, com pouca idade, já sentiram na pele as veias abertas da América Latina. Uma região cada vez mais fragilizada pela fragmentação das instituições governamentais e dominada pelas gangues do tráfico de drogas, de armas e humano. A América Latina se encontra num estado lamentável, numa emergência humanitária. E, aparentemente, sem governantes responsáveis e com visão de futuro para dar uma esperança à população. Dar uma perspectiva às crianças brasileiras que chegaram, sem querer, ao caos haitiano, já seria um começo. Pelo menos isso.
Mas ao chegarem, forçadas pelo governo americano, ao aeroporto de Porto Príncipe ou de Cabo Haitiano, cidade no norte do Haiti que também recebe os voos vindos do Sul dos Estados Unidos, essas crianças e seus pais estão jogados no meio de um país à beira do colapso, em meio a uma violência quase generalizada pelas gangues que dominam, hoje em dia, grandes partes da região. Cada pessoa recebeu da OIM 120 dólares, o salário mínimo haitiano, suficiente apenas para sobreviver os primeiros dias num país que suas famílias, na maioria das vezes, tinham abandonado há muitos anos.
Na mídia, diz-se que o governo brasileiro, através da embaixada em Porto Príncipe, já está fornecendo ajuda a essas crianças. Estive no aeroporto da capital haitiana na ocasião da chegada de alguns voos, mas não encontrei nenhum representante do governo brasileiro. Por outro lado, encontrei haitianos que, durante anos e anos, tinham vivido e trabalhado no Brasil, onde seus filhos haviam nascido.
Alguns deles não sabiam que o governo brasileiro tem obrigação de ajudá-los; outros não sabiam como acionar tal ajuda. Assim, acabam se espalhando pelo Haiti, uns com a ajuda de familiares, outros se refugiando em favelas, na busca de uma moradia barata. Muitos carregam traumas pelos acontecimentos em tais viagens. Afinal, para se chegar do Chile ou do Brasil até a fronteira com os Estados Unidos, leva-se de um a dois meses. Neste percurso, eles gastam milhares de dólares com os "coyotes" – os facilitadores na travessia de um país para o outro.
Há relatos chocantes de passagens de migrantes pelas selvas do Peru e, principalmente, pelo região de Darién, no Panamá, com sua selva densa e perigosa de atravessar. Lá, na região que liga o país à Colômbia, eles são vítimas de gangues que roubam e matam. O mesmo perigo espera os migrantes no México, onde regiões inteiras estão sobre o domínio de bandos criminosos.
Além de haitianos e migrantes hispano-americanos, há também muitos brasileiros tentando entrar nos Estados Unidos de forma ilegal. Nos últimos tempos, houve inclusive notícias de crimes contra eles. Estão à busca de uma vida melhor, já que a situação econômica de muitos países – como o Brasil e o Chile – tem se deteriorado ultimamente. Assim, os EUA se transformam, cada vez mais, na "terra prometida" para muitos latinos. E também na única opção.
Cheguei ao Brasil no começo do século, quando o otimismo com o futuro era palpável. Havia uma onda de governos "progressistas" na região, que ensaiavam iniciativas de mais inclusão social. Hoje, olhando para o caos e a miséria que ronda o Haiti, encontro muitas similaridades com cidades brasileiras. A falta de comprometimento das administrações públicas com a melhoria das vidas dos cidadãos se reflete numa negligência com as cidades e seus habitantes.
Pergunto-me o que será dessas crianças haitiano-brasileiras, que, com pouca idade, já sentiram na pele as veias abertas da América Latina. Uma região cada vez mais fragilizada pela fragmentação das instituições governamentais e dominada pelas gangues do tráfico de drogas, de armas e humano. A América Latina se encontra num estado lamentável, numa emergência humanitária. E, aparentemente, sem governantes responsáveis e com visão de futuro para dar uma esperança à população. Dar uma perspectiva às crianças brasileiras que chegaram, sem querer, ao caos haitiano, já seria um começo. Pelo menos isso.
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