segunda-feira, 9 de maio de 2022

Pensamento do Dia




Assim como a jabuticaba, o golpe com data marcada é coisa nossa

Se o golpe militar é o degrau mais alto que Bolsonaro pretende escalar para não deixar o poder, os demais degraus até que se chegue lá se tornam automaticamente possíveis.

É sobre a naturalização do golpe em curso. Antigamente, golpe se temia, mas anunciado não era. Caso seus sinais se tornassem explícitos, os conspiradores negavam o golpe.

Havia os pregadores do golpe, mas que não participavam diretamente dos seus preparativos. Davam palpites, quase sempre desprezados. E ajudavam a criar o clima para o que viria.

A luz do dia fazia mal à tessitura do golpe, por isso ela avançava à noite e em segredo. Os conspiradores temiam falar ao telefone, porque ele poderia estar grampeado pelo governo.


Sim, pelo governo. Golpe era sempre contra o governo de então. De 1930 para cá, só houve um golpe promovido pela situação: o de 1937, sob o comando do presidente Getúlio Vargas.

Vargas chegou à Presidência por meio do que é chamado de Revolução de 30. Derrotado na eleição daquele ano, encabeçou o movimento militar golpista e derrubou o presidente eleito.

Para ficar onde estava, ele deu o golpe de 1937, que instituiu o Estado Novo. Governou até 1945, foi deposto por um golpe, voltou eleito em 1950 e matou-se em 1954, para não ser golpeado outra vez.

A história da República brasileira está repleta de tentativas bizarras de golpes que falharam. O suicídio de Vargas com um tiro no coração adiou por 10 anos o golpe que se consumou em 1964.

O presidente Jânio Quadros protagonizou curiosa tentativa de golpe a favor. Eleito com votação estupenda, renunciou seis meses depois e levou com ele a faixa presidencial.

Queria voltar com ela no peito e nos braços do povo para governar com poderes especiais. Tomaram-lhe a faixa tão logo desembarcou em São Paulo, deixando Brasília para trás. Não lhe deram mais.

O tempo passou, mas a tentação do golpe não passou. Agora, os conspiradores estão nem aí para a luz do dia, o telefone que possa estar grampeado, os pregadores que se metem a dar palpites.

O golpe é trombeteado em jornais, rádio, televisão e redes sociais pelo presidente e os seus comparsas. Há fóruns a respeito, mesas-redondas, enquetes e até data prevista para que ele ocorra.

A dúvida, apenas, é se ele será um golpe preventivo ou reparador, se acontecerá na noite do primeiro turno, se no intervalo entre o primeiro e o segundo, ou se logo depois do segundo turno.

O golpe preventivo evita o anúncio da derrota de Bolsonaro, o reparador repara o estrago de uma derrota. Talvez fosse indicado realizar pesquisas para avaliar qual será a melhor alternativa.

Ao fim e ao capitão ninguém poderá dizer que foi surpreendido e acusar o governo de falta de transparência. À jabuticaba, coisa nossa, se juntará o golpe cantado em prosa e verso.

13 razões para não comemorar o 13 de Maio

Na semana em que o país completa 134 anos da abolição da escravatura, elenco 13 razões para não comemorar e pelas quais é imprescindível agir para combater o racismo.

O número corresponde ao dia em que, em maio de 1888, com a assinatura da Lei Áurea, negros até então escravizados em território nacional foram relegados à própria sorte —jogados na rua, marginalizados, sem trabalho, sem escola, sem dinheiro, sem direito a direito algum.

"Os senhores foram eximidos da responsabilidade pela manutenção e segurança dos libertos, sem que o Estado, a Igreja ou qualquer outra instituição assumisse encargos especiais, que tivessem por objeto prepará-los para o novo regime de organização da vida e do trabalho", diz a obra "A integração do negro na sociedade brasileira", do sociólogo Florestan Fernandes (1920-1995).

Algumas razões contemporâneas para não comemorar o 13 de maio:

1. A população é discriminada pela cor da pele e textura do cabelo.

2. Os casos de "injúria" racial são corriqueiros e não causam indignação social compatível ao agravo.

3. A escravização doméstica de mulheres negras persiste em 2022.

4. O desemprego e a pobreza são maiores entre pretos e pardos.

5. Mais de 66% dos menores em situação de trabalho infantil são negros.

6. Uma criança negra tem 25% mais chances de morrer antes de completar um ano.

7. Duas a cada três vítimas de feminicídio são mulheres negras.

8. Pretos e pardos são 78% das vítimas fatais por arma de fogo.

9. Os mais afetados pela pandemia no país foram pessoas negras.

10. No mercado de trabalho, mulheres negras recebem menos.

11. A taxa de analfabetismo é maior entre os negros.

12. O risco de morte por desnutrição é 90% maior entre crianças pretas e pardas.

13. O índice de doenças mentais é superior entre os negros.

Difícil manter a sanidade e, em que pese o valor histórico da data, impossível simplesmente comemorar.

Carestia que marcou fim do regime militar está de volta

Bastam alguns dias de caminhada pelas ruas de Manhattan ou do Brooklyn, em Nova York, com um pit stop estratégico na livraria Strand, para adaptar de Francis Fukuyama uma definição: a democracia brasileira passa por profunda crise cognitiva.

O sociólogo forjou décadas atrás o conceito de “fim da História”, ao ver a derrocada da União Soviética, saudar a prevalência da democracia liberal e a superação do modelo econômico estatista da esquerda marxista. A História, a China e algumas crises, em especial a de 2008, o tornaram motivo de exacerbada desconfiança.

Não sei se Fukuyama conhece a jabuticaba, mas deve estar informado de que a democracia brasileira, desde a derrubada da ditadura, está presa num labirinto incapaz de encontrar o futuro.

Passados mais de 30 anos, talvez por deficiência cognitiva, ainda se digladiam as principais forças que sustentavam e derrubaram o regime militar. O feitiço do tempo faz o país reviver o falso enredo de escolha entre uma extrema direita subserviente ao atraso produtivo e uma velha esquerda corporativa. Ambas se conectam na prática do patrimonialismo de quatro costados e agora estão de mãos dadas perfiladas na defesa de Putin. Portanto cinicamente solidárias à chacina na Ucrânia.

Talvez seja o caso de pensar no atraso tardio da primeira previsão de Fukuyama, não apenas pela incapacidade de não ter ocorrido renovação política no Brasil, mas também pelas ideias envelhecidas escandidas desavergonhadamente pelos dois principais candidatos. O fim da História, como a jabuticaba, é coisa nossa ao permanecer uma visão de desenvolvimento econômico de cepa militar-nacionalista-esquerdista. Um angu da TFP com o MR-8.


Embora escondido, o desastre Dilma Rousseff não foi acaso nem quimera, mas um fato ideológico da velha esquerda. Como Bolsonaro, reincidência da extrema direita militar e da histeria religiosa — dois mandatários a serviço do pensamento corporativista que impregnou o Brasil desde o golpe de 64, corroborado desde o apoio de Luís Carlos Prestes a Getúlio Vargas.

Um pouco de História sempre ajuda.

Em 1973, a oposição ao regime militar batia na tecla da volta das liberdades democráticas — havia censura na imprensa, tortura, assassinato de presos políticos. O governo Médici vendia a ideia de que se vivia um crescimento econômico e, portanto, liberdade ou eleições diretas eram detalhes irrelevantes.

Sempre é bom lembrar: boa parte da população engolia o discurso oficial. Além da necessidade humana de acreditar em Papai Noel, havia a manipulação do regime. O general Médici nadava em popularidade, e ninguém desconfiava das estatísticas oficiais. O pessoal ia ao supermercado, via que o preço do tomate subia a cada semana, só que não ligava o nome à coisa: inflação.

Mesmo sob censura, mas sem dados alternativos, a imprensa buscava passar elementos de que a construção econômica comandada pelos militares e dirigida pelo ministro da Fazenda, Delfim Netto, era um embuste.

Até que surgiu o Dieese, comandado por um seminarista, economista de profissão que colocou o ovo em pé. Walter Barelli, criado por uma mãe viúva na periferia paulistana, levantou dados dos salários dos trabalhadores, cruzou preços dos alimentos, contratação de empregados e chegou a números diferentes dos divulgados pela ditadura militar.

Era o que faltava para a oposição mais moderna conseguir mobilizar a população: o bolso, o bolso. O bordão da democracia podia não empolgar, ao contrário da inflação, que era compreendida independentemente de ideologia.

A grande vitrine da ditadura — o sucesso econômico, o controle da inflação detonada desde JK — estava enfim eclipsada por números reais. Em torno deles, se juntaram os velhos e novos líderes sindicais — Lula entre eles —, o movimento estudantil, as organizações de defesa de direitos civis e ainda as lideranças religiosas ligadas à oposição, como Dom Paulo Evaristo Arns, arcebispo de São Paulo e glorioso defensor dos presos políticos.

Bem que o governo tentou desmobilizar a oposição e seu novo eixo de luta, até que começaram defecções entre suas fileiras. Políticos governistas, mesmo direitistas e capazes de enxergar comunismo até no camundongo Mickey, viram o barco à deriva quando o Banco Mundial confirmou que os índices oficiais brasileiros eram enganosos, mentirosos — fake news!

O Brasil já estava sob um descontrole inflacionário como atestavam os números do Dieese e, sim, havia perdas salariais. Os índices que regulavam os dissídios roubavam os trabalhadores.

O Dieese de Walter Barelli forneceu à oposição régua e compasso para ir às ruas com uma bandeira: “Abaixo a carestia!”.

Foi o início real da derrocada da ditadura militar. Mesmo proibidas, começaram a ocorrer greves e manifestações de rua. Embora reprimidas, foram montadas passeatas, a oposição ganhou fôlego e aderência à população — a inflação come o salário da esquerda e da direita!

É a mesma carestia dos militares de antes, agora sob os generais de pijama, que em 2022 condena mais da metade da população a níveis calamitosos de pobreza.

Barelli era de esquerda, católico praticante, estudou sempre em escola pública e várias vezes recusou se filiar ao PT — preferiu o PSDB. Quando o presidente Itamar Franco pediu-lhe sugestão de um nome para seu Ministério do Trabalho, em 1992, Lula não pensou em Aloizio Mercadante ou Guido Mantega. Cravou:

— É o Barelli, Itamar.