quarta-feira, 3 de março de 2021

Brasil, um país à deriva e com o apocalipse sanitário à vista

Quem diria... Há dois anos, a maioria dos que se preparavam para votar em Jair Bolsonaro, o Mito, como era chamado, dizia que uma vez eleito, ele combateria a corrupção como nenhum presidente havia feito antes, defenderia os sacros valores da família brasileira e ofereceria uma vida melhor aos brasileiros.

Como essa gente estará se sentindo depois de ver Sergio Moro fora do governo, a Lava Jato sendo enterrada, o senador Flãvio Bolsonaro envolvido no escândalo da rachadinha e obrigado a justificar a compra de uma mansão de 6 milhões de reais em Brasília, e o novo recorde de mortes provocadas pela Covid?

Nas redes sociais, por enquanto, é de desânimo o estado de espírito dos defensores do ex-capitão. Os fatos se sucedem a uma velocidade alarmante e eles mal têm tempo para respirar, quanto mais agarrar-se a bóia de uma narrativa que pareça convincente. Não significa que ficarão órfãos. Há quem sempre pense por eles.

O próprio Bolsonaro ensaiou uma explicação ao reunir-se com devotos nos jardins do Palácio da Alvorada. “Querem me culpar pelas 200 e tantas mil mortes”, disse ele. “O Brasil é o 20º país do mundo em mortes por milhão de habitantes. A gente lamenta? Lamentamos. Mas tem outros países [em pior situação]”.


As famílias e os amigos dos 1.726 mortos pela Covid nas últimas 24 horas aceitarão de bom grado a desculpa oferecida pelo presidente? Morreram até ontem 257.562 pessoas, e 10.647.845 foram contaminadas. A média de mortes por dia é 23% maior do que a registrada há duas semanas.

Em média, são 55.318 novos casos por dia, 22% a mais do que 14 dias atrás. Portanto, a tendência é de alta nos casos e também nos óbitos. São 15 Estados e mais o Distrito Federal com alta na média de mortes. Com queda, três. Apenas 3,36% da população receberam a primeira dose de vacina, e 1,02% a segunda dose.

Acendeu a luz vermelha em todo o país com o agravamento da pandemia – menos, naturalmente, no Palácio do Planalto e no Ministério da Saúde do general Eduardo Pazuello. No palácio, a preocupação com o filho mais velho de Bolsonaro ocupou quase todas as rodas de conversa e os despachos de rotina.

Entre si, assessores presidenciais chegaram a sugerir que Bolsonaro repreendesse publicamente Flávio como fez no caso da rachadinha em janeiro de 2019. Naquela ocasião, o presidente afirmou em resposta à pergunta de um jornalista: "Se, por acaso, ele errou e isso ficar provado, eu lamento como pai, mas ele vai ter que pagar o preço por essas ações que não podemos aceitar."

Resposta civilizada, não foi? Um ano depois, Bolsonaro começou a mandar jornalista calar a boca. Com mais alguns meses, ameaçou encher de porrada a boca de um jornalista. Há dias, indagado por um jornalista do Acre sobre uma decisão do Superior Tribunal de Justiça que beneficiou Flávio, Bolsonaro encerrou a entrevista.

Flávio é um aplicado agente imobiliário. Desde que se elegeu pela primeira vez deputado estadual pelo Rio de Janeiro, já comprou e vendeu 20 imóveis, saindo sempre no lucro. Parte da compra dos imóveis foi feita com dinheiro vivo, hábito compartilhado com seus irmãos, pai, mãe e ex-madrastas. É mais fácil assim, sabe?

Era para Bolsonaro ter falado ontem ao país em rede nacional de rádio e televisão. Estava tudo pronto para a gravação quando ele achou melhor transferi-la para hoje. Temia ser recepcionado por um panelaço no dia em que só se falava da história da mansão milionária do filho dono de renda modesta.

Ainda muito se falará. Dado o momento que o país atravessa, dia de panelaço é todo dia.

Sem limites morais ou humanos

Na sexta-feira última (26), Jair Bolsonaro foi na mosca ao escolher o Ceará para cometer novos crimes contra a vida, induzindo o país a ignorar o isolamento, aglomerar-se nas ruas e não usar máscara. O Ceará é um dos estados em escuro no mapa, em que a taxa de ocupação das UTIs passa de 90%. Significa que muitos de seus apoiadores cearenses —ou os pais ou mães deles—, eventualmente apanhados pela Covid, podem estar morrendo na porta do hospital por falta de leito.

Vindo de um presidente da República, tal atitude só seria natural num irresponsável. Mas Bolsonaro sabe o que faz —o que tem a ganhar com isso é mais importante. Suponha que tal convite à insubordinação, assim como suas mentiras, seu poder corruptor e sua truculência, faça parte de uma estratégia anterior a ele, já provada vitoriosa.


Há mais de 50 anos, outro governante rompeu com seu partido, traiu os aliados e dedicou-se a desmoralizar o Congresso, o Judiciário e até as Forças Armadas. Esvaziou também a ciência, o ensino, a segurança pública e a própria administração e exortou seus seguidores a exercer a chamada democracia direta, através de grupos paramilitares livres para atuar. Esse governante —o "mito" que garantia tamanho caos— se chamava Mao Tsé-tung. E essa política foi a Revolução Cultural, que, enquanto durou, de 1966 a 1976, praticou toda espécie de violência em nome da "verdade".

Bolsonaro está cumprindo à risca esse plano, que não conhece limites morais ou humanos. Seu objetivo é o poder absoluto, e, para isso, corrompe e paga bem os que lhe são úteis --enquanto lhe são úteis. Virada a página, Bolsonaro os abate e abandona na estrada, donde os de farda, terno ou toga que se julgam seus aliados por ideologia preparem-se para surpresas. O poder só é poder se absoluto.

Mao morreu em 1976, aos 82 anos, e a Revolução Cultural acabou. Nem o poder absoluto é eterno.

Notas de um contaminado

1) A pandemia expôs o que não queríamos ver. O nosso lado ambíguo que tende a adiar problemas. A despeito, entretanto, de nossa autocondescendência — afinal de contas, Deus é brasileiro! —, a “gripezinha” do presidente Bolsonaro (e dos que são contra o seu estilo e governo, mas continuam se aglomerando) já matou mais de 256 mil! A pandemia obriga a pensar anormalmente com o outro.

Estamos contaminados, e a reflexão inevitável nos leva a uma história repleta de contrastes em termos de costumes e instituições. Somos um país “descoberto” de propósito ou por acaso? (como reza a fábula); somos uma sociedade constituída por três raças? (como diz um mito); ou uma nação solidificada e modernizada, um tanto à força, por um rei e uma corte fugida, em 1808, de Lisboa? (como diz a história).

Ou somos tudo isso e mais alguma coisa que a contaminação obriga a descobrir?

Será que jamais vamos aprender a votar e, por isso, o absolutismo bolsonarista tem força inclusive no Congresso Nacional, que, na semana passada, chegou perto de reinstituir imunidades aristocráticas?


2) Com a vinda da Corte, o Rio de Janeiro deixou de ser um povoado para virar a capital de um gigantesco reino ultramarino. Nele instalou-se uma realeza que oprimiu com um inapelável “você sabe com quem está falando?” a população nativa, desapropriando suas melhores moradas.

Nessa época, o mundo iniciava uma caminhada contra o atraso, mas, aqui no Brasil, combinávamos neomercantilismo com escravidão, que alicerçou um estilo de vida hierarquizado e aristocrático. Um sistema escravocrata, fundado no “um lugar para cada coisa, cada coisa em seu lugar”, que tirou do trabalho sua grandeza e criou uma brutal indiferença para com o mundo público e impessoal da rua. “Da porta de nossa casa para fora, o problema é do governo!”

Mas isso não funciona quando um vírus sem intencionalidade prova nossa incapacidade para juntar forças a agir solidariamente, porque as hierarquias que sustentam uma imensa desigualdade mostram como o familismo é recorrente e dominante.

Julgamos duramente de um lado, mas com condescendência do outro. Sofremos de uma ambiguidade de raiz porque podemos resolver o mundo como fidalgos ou como cidadãos. Eleitos e de “posse” de um cargo, em vez de democratizar, aristocratizamos. Voltamos sempre ao familismo, rasgando promessas democráticas. No mesmo passo, vemos o retorno de uma política de controle de preços que implode investimentos. Tudo isso mostra como mudamos sem mudar.

3) A crise, porém, instiga a imaginação. A mais surreal seria imaginar o Brasil invadido por um país estrangeiro e sendo obrigado defender-se e a declarar guerra ao inimigo.

A julgar pela caótica reação à Covid-19 e aos seus exércitos invasores, ao tempo que o Executivo, o Legislativo, o Judiciário e a opinião pública (obviamente dividida entre declarar ou não guerra ao invasor) se entendessem, o país já estaria falando o idioma do solerte inimigo. Pior que isso, mas igualmente plausível, seria testemunhar o governo comprando armas ultramodernas, mas esquecendo-se da munição, porque o comandante negava a guerra. O mais claro surrealismo, porém, seria ver o líder supremo das forças nacionais zombar do poder do ofensor (que teria tomado a Amazônia) comentando que se trata de uma “invasãozinha”.

É minha impressão, ou estamos vivendo um texto de George Orwell? Mentir é verdade, vigarice é legalidade, confusão é lucidez, morte é vida, derrota é vitória, doença é cura.

4) Desde que me entendo por gente, ouço que somos os piores. Que somos um povo sem homogeneidade racial; que somos preguiçosos, safados e desonestos por natureza e não por situação; que não temos bons governos e, eis a negação da negação: que não sabemos votar. Deus fez o Brasil bonito mas nele colocou um “povinho”...

No entanto, alguém comentou que esse “povinho” era pentacampeão mundial de futebol. Ele sequestrou — disse — um jogo sofisticado dos avançados ingleses, contrariando todas as teorias das colonizações perpétuas. Como foi possível?

— Um milagre?

— De modo algum. É que não criamos uma Futebolbrás. Se tivéssemos uma estatal do futebol, seu presidente seria o cunhado do mandão; seus funcionários seriam do Centrão; o técnico seria sobrinho do presidente da Câmara; e o selecionado brasileiro teria como titulares o Zero Um, o Zero Dois, o Zero Três e o Zero Quatro...

Você tem alguma dúvida?

5) O futebol vingou fora do governo porque governos têm que obter resultados. Não podem se preocupar somente em perpetuar-se e roubar. O domínio do esporte é dominado por mérito, e não por privilégios e laços de família. Ele existe com regras e, eis algo com que os nossos políticos ainda não atinaram: ninguém é campeão para sempre.

Seria o poder maior do que a lei? Sem dúvida, mas nas ditaduras. Nelas, porém — lembra? —, não há disputa, há obediência.

Pensamento do Dia

 

Alfredo Martirena (Cuba)

Agora governo e Congresso estão passando a boiada de verdade

Em maio passado, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, sugeriu em uma reunião de gabinete que a pandemia deveria ser usada pelo governo para mudar o maior número possível de leis ambientais, enquanto o país estivesse distraído com a crise em torno do coronavírus.

É exatamente isso que está sendo feito agora no Congresso, onde, há três semanas, foram instalados dois presidentes alinhados ao governo.


Enquanto o Brasil vive um novo pico no número de infectados e mortos pelo coronavírus, projetos de lei complicados, preparados durante muito tempo, aparecem de repente, do nada. E o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, quer agora submetê-los a uma votação rápida – antes mesmo que tenham sido instaladas as comissões que deveriam debatê-los primeiro.


Trata-se de decisões fundamentais para a política e a economia do Brasil.

A PEC (Proposta de Emenda à Constituição) Emergencial visa emendar a Constituição para que os gastos sociais possam ser elevados acima do teto para uma emergência como a pandemia. Isso sem que o governo seja responsabilizado posteriormente, como foi o caso recentemente da ex-presidente Dilma Rousseff em seu impeachment.

A PEC não terá qualquer concessão ao Legislativo: ela vai avançar aparentemente sem nenhuma mudança no campo dos gastos. Os cortes planejados nos salários dos funcionários públicos não aparecem mais. O governo quer eliminar os gastos mínimos estabelecidos para educação e saúde nos três níveis federais, para que governo federal, governador e prefeito possam usar o dinheiro como acharem melhor.

Já com a chamada "PEC da Impunidade", os deputados querem acima de tudo se proteger do Judiciário. Por exemplo, no futuro, eles devem decidir por si mesmos se um de seus próprios deve permanecer em prisão preventiva, mesmo que o STF tenha assim ordenado.

Além disso, um grande número de delitos não deve mais ser passível de punição: no futuro, deverá ser possível novamente empregar parentes, e quem não prestar contas de suas campanhas eleitorais com transparência não estará mais em risco. O ônus da prova é invertido: qualquer pessoa que trapacear em licitações públicas ou obtiver privilégios como deputado só poderá ser processada se houver "prejuízo ao erário" ou "dolo".

Também deve ser abolida a lei da Ficha Limpa, segundo a qual os deputados com antecedentes criminais não podem mais concorrer em eleições. Isso após a Lava Jato ter sido recentemente desmantelada pelo Ministério Público.

Mesmo que a PEC da Impunidade vá agora ser discutida por uma comissão, a tendência é clara: governo e Congresso querem se livrar rapidamente de uma maior transparência e dos controles democráticos e de corrupção cuidadosamente incorporados ao sistema legal nos últimos dez anos.

Para garantir o bom funcionamento de tudo isso, o presidente Bolsonaro colocou a Petrobras como isca para os deputados e senadores, instalando ali um general que cumprirá suas ordens. O mesmo acontecerá no Banco do Brasil.

O cálculo de Bolsonaro provavelmente vai funcionar: dentro de um ano e meio, a campanha eleitoral terá início. Os deputados e senadores vão querer subsídios, contratos e cargos para aliados. Eles votarão esmagadoramente a favor dos projetos de lei. Se não fora agora, vai ser dentro de algumas semanas.

Para a democracia brasileira, este é um amargo passo para trás
Alexander Busch

Política, vaidade e perversidade de Bolsonaro custam vidas ao país

Jair Bolsonaro nunca escondeu as razões de sua campanha para sabotar o combate ao coronavírus. Ainda nas primeiras semanas da pandemia, o presidente foi ao ataque contra governadores que implantaram medidas de restrição para conter a doença e disse estar no meio do que chamou de "luta pelo poder".

"É essa a preocupação que eu tenho. Se a economia afundar, afunda o Brasil. Se afundar a economia, acaba com meu governo", disse à rádio Bandeirantes, em março de 2020.


Quase nada mudou desde então. Enquanto brasileiros morrem aos milhares a cada semana, o presidente continua tratando a pandemia como um jogo político. Na sexta (26), em visita ao Ceará, Bolsonaro disse que "o povo não consegue mais ficar dentro de casa" e culpou seus adversários ("esses que fecham tudo e destroem empregos").

Essa politicagem barata é alimentada pela vaidade doentia do presidente. Bolsonaro foi capaz de transformar um assunto crítico como a busca pela vacina numa contenda particular: para desviar os holofotes do rival João Doria, ele adiou a compra da Coronavac e até comemorou o suicídio de um voluntário dos testes do imunizante.

A mesma lógica submete o país ao messianismo mortífero de Bolsonaro. Em busca de glória, o presidente mobiliza a máquina do governo para fabricar curas milagrosas que possam levar seu nome. Assim, desperdiça tempo e dinheiro atrás da cloroquina e do spray nasal israelense —ambos sem eficácia comprovada.

Além do político e da vaidade, os brasileiros também são reféns da perversidade delirante do capitão. Bolsonaro é um dos únicos líderes do mundo que produzem aglomerações inúteis e investem contra medidas básicas de proteção.

Na última semana, ele voltou a fazer propaganda de supostos "efeitos colaterais" do uso de máscaras, com base numa enquete alemã de baixo rigor científico. Autoridades sanitárias, porém, insistem que o equipamento de proteção é essencial. As atitudes de Bolsonaro custam vidas.

Estou feliz e grato, acabo de me vacinar

Acabei de ser vacinado contra a covid-19 e meus amigos me pedem que conte num artigo a minha experiência. 

Acabei de fazer isso na bela cidadezinha de Saquarema, na região dos Lagos. É a sorte de se morar em uma pequena cidade do interior onde a humanidade ainda existe e as pessoas se cumprimentam na rua. 

A organização da vacinação foi perfeita, ao lado da linda lagoa. Esperei só cinco minutos e as enfermeiras eram uns anjos. Aproveito para felicitar a prefeita Manuela [Peres], que cuida com tanto mimo e carinho de sua cidade. 

Nesses cinco minutos de espera, ao lado da minha felicidade se amontoou em minha mente a imensa fila de pessoas que a pandemia levou para sempre, e aqui no Brasil muitas ainda estariam vivas se não tivesse existido a política obstinada do presidente Bolsonaro com seu negacionismo desde o primeiro dia e agora com o boicote à vacina. 

Pensei na dor dos milhares de famílias que perderam seus entes queridos. Pensei na tragédia dos pais das quatro crianças de dois anos que o vírus levou em Santa Catarina antes de a vida começar.

Se o chefe de Estado chamou de covardes aqueles que se preocupam com o vírus, eu me sinto muito feliz por pertencer a esse exército. Nada mais desumano do que o desprezo pela vida. 

Penso que o Governo Bolsonaro, ao invés de se preocupar em armar as pessoas, faria melhor se antes tivesse se preocupado em levar a vacina para todos. Melhor sempre apostar na vida do que na guerra, na solidariedade do que no ódio. 

Hoje vi a cara de felicidade dos idosos que esperavam para ser vacinados e a gratidão que expressavam às enfermeiras. 

Estamos em um mundo e em um momento de crise em que todos precisamos de doses de confiança e da possibilidade de voltar à vida normal. A vacina é hoje a única forma, segundo a ciência, de lidar com tanta morte e sofrimento. 

Eu sei que, envenenados pelo negacionismo do Governo, muitos se recusam a ser vacinados.É o fruto amargo da atitude suicida de quem deveria dar o exemplo à sociedade. Em todos os outros países, os primeiros que quiseram ser vacinadas foram os reis e chefes de Estado, e o fizeram diante das câmeras de televisão para dar o exemplo. No Brasil, ao contrário, o presidente se antecipou a dizer em público: “Eu não vou tomar vacina e ponto final. Problema meu”. 

Triste exemplo para um país que sempre preferiu apostar na vida, e não na morte, e onde quem ainda passa fome prefere comida a armas. O profeta Jesus proclamou: “Eu sou a vida”. Se ele tivesse apostado na morte em vez da vida, talvez não o tivessem crucificado. 

A todos os meus amigos leitores digo que hoje estou feliz e grato por ter sido vacinado e àqueles que se sentem tentados a não o fazer, que o façam por solidariedade com os outros, pois cada um que se recusa a ser vacinado acaba sendo um perigo letal para os demais. 

Tribunal da História é já

O que mais se ouve diante da sucessão de imagens e notícias que atestam nossa calamidade é: “Que horror!”. Sim, um horror. Mas que tem nome e sobrenome: Jair Bolsonaro.

Sem Jair Bolsonaro, nunca teríamos Eduardo Pazuello como o ministro da Saúde mais longevo de um ano de pandemia desenfreada.

Sem Jair Bolsonaro, já teríamos superado a idade da pedra da pandemia e não veríamos boçais repetirem o presidente em que se espelham e colocarem em dúvida a necessidade básica de usar uma máscara.

Sem Jair Bolsonaro, governadores não ficariam com medinho de adotar medidas mais que urgentes, na verdade atrasadas, para conter internações e mortes, pois não teriam hordas de arruaceiros atrás de si propagando absurdos.


Se é tão óbvia a responsabilidade do presidente da República, por que seguimos bovinamente repetindo “que horror”, em várias esferas da vida nacional, e nada acontece a ele?

Graças a pensamentos como o do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), para quem os crimes cometidos pelo capitão são colocados na conta dos “exageros retóricos” ou de “comportamentos pessoais condenáveis”, e qualquer medida de contenção prescrita na Constituição é descabida no momento.

Para Pacheco, a História tratará de apontar as responsabilidades pelos crimes da pandemia. Enquanto isso, a missão do Congresso, segundo ele, é garantir que o auxílio emergencial seja aprovado logo e que as vacinas cheguem em profusão aos braços dos brasileiros.

Se a omissão ao menos levasse a esses objetivos, vá lá. A História trataria de julgar também os parlamentares.

Mas não! A negociação do auxílio está emperrada na absoluta ausência de projeto, que deveria ter sido pensado ainda na virada do ano, para garantir o mínimo de compensação fiscal a que Paulo Guedes tenta se apegar.

Não só não existe essa engenharia, como também nada garante que o pagamento de R$ 250 por quatro meses passará no Congresso sem majoração de prazo e valor. O que levará Guedes, Pacheco e companhia de volta à estaca zero e postergará em dias ou semanas o pagamento.

Da mesma maneira, a tal “planilha” que o imperdoável Pazuello apresentou a Pacheco, Arthur Lira e companhia no domingo não passa de mais um papel de pão sem validade. O Ministério da Saúde não tem como garantir as quantidades de vacinas que tem prometido. Não com os acordos que assinou até aqui, preto no branco.

Existem protocolos de intenções com vacinas ainda não aprovadas pela Anvisa, e não existe nem sinal de compra daquela única já aprovada em definitivo pela agência, a da Pfizer! Um atestado simples da mais completa incompetência e falência do Plano Nacional de Imunização.

Mas, ainda assim, os órgãos de controle, o Ministério Público, o Congresso e parte da sociedade seguem num misto de pensamento mágico de que tudo vai se resolver, negação da gravidade e ilusão de que seja possível levar uma “vida normal”.

Diante de tal cenário, o ministro da Economia, para justificar seu apego a um cargo de que já foi destituído na prática pelo presidente, pede que lhe apontem se está indo no caminho errado, porque assim ele sairá. É embaraçoso que o responsável pela Economia, no momento de maior solavanco na vida econômica do país, não tenha GPS.

Ainda falta mais de um ano para as eleições, e os que podem agir agora, porque têm mandato e atribuição legal para tal, seguem fingindo que não é com eles.

Enquanto não se exigir de Bolsonaro que pare de sabotar as medidas de distanciamento e o plano de imunização, sob pena de pagar com o que lhe é mais caro, a cadeira, o Brasil seguirá com o nefasto título de pior país do mundo hoje no enfrentamento à pandemia.

Uma música de protesto de um tempo igualmente macabro da vida brasileira dizia que quem sabe faz a hora, não espera acontecer. Esperar o tal tribunal da História significa assumir e aceitar que pessoas continuarão morrendo aos milhares. E, assim, ser cúmplice de Bolsonaro.

Presidência do Brasil

 

“Querem me culpar pelas 200 e tantas mil mortes. O Brasil é o 20º país do mundo em mortes por milhão de habitantes. A gente lamenta? Lamentamos. Mas tem outros países com IDH [Índice de Desenvolvimento Humano] melhor que o meu em que morre mais gente”.

Jair Bolsonaro


O nudista militante

Durante vários anos, na década de sessenta, um de meus trabalhos principais foi traduzir e ler Les Actualités Françaises, noticiário cinematográfico que a França distribuía semanalmente para a América Latina. A tradução me tomava apenas alguns minutos, mas me detinha toda tarde de quarta-feira nos estúdios de Génnévilliers, nos arredores de Paris. Havia herdado este trabalho de um locutor uruguaio a quem ocorreu a pior tragédia para um homem de sua profissão: tornar-se afónico. O fazia com gosto, pois era bem pago, e me distraía essa saída semanal da cidade, na qual com frequência, na ida ou na volta, costumava fazer uma parada no cemitério de cães de Asniéres, lugar onde está enterrado o célebre Rintintin e que realmente é muito bonito.

A gravação consistia em fugazes entradas na cabine de locução, separadas por compridos intervalos que eu matava lendo, espiando a dublagem de outras películas ou, mais amiúde, conversando com meu amigo projeccionista, Monsieur Louis. Dizer conversando é um exagero e uma mentira, pois conversar sugere intercâmbio e reciprocidade, e o nosso consistia exclusivamente em eu escutar o que ele dizia e em, de tempos em tempos, me limitar a intercalar em seu monólogo alguma observação banal, para manter a aparência, e dar a ele e a mim mesmo a impressão de que, de fato, conversávamos. Monsieur Louis era um desses homens que não admitem interlocutores: somente ouvintes.

Devia estar beirando os sessenta e era baixo, magro, com uns cabelos brancos que rareavam, uma tez rosada e uns olhinhos azuis muito tranquilos. Tinha uma voz que nunca se elevava nem endurecia, suave, monótona, persistente, ininterrupta. Vestia sempre um avental branco, imaculado como toda a sua pessoa, e seu rosto ostentava em qualquer ocasião um assomo de sorriso que nunca chegava a materializar-se. Poderia-se tomá-lo por um enfermeiro ou um laboratorista pois seu traje, seu semblante e suas maneiras de algum modo faziam pensar em hospitais, doentes e provetas cheias de química. Mas era projeccionista e estava ligado ao cinema desde muito jovem. Alguma vez ouvi que, nos anos trinta, trabalhara como cameraman na filmagem clandestina de curtas pornográficos cujos galãs eram, de preferência, cavalheiros tuberculosos, já que estes, dizia ele, tinham erecções prolongadíssimas que, dada a lentidão da rodagem, facilitavam muito as coisas. Mas Monsieur Louis havia deixado esse trabalho por temor à polícia. Na realidade não gostava de falar sobre isso nem de nada que não fosse o tema de sua vida: o nudismo.


Porque Monsieur Louis era nudista. Passava integralmente seu mês de férias na Île du Levant, uma pequena ilha mediterrânea onde funcionava a única colônia de nudistas autorizada na França nesse tempo. Passava os onze meses restantes economizando, trabalhando e contando as horas que faltavam para, com o sol de Agosto, voltar a viver por trinta dias ao ar livre, fotografando mariposas e casulos, acendendo fogueiras, queimando-se sobre as rochas ou molhando-se no mar, nu como uma foca. Andar nu, rodeado de pessoas nuas, lhe produzia uma ilimitada felicidade e, aparentemente, lhe resolvia todos os problemas. O nudismo era para ele uma dedicação permanente. Dez minutos após conhecê-lo, descobria-se que não só era seu único tema de conversação como também de reflexão e de acção. Porque assim como outros dedicam seus dias e suas noites a catequizar os demais e ganhá-los para a verdadeira religião ou para a verdadeira revolução, Monsieur Louis havia consagrado os seus a esse inconcebível apostolado: ganhar adeptos para o nudismo.

Nossa boa relação provinha de que ele me considerava um catecúmeno. E eu encorajava essa crença, escutando com verdadeiro interesse, entre as gravações de Les Actualités Françaises, os discursos com que ia-me iluminando sobre os fundamentos, segredos, lições e virtudes da filosofia nudista. Explicou-me tudo cem vezes, com argumentos e exemplos que se repetiam, obsessivos, em sua vozinha pausada, confiada, e incansável na propagação da fé. Falou-me da Grécia e da beleza dos corpos que se movem e despregam em liberdade, sem coberturas escravizantes; da comunhão do homem com a natureza, a única que pode devolver-nos a saúde física e a paz espiritual que perdemos por renegar covardemente a nossa primeira nudez; da necessidade de vencer os preconceitos, a hipocrisia, a mentira (em outras palavras: o vestuário) e de restabelecer a sinceridade e a frescura que existem nas relações entre, por exemplo, as aves e os pequenos cervos e que no paraíso terreno existiram também entre os humanos (e a que se devia isso?). Incontáveis vezes assegurou-me que, na Île du Levant, ao despojar-se das roupas, os homens e as mulheres tiravam também os maus pensamentos, os complexos de inferioridade, os vícios. Ouvindo-o, chegava-se quase a convencer-se de que o nudismo era aquela panaceia universal, cura de todos os males, que os alquimistas medievais buscaram com tanto desespero.


As lições não eram somente orais. Monsieur Louis me levava folhetos proselitistas e fotografias coloridas da ilha da liberdade. Aí estavam os nudistas, de corpo inteiro, a aí estava ele, rosáceo, helénico, bebendo o néctar das flores ou picando alegremente uns tomates, enquanto uma jovenzinha de lindos seios e púbis encaracolado refrescava umas alfaces. Durante um bom tempo chegaram em minha casa formulários, boletins de subscrição, convites de clubes nudistas, que nunca preenchi nem respondi.

Porque, apesar de seus esforços, Monsieur Louis não me ganhou para o nudismo. Mas, em compensação, me ajudou a identificar uma variedade humana que, sob diferentes roupas e afazeres, encontra-se pavorosamente estendida pelo mundo. O que recordo dele, sobretudo, é seu olhar: tranquilo, fixo, irredutível, cego para tudo o que não fosse ele mesmo. É um olhar que, em parte graças a ele, reconheço com facilidade e que vi reaparecer, multiplicada, uma e outra vez em religiosos e revolucionários, em intelectuais e em moralistas, sobretudo em ideólogos de toda espécie. É o olhar do que pensa ser dono da verdade, do que não se distrai, do que nunca duvida, do humano mais prejudicial: o fanático.
Mário Vargas Llosa

Um povo que escolhe ser representado pelo pior

Parece que nossos políticos são fruto de um experimento malsucedido, qualquer lama tóxica criada em laboratório, mistura de enxofre com mofo e mandinga do mal, que transbordou do tubo, criou membros e saiu se estapeando até chegar ao Planalto. É claro que essa é a origem de alguns funcionários públicos, mas não dos políticos.

Os políticos foram eleitos. Por voto direto, num sistema democrático. Isso quer dizer que alguém — muitos alguéns — acordaram num dia em novembro, foram até um local de votação e apertaram uns botõezinhos, pensando: o Daniel Silveira fará do Brasil um país melhor. Agora vai.

A pergunta, então, não é como é possível sermos representados pelo pior, mas como é possível sermos um povo que escolhe ser representado pelo pior. Quem são esses eleitores? Onde moram, como vivem, o que pensam? Por que a suposta ignorância é sinônimo de escolhas destrutivas?


Há 500 anos, um jovem de 22 anos se fez a mesma pergunta. O Discurso sobre a Servidão Voluntária, de Étienne de La Boétie, afirma que as pessoas se submetem a líderes autoritários e medíocres por hábito, apatia, e pela crença numa sociedade configurada com pirâmide: o tirano é apoiado por estafetas (o pessoal que saiu do tubo), apoiados por mais estafetas (nova leva), e assim por diante, até chegar à base amorfa e subserviente. La Boétie era francês, e só depois de quase 300 anos da publicação do livro é que a França se organizou como povo, afiou a guilhotina e se tornou mais justa.

“No Brasil não há povo”, disse o biólogo francês Louis Couty em 1881 (mais sobre o assunto no excelente livro de José Murilo de Carvalho “Os bestializados”). Povo no sentido de sociedade organizada. No Brasil, os políticos levam o povo no cabresto, perpetuando-se no poder devido à ignorância, apatia e alienação, quando deveria ser o oposto: o povo é que tem que manter os políticos no cabresto, cobrando ações e exigindo resultados.

Em outubro do ano passado eu enviei dezenas de postais para eleitores de estados republicanos, ressaltando a importância do voto e da democracia. Eu estava cansada, a mão doía, dava preguiça, era um saco. Milhares de pessoas fizeram o mesmo. Gente que não estava envolvida diretamente com política, mas viam em Trump uma ameaça ao bem comum, e se sentiram no direito e no dever de agir. Teve gente que ligou para eleitores. E os que produziram conteúdo que se tornou viral nas mídias. Depois foram aqueles cinco dias de frente para a TV acompanhando a contagem dos votos, e cada estado que se tornava democrático era uma vitória pessoal, ligada às noites de mão doída escrevendo aos outros.

Por muito pouco Trump não se reelegeu. E só não se reelegeu por causa da extraordinária e massiva organização popular. Por causa do “We the people” (Nós, o povo), que são as primeiras palavras da Constituição americana. A Constituição brasileira começa de modo parecido: “Nós, os representantes do povo.”

"Nós, os representantes do povo" (i.e., aquelas pessoas cheias de empatia que estão no Congresso), representam hoje a si mesmos. Nós, que escolhemos os representantes, precisamos nos organizar como povo e agir. Vai dar trabalho, mas é a única forma de evoluirmos como nação. 

A comparação deve ser entre Flávio Bolsonaro e Lulinha

Naquela intransponível crença nacional de que dois erros fazem um acerto, a mansão comprada por Flávio Bolsonaro, em Brasília, foi comparada ao triplex de Lula no Guarujá. Para o bem da Nação, contudo, é preciso medir alhos com alhos e bugalhos e com bugalhos. No caso, os bugalhos são Flávio e Fábio Luís Lula da Silva, primogênitos de Jair Bolsonaro e do Grande Timoneiro do PT, respectivamente.

Certo de que a Justiça divinamente superior garantirá o seu Estado de Direito privado, Flávio decidiu entrar para o vasto clube dos políticos e autoridades que adquirem imóveis de luxo com preços bem acima do que permitiriam os seus proventos declarados. Talvez aconselhado por homens retos e verticais, como o advogado Frederick Wassef e Fabrício Queiroz, de profissão indefinida, Flávio, o 01 do papai na política, cometeu a delicadeza de lavrar a escritura de compra do imóvel na aprazível cidade-satélite de Brazlândia, a 45 quilômetros do Plano Piloto. Já Fábio Luís Lula da Silva, o Lulinha, praticou a cortesia de não comprar casa nenhuma. Alugou um apartamento de luxo em São Paulo do empresário Jonas Suassuna, aquele mesmo que emprestava metade do sítio em Atibaia para Lula e Marisa Letícia — a mesma Atibaia onde Wassef escondeu Queiroz, em outros quinhentos. Curiosamente, a casa de Flávio foi comprada por aproximadamente 6 milhões de reais, o mesmo valor do apartamento alugado por Lulinha, a preço de 2015.


Fábio Luís teve a mão profissional de Jonas Suassuna; Flávio contou com a seriedade e competência do presidente do Banco Regional de Brasília, Paulo Henrique Costa, apadrinhado do governador Ibaneis Rocha e cotado para presidir o Banco do Brasil. O primogênito de Jair Bolsonaro pagou à vista 3,1 milhão de reais pela mansão, apesar do seu patrimônio declarado em 2018 ser de 1,7 milhão, e convenceu, provavelmente a duras penas, o presidente do banco a lhe emprestar o restante. Está vendo aquele financiamento ali? Não? É porque foi a perder de vista. Está vendo aquela mansão que baixou de preço em tempos de valorização de imóveis?Senador atento às oportunidades é assim. Sem gastos com uma família construída por ele próprio, Carlos Bolsonaro não precisou de financiamento: pôde contentar-se com um apartamento de 470 mil reais, comprado à vista no ano passado na capital federal, em nome da mãe. Mas esse é outro bugalho, assim como Eduardo e Renan Bolsonaro.

Flávio é empresário no ramo do chocolate. Só não alcançou maior sucesso porque tem de dedicar aos interesses do povo brasileiro, questão de sacerdócio, e o setor chocolateiro anda muito rachado entre diversos competidores de maior peso. Sem o chamado vocacional para a política, embora tenha tentado entrar no negócios pela porta dos fundos, Fábio Luís é empresário nas adjacências do ramo dos jogos eletrônicos. Experimentou um sucesso fulgurante, tanto que Lula se referiu a ele como o seu Ronaldinho, mas as multinacionais gananciosas e impiedosas decidiram não mais admitir concorrência nacional. Seria preciso resolver isso aí, mas o governo liberal só se preocupa em subsidiar o preço do petróleo com dinheiro do pagador de impostos.

Em 2022, se tudo der certo para eles e errado para o Brasil, Jair Bolsonaro e Lula poderão incluir na disputa do segundo turno a história dos seus dois filhos mais velhos. E culpar o Ministério Público e a imprensa independente pelo fato de ambos os rebentos terem tido as suas aptidões para os negócios colocadas em dúvida. O mercado também não anda fácil. Alhos com alhos, bugalhos com bugalhos, honestamente.

Adeus à razão

A irresponsabilidade do governo federal, secundado por boa parte dos estaduais, beira o absurdo. São mais de 250 mil mortos, nenhuma previsão de melhora e discussões bizantinas sobre alternativas inexistentes, como a da escolha entre vacina ou trabalho, como se fossem excludentes. Enquanto não houver vacinação maciça não haverá volta à normalidade.

Os limites da racionalidade são testados diariamente, como se a destruição fosse inevitável, seja da saúde coletiva, seja dos fundamentos da economia. Há, atuante, o que Freud chamava de pulsão de morte, Tânatos, que age “livremente” sem nenhuma contenção. Ou, em linguagem bíblica, a devastação atingindo pessoas, corroendo a saúde e produzindo a miséria. Será esse o nosso destino? Um ano já se foi, o de 2020, o outro começa a ir-se. E discutem-se as eleições de 2022!

A incompetência – A incompetência é o lado mais visível da devastação. Não há vacinas, não há insumos para a sua produção, não há leitos de UTI suficientes, não há oxigênio em algumas cidades. Boa parte do ano foi gasta com declarações inúteis sobre vacinar ou não, como se a vida do outro pudesse ser objeto de escolha. Todas as opções feitas foram erradas, com a exceção do governador João Doria, que tomou a iniciativa de comprar e produzir vacinas, a dita chinesa, que o presidente, enfim, depois de muita tergiversação, decidiu “nacionalizar”. No momento de tomar iniciativas meses atrás, demitiu ministros que tinham noção da gravidade da situação e os substituiu por um que só obedece, dando tempo para o vírus produzir os seus efeitos. Ode à irracionalidade.

A destruição – O resultado é a destruição. Vidas são perdidas, o medo da morte se generaliza, as pessoas se perguntam pelo amanhã, anseiam pela volta de uma normalidade perdida. E a perda se reflete no emprego, no nível de vida, na miséria hoje vivida por boa parte da população. Se o auxílio emergencial vier – e deveria moralmente vir –, parece que o será por razões eleitorais, e não por compaixão ao próximo. As autoridades responsáveis deveriam mostrar um mínimo de moralidade, de preocupação com o outro, e não se ater a coisas da política mais comezinha, cargos, privilégios e ausência de postura. E não apenas na ordem sanitária a pulsão de morte está presente, mas também no abalo da economia, na irresponsabilidade fiscal, na ausência de alternativas. Quanto mais o País afunda, mais é dito que tudo é fruto de más notícias, da imprensa e da mídia tradicional, como se dizer a verdade, expor o que está realmente acontecendo, fosse o maior dos males. Bem e mal trocaram da posição.

A poção mágica – O País regrediu a rituais mágicos. Enquanto a devastação progride e a morte se alastra, foi-nos oferecido uma poção mágica, coquetel de medicamentos inúteis para o tratamento da covid-19. Deu-se até um nome a isso, “tratamento precoce”. De tratamento não tem nada e de precoce só a enganação. Voltamos a um mundo medieval de drogas milagrosas com mercadores ambulantes que tudo prometem e nada fazem senão vagar para o próximo embuste. Milhões de reais foram gastos com a tal da cloroquina, que foi distribuída a Estados e municípios, como se algo estivesse sendo feito. Para vacina, nada; para a poção mágica, tudo! Guarda-se a aparência de ciência, transgredindo todos os seus critérios e protocolos. O Brasil tornou-se uma ilha de insanidade no mundo!

A emulação – Governantes devem dar o exemplo, que se multiplica no comportamento dos seus cidadãos. Bons exemplos produzem atitudes correspondentes; maus comportamentos criam os seus próprios. Se a ciência é desprezada ostensivamente, ganha curso um vale-tudo na população. Se o presidente não usa máscara, sendo a autoridade máxima, por que o cidadão comum haveria de fazê-lo? Se recomenda a poção mágica, por que as pessoas não deveriam tomá-la? Se não respeita aglomerações, por que as pessoas ficariam reclusas e separadas umas das outras? O bolsonarismo encarna precisamente esse tipo de comportamento, propagando a destruição como se fosse a nova normalidade, o que foi chamado de “nova política”. Essa forma de congraçamento no desprezo do outro, na ausência de solidariedade, tem o seu contrapeso na identificação com o líder e na fraternidade dos companheiros na pulsão de morte.

O juízo final – O espetáculo é aterrador. O vírus avança, sem limites, “contente da vida”, encontrando nos humanos a sua melhor forma de reprodução. Ele encontra uma “solidariedade” do avesso nos governantes que lhe deixam agir livremente, como se a liberdade fosse a devastação generalizada. Tânatos se propaga, enquanto as pessoas festejam nas ruas e praias, em bares e cafés, como se nada mais restasse senão dançar e cantar antes que a destruição encontre o seu ápice. A imagem bíblica que vem à mente é a de uma espécie de juízo final se aproximando, como se nada mais pudesse ser feito, como se nada mais fosse digno de esperar, como se ainda fosse possível uma “imunidade de rebanho”, na verdade um rebanho de humanos tomados pela insanidade.