“A razão pela que consumimos dessa forma, além de nossas necessidades, é porque o consumo é ideológico em seu núcleo”, diz Steve Miles, sociólogo da Universidade Metropolitana de Manchester e autor de livros como como Consumerism: as a way of life (Consumismo como meio de vida). “Somos obrigados a consumir de modos que não são naturais, mas que servem para manter o status quo”. A forma paradigmática dessa maneira irracional de consumir é a prática do shopping (ir às compras), fortemente publicitada por certo cinema e pela televisão: comprar por comprar se transforma em uma atividade de lazer de fim de semana e até em uma terapia para momentos de crise. A protagonista da série volta ao anoitecer para casa, com os braços cheios de sacolas de lojas, muito mais tranquila após passar a tarde percorrendo as lojas do centro. Agora isso sequer é necessário: basta uma conexão com a internet para comprar de casa produtos vindos de todo o planeta e tê-los em pouco tempo na porta de casa. Uma engrenagem azeitada nos incita constantemente a comprar: o gasto mundial em mercadotecnia em 2021 será de 657 bilhões de dólares (3,5 trilhões de reais), segundo um estudo da agência Magna, que se materializa nos 6.000 estímulos publicitários que recebemos todos os dias, de acordo com a Neuromedia.
Gianfranco Uber (Itália) |
O início do consumismo como o conhecemos costuma ser colocado nos Estados Unidos dos anos cinquenta. Na época, o desenvolvimento industrial e o clima econômico permitiram que fossem produzidos produtos baratos em grande escala para consumidores em grande escala. A indústria da publicidade se tornou maciça e sofisticada, e os créditos ao consumo se tornaram frequentes. O consumo se associava ao crescente bem-estar do pós-guerra, à casa confortável e cheia de eletrodomésticos, ao aumento das possibilidades de entretenimento. Para a socióloga do Boston College Juiet Schor, o consumismo é um fenômeno próprio das sociedades desiguais em que os de baixo tentam se equiparar aos de cima pelo modo de consumir, o que chama de consumismo competitivo.
Se antes vivia-se em bairros mais ou menos homogêneos (por exemplo, o bairro operário de periferia e os aprazíveis subúrbios norte-americanos dos anos cinquenta), onde as diferenças de classe não eram tão notórias, com a chamada incorporação da mulher ao trabalho —na verdade, a mulher sempre trabalhou na reprodução e nos cuidados— e o desenvolvimento dos veículos de comunicação maciça, as pessoas cada vez se viram mais expostas a outros grupos de referência com os quais se comparar e aos que imitar. Hoje em dia ocorrem fenômenos curiosos: o Instagram é uma rede internacional na qual estamos expostos aos estilos de vida dos privilegiados e daqueles que fingem sê-lo (influencers posando em idílicos iates, piscinas de sonho e viagens exóticas), o que move muitos a esse consumismo aspiracional. Ao mesmo tempo, marcas de luxo como a Gucci, Louis Vuitton e Versace são cada vez mais comuns em bairros pobres, e estrelas da classe trabalhadora, como os cantores de trap, fazem alarde (e publicidade) delas.
“Esta época se caracteriza por um consumo e uma produção acima dos limites biofísicos do planeta e tem a ver com a aceleração da economia que produziu a liberalização dos mercados, a globalização: há um consumo feito por pessoas precarizadas que não significa necessariamente um maior bem-estar”, diz Brenda Chávez, autora de livros como Al borde de un ataque de compras (À beira de um ataque de compras), que também aponta problemas como o desmatamento de florestas como a amazônica. “Se continuarmos nesse ritmo, consumindo mais do que a Terra pode produzir, o colapso ambiental pode estar próximo”, diz a jornalista. Gastamos a cada ano como se tivéssemos à nossa disposição 1,7 planetas Terra, de acordo com a organização Global Footprint Network.
Prova de que o consumo de hoje não tem tanto a ver com as necessidades são os relatos das empresas através de sua publicidade: na verdade, já não se publicitam produtos, ninguém diz que seu detergente lava mais branco. O que se publicitam são os valores. Nosso consumo se transforma assim em um complemento e uma definição de nossa personalidade. “Compramos uma marca porque está alinhada aos nossos valores e porque nos emociona”, diz o psicólogo Albert Vinyals, professor da Escola Superior de Comércio e Distribuição (ESCODI) da Universidade Autônoma de Barcelona e autor de El consumidor tarado (O consumidor estúpido). “Paradoxalmente, entre os valores que fomentam o consumo podem estar a sustentabilidade e, até mesmo, o anticonsumismo”. De fato, nos últimos tempos, o orgânico, o sustentável, o ecológico e até o rebelde e anticapitalista podem servir para nos fazer comprar mais. Mesmo sendo comum sermos motivados a consumir menos e consumir melhor, não está claro que mudar o modo de consumo irá mudar as coisas profundamente, além de aumentar o leque de opções para consumir. “A sociedade de consumo não irá desaparecer”, afirma o sociólogo Steve Miles, “está, na verdade, recalibrando, redefinindo, está se reinventando para camuflar a profundidade de suas credenciais ideológicas”.
Um estudo da ESCODI detecta certas tendências no consumo em tempos de pandemia: até 60% dos pesquisados, entre 18 e 45 anos, estão dispostos a diminuir seu consumo e a fazê-lo de modo mais sustentável, se mantém a preferência pela compra pela internet, mesmo em tempos de “nova normalidade”, e se torna visível um repúdio aos modelos de baixo custo que fizeram fortuna após a crise anterior. Além disso, alguns setores do consumo estão mudando do pagar pela propriedade ao pagar pelo uso. “Em outros casos”, diz Vinyals, “o que se valoriza é a experiência e até a exibição: há jovens que alugam uma Ferrari por um dia para tirar fotos e colocá-las nas redes sociais”.
Sergio C. Fanjul
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