quarta-feira, 3 de março de 2021

Um povo que escolhe ser representado pelo pior

Parece que nossos políticos são fruto de um experimento malsucedido, qualquer lama tóxica criada em laboratório, mistura de enxofre com mofo e mandinga do mal, que transbordou do tubo, criou membros e saiu se estapeando até chegar ao Planalto. É claro que essa é a origem de alguns funcionários públicos, mas não dos políticos.

Os políticos foram eleitos. Por voto direto, num sistema democrático. Isso quer dizer que alguém — muitos alguéns — acordaram num dia em novembro, foram até um local de votação e apertaram uns botõezinhos, pensando: o Daniel Silveira fará do Brasil um país melhor. Agora vai.

A pergunta, então, não é como é possível sermos representados pelo pior, mas como é possível sermos um povo que escolhe ser representado pelo pior. Quem são esses eleitores? Onde moram, como vivem, o que pensam? Por que a suposta ignorância é sinônimo de escolhas destrutivas?


Há 500 anos, um jovem de 22 anos se fez a mesma pergunta. O Discurso sobre a Servidão Voluntária, de Étienne de La Boétie, afirma que as pessoas se submetem a líderes autoritários e medíocres por hábito, apatia, e pela crença numa sociedade configurada com pirâmide: o tirano é apoiado por estafetas (o pessoal que saiu do tubo), apoiados por mais estafetas (nova leva), e assim por diante, até chegar à base amorfa e subserviente. La Boétie era francês, e só depois de quase 300 anos da publicação do livro é que a França se organizou como povo, afiou a guilhotina e se tornou mais justa.

“No Brasil não há povo”, disse o biólogo francês Louis Couty em 1881 (mais sobre o assunto no excelente livro de José Murilo de Carvalho “Os bestializados”). Povo no sentido de sociedade organizada. No Brasil, os políticos levam o povo no cabresto, perpetuando-se no poder devido à ignorância, apatia e alienação, quando deveria ser o oposto: o povo é que tem que manter os políticos no cabresto, cobrando ações e exigindo resultados.

Em outubro do ano passado eu enviei dezenas de postais para eleitores de estados republicanos, ressaltando a importância do voto e da democracia. Eu estava cansada, a mão doía, dava preguiça, era um saco. Milhares de pessoas fizeram o mesmo. Gente que não estava envolvida diretamente com política, mas viam em Trump uma ameaça ao bem comum, e se sentiram no direito e no dever de agir. Teve gente que ligou para eleitores. E os que produziram conteúdo que se tornou viral nas mídias. Depois foram aqueles cinco dias de frente para a TV acompanhando a contagem dos votos, e cada estado que se tornava democrático era uma vitória pessoal, ligada às noites de mão doída escrevendo aos outros.

Por muito pouco Trump não se reelegeu. E só não se reelegeu por causa da extraordinária e massiva organização popular. Por causa do “We the people” (Nós, o povo), que são as primeiras palavras da Constituição americana. A Constituição brasileira começa de modo parecido: “Nós, os representantes do povo.”

"Nós, os representantes do povo" (i.e., aquelas pessoas cheias de empatia que estão no Congresso), representam hoje a si mesmos. Nós, que escolhemos os representantes, precisamos nos organizar como povo e agir. Vai dar trabalho, mas é a única forma de evoluirmos como nação. 

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