quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

Quando o tempo não passa

Como certas doenças, existem tempos que não passam. São intermináveis como este nosso 2016 — certamente, um clássico desta categoria, próximo do que foi 1968, celebrizado por Zuenir Ventura num belo livro.

Os tempos não passam quando neles ocorrem eventos desafiadores para as estruturas vigentes. Em 1968 — vivido por mim em Cambridge, Massachusetts — as revoltas estudantis, os assassinatos de Luther King e Robert Kennedy, a luta contra o racismo e a Guerra do Vietnã desafiavam a democracia americana. Num Brasil arrolhado pela ditadura, fazia-se o que era possível.

Quando os fatos não cabem nas gavetas da História, eles viram dramas.

Não passam.

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Tal como 1968, esse 2016 explicita os enganos de um Brasil ultraestatizado, radicalizado e incestuosamente assaltado, mas com um sistema legal ainda vivo e capaz de cometer a heresia de enjaular poderosos.

Todo fato chocante vira drama porque perde transitoriedade. Torna-se indigesto, impedindo o trânsito de um tempo que concebemos como passando, como a paisagem do trem que levou Hans Castorp à “Montanha mágica”. Numa cosmologia que estratifica as épocas — Idade das Trevas e da Luz — a passagem do tempo serve como uma prova de evolução. Vamos sempre do atraso para o progresso.

Nesse quadro, tempos que não passam seriam épocas não resolvidas. Como portas abertas, eles deixam que passado se misture com presente, e ambos detenham a esperança de um futuro. Como dizia Thomas Mann, “onde não há transitoriedade — princípio e fim, nascimento e morte, não há tempo.” Mas como fechar ou acabar um ano, se o tempo é como a água de um imenso mar, o qual nos é dado a conhecer por um instante? Nele navegamos e nele sucumbimos. Dividi-lo, diz Mann, é arbitrário. É como tentar fatiar água, como temos feito com as leis nesse Brasil de 2016.

Sem diques, viramos náufragos do nosso legalismo, do nosso formalismo e do nosso cuidado em não fechar etapas. Aos fechamentos, preferimos os acordos e harmonizações, cujo centro são cargos apossados por pessoas, e não pessoas a serviço dos cargos, honrando-os e não se utilizando deles para projetos particulares, ou ideológicos. Sem um mínimo de sincronia entre pessoas e cargos, não há como estancar poderes e fechar temporalidades. Pois se as leis têm dia e ano, as amizades e as considerações são variáveis, flexíveis e perpétuas.

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Numa antiga Harvard, Richard Moneygrand fazia uma palestra sobre os valores políticos brasileiros. Em vez de citar os usuais suspeitos — Maquiavel, Marx, Hobbes, Locke, Habermas... —, falou na teoria da oferenda e da reciprocidade de Marcel Mauss. Abriu espaço para discorrer sobre uma história social que lhe parecia singular porque nela havia um conflito reprimido entre “laços de lealdade devido a pessoas”, os famosos “elos de favor, contrafavor e amizade” e leis universais impessoais juridicamente válidas para todos. O Brasil, dizia o conferencista, constituía um caso no qual a nação (ou o país) era administrado por meio de regras de caráter universal, mas a sociedade continuava a ser motivada por simpatias particularistas. O problema era que poucos viam o poder das normas sociais. Disso resultava uma instabilidade permanente, como, de resto, ocorria no mundo latino.

Essa palestra inspirou “Carnavais, malandros e heróis”, dando-me a motivação para sugerir que o “Você sabe com quem está falando?” era uma reivindicação (ou uma eclosão) particularista de cunho aristocrático em situações de igualdade. Eis um evento saudoso da estrutura que o modelava. Nele, o cidadão sujeito da lei geral aparecia subitamente como alguém muito bem relacionado e, assim, livre para descumpri-la. As leis se aplicam a todos, mas dependem de quem se está falando...

O delito importa, mas ele está amarrado a que quem o comete. Todo particularismo reage ou se acultura diante do universalismo em todo lugar. Daí os dilemas do liberalismo que, a todo momento, são forçados a ajustar leis impessoais a novos momentos históricos, algo que temos sido incapazes de realizar. No Brasil, inventamos o jeitinho (estudado por Livia Barbosa num livro clássico) e o “Sabe com quem está falando?”. Ambos reativam particularismos num mundo legalmente construído por individuos-cidadãos sem idade, sexo, cor ou família.

Nessa mesma ocasião, cunhei a expressão “sociedade relacional” para definir sistemas nos quais havia uma incerteza básica entre julgar individualmente ou fazê-lo levando em conta seus cargos e relações.

Aí estava o centro, o ponto de fuga de quem virava “figura” numa sociedade marcada pela subordinação. Hoje, graças à Lava-Jato, sabemos que o capital político relacional transformou-se também num rico empreendimento financeiro. Dizem que é o capital que tudo controla mas, na verdade, são esses elos hierárquicos que têm domesticado e englobado o capitalismo, dando-lhe uma feição compradesca e populista.

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Ao fim dessa palestra, Moneygrand disse algo que jamais esqueci: “Se você quiser comprender o poder no Brasil, não estude partidos, estude pessoas!

Roberto DaMatta
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Caça-votos

Quando o voto deixou de ser obrigatório, em 2033, os partidos passaram a procurar e recrutar novos filiados, não só para garantir um eleitorado cativo, mas também para ter com quem ocupar tantos cargos de confiança no Estado, então já maior que o resto da sociedade.

Aí você está tomando uma cerva, chega o carinha com bom-dia e sorriso treinado, posso perguntar uma coisa ao senhor? É filiado a algum partido?

— Não ia perguntar uma coisa? Política virou coisa?

— Coisa pública, senhor – ele fala sério – República vem do Latim “res publica”, coisa pública.

Você engole a cerveja e a vontade de mandar o sujeito lá pra onde Judas vendeu as moedas, e ele:

— Parabéns se o senhor já tem partido. O Brasil só vai melhorar mesmo quando o povo participar!

— Mas ainda existe povo?

Cada vez menos, ele murmura baixando os olhos, mas logo levanta um olhar confiante:

— Com mais gente decente nos partidos, mais poderemos influir nas mudanças.

Você diz que desde criança ouve falar em reformas e mudanças, mas na prática a coisa anda a tranco quando anda, o Estado virou imenso monstro engraxado pela lentidão da Justiça e sustentado pela minoria que ainda trabalha fora do Estado.

Ele fica te olhando nos olhos, pisca, lágrimas escorrem pelas faces como no cinema, o salvador do mundo levou um choque de realidade e te olha ferido mas perdoante. Você se condói, pergunta por perguntar:

— Bem, e qual partido é o seu?

Ele enxuga as lágrimas nos dedos, sorri de novo com olhos de mel.

— O senhor pode escolher. Vários partidos formam a Frente Nova República, e é só botar o dedo aqui na bio-inscrição e já entra no nosso sistema.

— E custa... quanto?

Ele pisca mal acreditando, escandalizado:

— Di-nhei-ro?! Meu senhor, eu sou da Nova República!!!

Arrependido você passa o dedo na maquininha, ele levanta para te apertar a mão já se despedindo:

— O senhor receberá em casa carteirinha, cartão, impressos, senha para acesso ao portal partidário e ficha cívico-funcional se quiser exercer função administrativa nos serviços públicos.

E sussurra confidente:

— Pode até ser candidato a cargo público...

Você pensa em dizer que a Constituição já garante isso, mas oferece cerveja, ele recusa, precisa continuar seu turno, vai abordar outra mesa, você fica a falar com o copo e a ouvir a garrafa.

Quando vai ao sanitário, num dos boxes com porta fechada ouve ele falar com outro:

— Já peguei dois até agora, você três, né?

— Mas tem pouco povo pra vasculhar, a maioria já trabalha pra governo!

— É, nossa comissão tem de aumentar.

E no dia seguinte você começa a receber e-mails e impressos do seu partido da Nova República, e até a visita de uma treinadora eleitoral:

— À sua disposição se quiser ser candidato a vereador em 2034!

Paisagem brasileira

 Manhã na serra, Mauro Ferreira

A Itália após a Operação Mãos Limpas

Será que todos os que, alegremente, se inspiram no script que levou ao fracasso a Operação Mani Pulite têm consciência do que aconteceu na Itália desde então? Como é sabido, a exemplo do que ocorre hoje no Brasil, a Mani Pulite desvendou, no início dos anos 1990, a existência de corrupção sistêmica na Itália. E assim como as tentativas em curso aqui, as investigações lá foram abortadas pela reação dos políticos denunciados, por meio de uma verdadeira legalização da prática da corrupção no país, com mudanças nas leis que perduram até hoje. Não por acaso, dentre os países desenvolvidos a Itália exibe hoje o maior índice de corrupção e o pior desempenho econômico, com o PIB estagnado no nível do ano 2000.

Na avaliação de Nadia Fiorino e Emma Galli, no livro La Corruzione in Italia: Un’analise econômica, de 2013, “(o fenômeno da corrupção) mostra uma tendência decrescente na sequência da operação Mani Pulite em 1993-1994, para reaparecer sob forma ainda mais agressiva, acompanhada de uma espécie de mutação ‘antropológica’ da sociedade na qual o cidadão dá mostras de haver se habituado com a relação de insana cumplicidade que frequentemente se instaura entre a política, a administração pública e as empresas”. Como diz Piercamillo Davigo, a espécie predada (os corruptos) se fortaleceu. Neste artigo trato de dois aspectos importantes e inter-relacionados decorrentes, em grande parte, da decisão de conviver com a corrupção: a ineficácia do sistema judiciário e os impactos da corrupção sobre a economia italiana.

Desde a contribuição de Gary Becker, em 1968, sabe-se que a corrupção é um crime racional, do início ao fim. No início a racionalidade determina a escolha do alvo e dos meios para obter as vantagens e no final manifesta-se nas providências para escolher as melhores formas de esconder os recursos, que podem chegar até a sofisticadas técnicas de lavagem e ocultação de dinheiro em paraísos fiscais. Logo, as penas para os crimes de corrupção devem ser vistas não como se fossem fruto de vendetas pessoais ou de uma sanha moralista de magistrados, como querem alguns, mas simplesmente como a maneira apropriada de dar o incentivo correto, elevando o custo da prática da corrupção. Pressupõe-se, portanto, que as leis sejam adequadas e a Justiça, eficaz.

Atuando na direção oposta, a reação do sistema político à Mani Pulite ampliou a probabilidade de prescrições e retirou penas por crimes de corrupção, provocando o aumento da impunidade e a falta de confiança na Justiça, como mostra pesquisa da Eurobarometer, de 2016. A percepção de independência das Cortes e dos juízes é hoje muito ruim para 25% da população na Itália, ante 10% na França e 4% na Alemanha. No extremo oposto, essa independência é considerada boa ou muito boa por 25% da população na Itália, ante 54% na França e 69% na Alemanha. Dentre os motivos para a falta de independência, em respostas não excludentes, encontra-se a interferência ou pressão do governo e de políticos, para 42% dos italianos (29% dos franceses e 14% dos alemães). Ainda, segundo o EU Justice Scoreboard de 2016, entre 2012 e 2014 o tempo médio necessário para resolver casos litigiosos civis e comerciais em primeira instância era de 577 dias na Itália (melhor, apenas, do que em Malta e Chipre), ante 322 dias na França e 189 dias na Alemanha. Esses números atestam a baixa credibilidade e efetividade do sistema judiciário italiano.

O abrandamento das leis contra a corrupção foi vendido à população como a maneira eficaz de promover o crescimento econômico. Afinal, diziam, a corrupção faz a economia funcionar. Mas ninguém avisou que faz funcionar muito mal. A taxa de juros havia desabado com a entrada do país na zona do euro e investir parecia a melhor escolha. Berlusconi lançou um ambicioso plano de investimentos em infraestrutura a partir de 2001, prevendo a construção de 120 grandes obras, que resultou num verdadeiro “manual de más condutas” e de desperdício de recursos públicos. Colocou no novo superministério da Infraestrutura um empresário do setor de projetos de obras de engenharia, para quem “era preciso conviver com a Máfia e com a Camorra”. O Senado aprovou uma lei (Legge Obiettivo) para grandes obras de interesse nacional, permitindo ignorar leis ordinárias, isentar de concorrência e de avaliação de impacto ambiental as grandes obras públicas, ampliando as chances de ocorrência de corrupção.

Dinheiro público foi gasto no pagamento de projetos de obras que nunca saíram do papel. Dentre as realizadas, várias foram superdimensionadas, como trechos de trens de alta velocidade que precisariam ter o triplo de usuários para serem rentáveis, considerando que seu custo é três vezes maior que na Espanha e na França. Mario Draghi, ainda ministro das Finanças, apontava que, embora os gastos públicos na Itália fossem superiores aos da França, da Alemanha e do Reino Unido nas três últimas décadas, a ausência de avaliação de custos e benefícios não garantia que os projetos atendessem às necessidades do país. Falhas na seleção de obras e de seus executores aumentavam os riscos de corrupção e conluio, levando a renegociações frequentes e ineficientes de contratos. Com isso, entre 1990 e 2009, de todos os projetos de Parcerias Público-Privadas registrados na Europa, apenas 2% foram na Itália. Apesar do claro diagnóstico feito pelo atual presidente do Banco Central Europeu, a Itália continua a aceitar que a corrupção contamine todas as suas decisões econômicas, favorecendo interesses privados em detrimento do bem-estar comum, reduzindo a produtividade e o crescimento econômico.

Espero que o Brasil não repita esse erro e persista na tarefa, ainda que árdua, de reduzir a corrupção. Instituições sólidas e uma estrutura adequada de incentivos são o único caminho conhecido para alcançar o desenvolvimento econômico e social.

Supremo jeitinho

‘Quando a política penetra no recinto dos tribunais, a Justiça se retira por alguma porta.’ A citação do estadista francês François Pierre Guizot (1787-1874) circulou com intensidade nas redes sociais na semana em que nosso STF fez uma heterodoxa interpretação da lei que veda um réu estar na linha sucessão da Presidência, separando a pessoa do cargo. Quando o que pugnava o MPF era exatamente o contrário, uma vez que deve ser considerada a ficha (limpa, há de se supor) da pessoa para o preenchimento de um cargo na República. E fica a dúvida expressa de nossa insegurança jurídica: a suspeição da pessoa não atinge o cargo que ocupa?

Sem falar nos dois pesos, duas medidas do julgamento anterior de impedimento do cargo e do mandato do presidente da Câmara. Se faz parte da atribuição da presidência do Senado a prerrogativa de substituir o presidente da República, não pode estar no cargo quem não tenha esta possibilidade. Simples assim.
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O resto é jeitinho, torção e distorção da letra da lei. A curva de Moebius de nosso DNA cultural que nos faz tomar o verso pelo reverso, o real pela ficção, a paródia pela pastiche. A única forma de sairmos desta miséria política seria refundar a República ou restaurar o parlamentarismo monárquico, como já defendem líderes de alguns movimentos contra a corrupção. Pois, desde instaurada, a República prometeu uma Federação que nunca entregou aos cidadãos, revelando-se um mero golpe contra a monarquia constitucional que desfrutamos por mais de meio século com estabilidade política, crescimento econômico e desenvolvimento social.

Afinal, quem não sabe que no Império o Brasil era mais rico que os Estados Unidos. Quando fazendeiros da nobreza rural escravagista, descontentes com a sonegada indenização pela Abolição da Escravatura, juntaram-se com militares revoltados do Exército, vindos da Guerra do Paraguai, pelo maior prestígio da Armada, e positivistas fraudadores da Física Social de Auguste Comte derrubaram a monarquia constitucional parlamentarista para implantar uma República tupiniquim.

Aliás, seu lema trazia a Ordem como base, o Progresso como fim, mas suprimiu deliberadamente o princípio do Amor (no sentido do ágape = justiça) do tríptico original do pensador francês. Era o fim da oportunidade histórica de correção de nosso atraso colonial com que nos legaram o destino de tropicália, onde abaixo da linha do Equador não havia pecado e a moral saía de férias, segundo o vaticínio de Gaspar Barléu. Se nosso inaugural batismo de cultura do jeitinho, de relativismo moral dominante e descompromisso atávico com a lei foi a longeva “justificação” da escravatura, desde o Brasil Colônia, a queda do Império que a aboliu foi o segundo momento, o crisma, por assim dizer, de nosso contrato social pela impunidade e frouxidão moral. Pois os valores morais legados pelos portugueses foram tão corrompidos com a selvageria da colonização quanto os valores morais da República destituída de justiça como seu princípio dignificante. Vide o seriado “The Crown”, ora em exibição pelo canal Netflix.

Um dos momentos dignos de nota para a situação de miséria de nossa cultura política é quando a rainha se recorda das lições sobre a Constituição britânica e as normas de relacionamento da Coroa com o Parlamento, da chefia de Estado, símbolo da nação inglesa, com a chefia de governo, função do então poderoso Winston Churchill como primeiro-ministro. A primeira como função dignificante da Coroa para a perpetuação da civilização inglesa e a segunda como função eficiente do Parlamento para dar o melhor destino ao Orçamento público formado pelos impostos arrecadados do povo.

Pois não sairemos desta crise política, econômica e social sem superar este estágio primário de barbárie pela descrença na Justiça, sem enfrentarmos uma revolução moral que se exige sobretudo de nossas ditas elites sociais. Estas que chamo de agentes de cidadania e que não conseguem convergir para uma agenda estratégica para o país como a reforma política e das instituições, razão e gargalo maior de nossa miséria civilizatória.

Jorge Maranhão

Ah, se tivessem vergonha!

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Se tivessem vergonha e arrependimento, corruptos e corruptores já teriam cometido o suicídio. E até agora ninguém se matou. Suicídio não é desonra. Suicídio é ato de coragem
Jorge Béja

O Supremo Tribunal Federal de joelhos

Consultando o site do próprio STF, no link “Julgamentos históricos”, encontro decisões memoráveis, como a do habeas corpus concedido a Miguel Arraes, afrontando as prisões arbitrárias da ditadura civil-militar de 1964 (HC 42108, relatoria do ministro Evandro Lins e Silva e advogados Sobral Pinto e Brito Alves). Os militares, neste e em outros casos, como o do ex-governador Mauro Borges, de Goiás, se sentiram desobedecidos em seus desejos, como todo-poderosos da época. Para enfrentar o problema, Luís Viana Filho, chefe da Casa Civil de Castelo Branco, aconselhou-o a adotar o expediente do “packing the Court”, primeiramente tentado por Roosevelt nos Estados Unidos durante a crise dos anos 1929 e 1930. Essa medida consistia em aumentar o número de magistrados na Suprema Corte, de modo a lograr obter maioria nos julgamentos.

Castelo Branco aprendeu a lição e, por meio do AI-2, aumentou o número de ministros para 16 e, depois, reduziu novamente para 11, na Constituição Federal de 1967. Finalmente, a desfiguração do STF foi completada com o AI-5, aposentando compulsoriamente os mais rebeldes dentre eles. E a paz de cemitérios voltou a reinar no Brasil. Todo mundo amordaçado.

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Dia 7 de dezembro último, a Suprema Corte escreveu uma das piores, se não a pior página de sua história: o “conchavão”, patrocinado pelo governo Temer, contou, aliás, outra vez, com um Viana. Agora Jorge Viana, primeiro vice-presidente do Senado. Juntaram-se, na véspera, a ministra Cármen Lúcia, meia dúzia de outros ministros, como Dias Toffoli, e o referido Viana. O arremedo de solução conspurcou o Supremo, que deveria se sentir aviltado pelo descumprimento de uma ordem judicial. É que o presidente do Senado, Renan Calheiros, e toda a Mesa da Casa insurgiram-se contra a liminar concedida pelo ministro Marco Aurélio Mello, em ação de descumprimento de preceito constitucional, ao entender que réu não pode presidir um dos Três Poderes por estar na ordem sucessória do presidente da República.

E nem me venham dizer que era uma decisão monocrática. No Estado de direito, monocráticas ou não, todas as decisões emanadas do Judiciário têm de ser imediatamente cumpridas. Para isso haveria o remédio de recurso ao pleno do próprio Supremo. Em lugar de resolver, o “arreglo” fez o caldo entornar, envolvendo também o STF. Como, ao fim e ao cabo, deixou a entender o decano ministro Celso de Mello, a confusão toda destinava-se a proteger a PEC dos Gastos, ou seja, o sistema financeiro.

Voltemos a esta velha senhora, a história: em 1745, o rei Frederico II da Prússia implicou com um moinho velho, que atrapalhava sua visão a partir do novo palácio de verão (Sans Souci). Mandou destruir o moinho. O simples moleiro, dono do moinho, não aceitou a ordem do soberano. Este fez-lhe a velha pergunta: “Você sabe quem eu sou? Eu sou o rei e ordenei a destruição do moinho!” Com muita tranquilidade, o moleiro respondeu: “Vossa Alteza é que não entendeu: ainda há juízes em Berlim!!!”

Entrou na Justiça e ganhou.

Preciso escrever algo mais?!

MPB de gala

  "Luiza", de Tom Jobim com a Orquestra de Sofia (Bulgária), 
em festival de  2012

Selecionar os melhores em cada setor

Irritou-se Michel Temer com a divulgação de parte das delações premiadas do ex-diretor da Odebrecht, Claudio Melo Filho, no fim de semana que passou. Por isso, escreveu segunda-feira ao Procurador Geral da República recomendando celeridade na apuração das acusações, para não prejudicar a votação das medidas econômicas a cargo do Congresso. O presidente precisou voltar atrás, alertado para o fato de que as delações seguem em segredo de Justiça até que o Supremo Tribunal Federal se pronuncie sobre elas.

Mesmo assim, a indagação continua, porque alguém escorregou para a imprensa o vazamento das delações. O governo imagina má-fé na divulgação, já que atingiu especialmente ministros e ex-ministros do PMDB. Mas não perde por esperar.


Seria bom Temer tomar um calmante, porque novos vazamentos virão, especialmente quando conhecidas as listas dos donos da empreiteira, pai e filho, envolvendo muito mais gente. Não haverá partido que escape, adiantando muito pouco o palácio do Planalto divulgação de supostas colaborações premiadas”. O que importa não é saber se a divulgação foi ilegítima, mas se as acusações são verdadeiras.

Parece que sim, na maior parte dos casos. Em Brasília e fora de Brasília cresce a impressão de que depois de o Supremo Tribunal Federal iniciar o julgamento de corruptos beneficiados com foro especial, ou de o juiz Sérgio Moro começar a julgar outros importantes cidadãos comuns, não haverá como o presidente evitar profunda reforma do ministério. Os “amigos” privilegiados ou não, devem começar a tratar de seu futuro. A oportunidade para Temer será promover ampla mudança, mandando passear políticos e convocando luminares. Depois de aprovadas as medidas econômicas será hora de selecionar os melhores em cada setor.

A República dos pangarés

A “delação do fim do mundo”, de 77 executivos da Odebrecht, da qual foram divulgadas três propostas no fim de semana, não mudou apenas o xadrez da política nacional, como era de esperar. Ao relatarem pedidos de propina feitos pelos chefes do governo federal e do Congresso e dirigentes de 11 partidos, os funcionários Cláudio Melo Filho, Paulo Cesena e Leandro Azevedo ofereceram de lambujem informações como a autoria de 14 leis, entre elas a da leniência, da qual a autora viria a ser beneficiária. Na prática, a República não tem sido governada nos últimos 13 anos, 11 meses e 12 dias por Lula, Dilma e Temer, mas, sim, pelo cartel de empreiteiros acusados na Lava Jato. Desde o notório Marcelo Odebrecht até os ocultos Sérgio Andrade e César Mata Pires, donos da Andrade Gutierrez e da OAS, entre alguns poucos outros.

A informação acima só será entendida em sua inteireza pelo leitor destas linhas se ele perceber que a consequência desse tsunami institucional implica as evidências de que o feroz debate ideológico entre coxinhas e mortadelas, a aparente luta dos partidos pelo poder e as intrigas palacianas não têm sentido. As três primeiras propostas de leniência da empresa e de delação premiada dos dirigentes da maior empreiteira do Brasil, entre eles seu dono, Emílio, e seu herdeiro, Marcelo, evidenciam que as caríssimas campanhas eleitorais, nas quais esgrimem os mais bem pagos publicitários do País, não passam de exercícios de ficção de gosto suspeito. Assim como os debates de policiais, advogados, juízes e promotores em torno das leis que imperam em nossa democracia não passam de torneios retóricos.

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Nesta República de faz de conta, patrões são os pagadores de propinas, remuneração parcial dos mandatários a serviço deles, resultante das sobras do superfaturamento generalizado que levou a maior estatal brasileira à beira da insolvência e a Nação, à matroca. Desse golpe oculto resultam as empresas quebradas, os 12 milhões de desempregados e a miséria das contas públicas.

O povão, espoliado, recorre ao que tem à mão: as pesquisas de opinião pública. Com sua pré-racionalidade emergente, a população revela aos pesquisadores dos institutos seu desencanto com os gestores de ocasião, que fingem que administram a fétida massa falida. Domingo, o Datafolha revelou que a popularidade do chefe do Executivo, alcunhado de MT pelo “Departamento de Operações Estruturadas” da Odebrecht, caiu de 14% em julho para 10% cinco meses depois. Assim, ele empatou tecnicamente com os 9% da titular de sua chapa vencedora na eleição de 2014, constatados às vésperas do afastamento dela, em maio. E 17 pontos porcentuais medem o desencanto com Temer: de 34% para 51%.

Esta é a crônica do desabamento anunciado: em sete meses de desgoverno, o ex-vice de Dilma nunca foi mais do que o ex-vice de Dilma. Falsamente acusado de ter usurpado o trono da madama, ele assume a ilegitimidade como um ônus. Negou-se a relatar em pormenores as culpas da antecessora nas crises moral, econômica e política sem precedentes. E perdeu a chance de conquistar o cidadão para a dura batalha da ascensão do fundo do poço de pré-sal que atingimos. Antes da divulgação das narrativas do trio de pré-delatores da Odebrecht, poder-se-ia (usando uma mesóclise, do seu gosto) imaginar que ele pretende com isso deixar no ar a hipótese de que nada tinha que ver com aquele legado maldito.

Mas diante das revelações de que os corruptores ocuparam, na prática, o poder, deixando para os corruptos o papel de encenadores da farsa de luta democrática para que, enfim, todos se dessem bem, já é possível concluir que, dessa forma, ele se poupou a si e aos seus. Pois, afinal, os íntimos dele e ele próprio participavam ativamente do escambo. A ponto de o atual líder de seu governo no Congresso, Romero Jucá, vulgo Caju, ser promovido a “resolvedor-geral”.

Meteu-se, pois, num embaraço de que só sairá se obtiver o beneplácito total de quem, na cúpula do Poder Judiciário, acreditar em que mais vale uma “governabilidade” à mão do que uma Constituição em voo. A lei garante ao presidente um passado que não o condena, se não delinquir durante o mandato presidencial. As 44 citações de suas iniciais na eventual delação divulgada dizem respeito a suspeitas que não o incriminarão. Resta saber quanto resistirá seu prestígio em agonia. A ponto de ceder a chiliques da patota de Rogério Rosso, eminência parda desta República de pangarés.

Cabe ao Ministério Público Federal ou ao relator da Lava Jato no Supremo Tribunal Federal ou conceder-lhe a indulgência plena de suspender, no primeiro caso, ou não homologar a delação, no segundo, mantendo no tambor a bala de prata pronta para ser disparada no coração combalido de seu curto mandato. Seria um escárnio (no dizer da presidente Cármen Lúcia) usar de novo algum delito menor para poupar de pena maior (no caso, capital) o maganão a ser apenado. Cujo malfeito (em seu linguajar imitado da tatibitate madama Rousseff) já é de conhecimento de todos, inclusive dos gatos-pingados que acreditam em seus dons de milagreiro.

Restar-lhe-á também a “escolha de Sofia”, da protagonista de William Styron, a de qual dos dois filhos salvar da morte. Para manter o fiapo de República, que lhe cabe conduzir ao cadafalso das incertezas ou ao malogro manifesto dos vizinhos Argentina e Venezuela, poderá jogar sua bagagem favorita ao mar (os valiosos baús Angorá, Primo, Kafta e Justiça). Será doloroso, mas um já foi: Babel não afundou?

Seu jato, em plena pane seca, poderá até planar e pousar, desde que lidere um projeto de pôr fim a todas as injustiças: das prerrogativas de foro e aposentadorias de políticos, militares, bombeiros e marajás até os benefícios fiscais que ainda forram as burras dos patrões da empreita e do mercado. Caso contrário, nosso avião se chocará com a montanha.

José Nêumanne

De engenheiro a pedreiro: venezuelanos qualificados vivem de bicos no Brasil

Cada curso, título e experiência de trabalho que a venezuelana Carol Formaniak, de 40 anos, deletava do seu currículo, era como se apagasse um pedaço da sua própria história. As quatro páginas retiradas, até que o documento minguasse para uma folha, abalaram a identidade da advogada. "Sentia que tinham arrancado algo de mim, cada meta alcançada, os sacrifícios que eu fiz", conta.

Para Carol, esconder as suas qualificações foi a única forma de encontrar um emprego no Brasil. Especializada em direitos humanos, hoje a advogada trabalha como caixa de supermercado e ganha um salário mínimo em Boa Vista, Roraima.

Junto com ela, milhares de venezuelanos, muitos altamente qualificados, migraram para o Brasil fugindo da fome e da crise política e econômica em seu país. O governo de Roraima estima que 30 mil vivam atualmente no estado.

Brasilien 'Especial Venezuela – special report' (DW/K. Andrade)
Carol Formaniak e Cairlins Morales deixaram qualificações
de fora do currículo para conseguir emprego
Uma semana depois de chegar a Boa Vista, há um ano, Carol já tinha carteira de trabalho. A advogada tem dupla nacionalidade, porque seu pai era brasileiro e emigrou para a Venezuela, onde ela nasceu. Carol veio para o Brasil com o filho, de 13 anos, e o esposo, formado em administração, que trabalha como assistente em uma fábrica.

O primeiro entrave para Carol foi o diploma: a burocracia para a revalidação é enorme, o que afeta muitos imigrantes no Brasil. Com isso, ficou difícil encontrar um emprego na sua área. Depois veio a surpresa: mesmo para vagas que não pediam muita experiência, ela era recusada.

Em um escritório de advocacia que anunciava uma posição de secretária, ouviu que "era qualificada demais para a vaga". Na Venezuela, em Ciudad Bolívar, Carol trabalhou anos no Conselho Tutelar e atuou como assessora da primeira-dama do estado em violência de gênero.

"O chefe do escritório disse: 'você tem um excelente currículo e eu preciso de uma simples secretária'. Eu expliquei que precisava pagar as contas e que, para mim, o trabalho era ótimo. Ele não quis me contratar", conta.

Assim, Carol reduziu seu currículo e, dois meses depois, virou caixa de supermercado. Continuou buscando outras oportunidades, mas os empregadores sempre queriam pagar menos do que o salário mínimo ou se recusavam a assinar a sua carteira.

Carol avalia que a maior dificuldade é o preconceito com os imigrantes em Roraima. "Os brasileiros acham que viemos para roubar os seus empregos. É uma questão de mentalidade das pessoas aqui".

Sua amiga engenheira venezuelana Cairlins Morales, de 35 anos, concorda. Em Boa Vista há um ano e três meses, ela também reduziu seu currículo de cinco para uma folha. Hoje trabalha sem carteira assinada, dando aulas de reforço escolar para crianças. Ganha entre 600 e 1.500 reais por mês, dependendo do número de estudantes.

"Aqui não me tratam como profissional. Estou grávida do meu segundo filho e nem me dá vontade de ter o bebê aqui, de tão decepcionada que estou. Só não volto para a Venezuela porque tenho medo que estoure uma guerra civil", conta ela em um ritmo acelerado, com as bochechas vermelhas e as lágrimas nos cantos dos olhos. "Queria muito voltar, lá as pessoas não me olham como aqui", lamenta.

Carol e Cairlins saíram da Venezuela antes da crise de desabastecimento se agravar. A advogada conta que estava cansada de não poder decidir questões simples do cotidiano, como o que ia comer. Ela cita também o aumento da criminalidade e o colapso da saúde pública. "Cada vez que o meu filho ameaçava uma gripe, eu ficava assustada, porque não há médicos ou remédios nas farmácias", diz.

Cairlins largou o emprego de professora na universidade pública e saiu da Venezuela pela "asfixia política". "Se eu não participasse de um protesto, recebia um memorando. Se eu não votasse no governo, perdia o meu emprego. Eles sabem quem vota e quem não vota, e te mandam mensagem por celular cobrando, no dia das eleições. É uma ditadura disfarçada".

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 Mirco Gugg 

Golpe do vazamento das delações é manobra desesperada contra a Lava Jato

A bancada da corrupção jamais desiste de tocar adiante a chamada Operação Abafa e esvaziar a Lava Jato, seguindo a mesma estratégia usada na década de 90 na Itália para inviabilizar a Operação Mãos Limpas, através da aprovação de leis manipuladas e da utilização de manobras judiciais ilegítimas, as chamadas “chicanas”. Aqui no Brasil, a mais nova manobra contra a Lava Jato já está em curso, através da articulação que visa a anular as delações premiadas, por causa dos vazamentos que ninguém sabe quem realiza.

Como se vê, as iniciativas escusas da bancada da corrupção vão se multiplicando, como apoio entusiástico do Planalto e de praticamente todos os partidos políticos, e não adianta citar exceções, porque apenas confirmam a regra geral que está à vista de todos.
Os articuladores pensaram que seria fácil e aplicaram inicialmente o golpe do projeto sem autoria, uma desfaçatez jamais vista na história republicana. Na Câmara, o presidente Rodrigo Maia (DEM-RJ) se encarregou de criar a anistia ao caixa 2 e a outros crimes eleitorais. Em seguida, convocou a votação para a calada da noite, numa segunda-feira. Mas os deputados Miro Teixeira (Rede-RJ e Ivan Valente (PSOL-SP) perceberam a armação e a denunciaram no plenário, causando um constrangimento enorme, o golpe foi abortado.


No Senado, o presidente Renan Calheiros fazia o mesmo, ressuscitando um projeto sem autoria para punir abusos de autoridades. Houve uma reação fulminante por parte do Ministério Público e das associações de magistrados, o segundo golpe também foi evitado e levou de roldão a inacreditável reforma da Lei da Leniência, que anistiria empresários, empresas e corruptos envolvidos, vejam até onde vai a criatividade dessa gente.

A repercussão dessas manobras foi tão negativa que o próprio presidente Michel Temer se encarregou de reunir Renan e Maia numa inusitada entrevista coletiva, em pleno domingo, para anunciar que não haveria anistia ao caixa 2. Foi uma cena patética. Os três se exibiram arrebentados, pareciam estar participando de um velório ao vivo e a cores.

Apesar desse aparente recuo, as iniciativas contra a Lava Jato estava apenas entorpecidas e logo voltariam com força total, através do substituto do senador Roberto Requião ao projeto sobre abuso de autoridade, cujo autor até hoje é desconhecido. Conforme já mostramos aqui na Tribuna da Internet, a proposta de Requião é de um primarismo surpreendente, custa a crer que um parlamentar experiente como ele aceite um papel desse nível de infantilidade.
O fato concreto é que a bancada da corrupção é incansável e atua em várias frentes, com apoio total do Planalto. E agora surge o golpe do vazamento, com a grife do próprio presidente Temer, em parceria com a ministra Grace Mendonça, conhecida como “a esquecidinha da AGU”, porque estava precisando de um HD externo para copiar arquivos dos inquéritos sobre parlamentares corruptos (entre eles, Renan Calheiros) e esqueceu de usar um simples pendrive, assim como depois esqueceu que há 19 anos é filiada ao PSDB e disse aos jornalistas que não se lembrava.

O Planalto, os partidos políticos, governadores, prefeitos e parlamentares da ativa ou já aposentados (não vale citar exceções) apoiam ardentemente essa armação, que visa a anular as delações premiadas, deixar empresários e executivos mofando na cadeia e inocentar todos os políticos, de uma tacada só, como se fosse possível dar certo um plano maluco desse tipo. Comprova-se, assim, que sonhar ainda não é proibido.

A São Silvestre de Temer

O presidente Michel Temer passa sebo nas canelas para correr sua meia maratona antes mesmo de os fundistas darem a largada na corrida mais tradicional do Brasil. O presidente reza para São Silvestre lhe dar fôlego para ultrapassar a barreira de chegada de uma prova muito mais de fundo: levar a transição em bons termos até 2018.

Temer corre contra o tempo em busca do capital estiolado tão rapidamente.

Quando assumiu o mandato, pintava ser o fator de estabilidade do país, contava com a torcida da multidão que vestiu o verde-amarelo e com a simpatia do mundo empresarial. Inegavelmente, sua equipe econômica transmitiu confiança e credibilidade ao mercado e aos investidores.

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Hoje o governo já respira por meio de aparelhos e procura operar em duas frentes. De um lado, toma medidas no campo político para dar mais densidade ao seu time, com a atração do PSDB para o núcleo duro do Palácio do Planalto e, de outro, articula um minipacote de bondades econômicas.

A questão é saber o quanto essas duas medidas serão capazes de reverter expectativas negativas de um quadro onde a crise política afeta a economia e a recessão econômica gera desconfianças, incide sobre o humor da sociedade e agrava, portanto, a crise política. Eis aí o nó górdio de Temer.

A micropolítica, embora necessária, é insuficiente para debelar a crise. Medidas pontuais, como entregar uma Secretaria de Governo turbinada ao PSDB podem ajudar a arejar o ambiente. Mas também pode turvá-lo. A dúvida hamletiana, se nomeia um tucano agora ou se deixa para quando o carnaval chegar, é mais lenha na fogueira da instabilidade.

A dificuldade é que o presidente e seus assessores são craques no jogo jogado no Congresso, mas são principiantes quando se trata de entender que a velha ordem está em estado terminal e em choque com o Estado moderno em construção ou com o novíssimo “partido das ruas e das redes sociais”.

Não basta apenas ter quem faça a interlocução com o Congresso. É preciso ter também quem faça a interlocução com as ruas.

Na lógica do jogo menor, a nomeação do deputado Antônio Imbassahy pode adicionar contratempos, como acirrar o cabo-de-guerra da disputa da presidência da Câmara. Ou ser entendida por segmentos do PSDB, como uma opção preferencial de Michel Temer por Aécio Neves.

Na economia, para sair das cordas e reconstruir um ambiente favorável aos investimentos, o governo lançará um pacote microeconômico. Tudo bem, se não houver contraposição entre o micro e o macro, ou se não se abandonar o objetivo estratégico em nome de movimentos táticos. Se bem administradas, medidas de curto prazo podem contribuir para a superação do sufoco vivido pelos brasileiros. Se mal administradas, podem não surtir efeito e agravar o estado do paciente.

A mudança de ambiente virá mesmo se for obtido êxito nos fundamentos macroeconômicos. E esses começam a apontar para um cenário melhor. A excelente safra agrícola prevista para 2017 - algo em torno de R$ 194 bilhões a ser injetado na economia, um salto de 36 bilhões na comparação com 2016 – diminui a pressão inflacionária, o que é essencial para uma queda consistente da taxa Selic.

Os juros devem cair não por pressão política, mas porque foram criadas as condições para tal. A mudança significativa de ares virá com a PEC do Teto, finalmente aprovada nesta terça-feira, com a tramitação rápida da reforma previdenciária e com o encaminhamento da reforma trabalhista.

Se a classe política quiser sobreviver ao terremoto, as negociações deveriam se dar à base dessa agenda.

O perigo é Temer adotar uma estratégia de corrida padrão Dilma. No desespero, a ex soberana a toda hora apelava para medidas microeconômicas desconexas e acreditava que arrodearia o toco da crise com a simples troca de ministros.

Como na epístola de Michel Temer para o Procurador Geral da República, a presidente acusava os “vazamentos seletivos de supostas delações premiadas” de prejudicarem a retomada do crescimento econômico, numa clara transferência de responsabilidades

O presidente não é, claro, nenhum Kibii Tergat para ganhar a São Silvestre cinco vezes. Mas pode concluir a sua meia maratona com gás suficiente para chegar a 2018. Conseguirá, porém, contornar o obstáculo Odebrecht?

Facebookracia

É isso mesmo que você leu: “Facebookracia”. Assim como democracia quer dizer “poder do povo” e plutocracia quer dizer “poder dos ricos”, a palavra Facebookracia é o poder controlado pelo Facebook. Não é bem um regime ou um sistema político, não é uma forma de governo estabelecida numa Constituição, como acontece com o parlamentarismo ou o presidencialismo. A Facebookracia vai se instalando aos poucos, de maneira mais ou menos informal, até que, quando a gente olha, já tomou conta dos processos pelos quais os eleitores tomam decisões. A Facebookracia é a democracia entregue à lógica das redes sociais. Em sua exuberância cibernética até parece democracia, mas é uma deformação da democracia.

O termo Facebookracia não é original, embora ainda seja pouco difundido. Buscando na internet, a gente não o encontra em português, mas ele já aparece em outras línguas (Facebookcracy, por exemplo). O que nos falta é entender e explicar melhor seu significado e suas consequências complexas.

A Facebookracia gera novas distorções no espaço público, mais ou menos como uma força gravitacional deforma o espaço-tempo imaginado por Einstein. A recente eleição de Donald Trump, nos Estados Unidos, tornou o fenômeno um pouco mais visível a olho nu. Pelo Facebook, notícias falsas, e mesmo absurdas, como a de que o papa Francisco estaria apoiando o candidato republicano, foram disseminadas para milhões de pessoas que as tomavam como comprovação irrefutável de seus próprios preconceitos e as replicavam como verdadeiras. Essa e outras mentiras, turbinadas pelas redes, produziram novas distorções no debate público.

Isso acontece por obra das chamadas “bolhas” do Facebook. Os algoritmos que orientam a distribuição de conteúdos de acordo com as preferências dos usuários se especializaram em oferecer mais do mesmo para deleite da clientela. Dentro das bolhas, as pessoas se agrupam pela identificação emocional, mais ou menos como torcidas de futebol, e vão perdendo de vista as que pensam diferente. Os critérios dessa tecnologia são mais afetivos que racionais. O afeto (refletido no número de likes, de “curtidas” etc.) pesa muito mais que a razão. Se uma notícia agrada à população daquela bolha, vai “bombar”, mesmo que não seja rigorosamente fiel aos fatos.

A cidade deserta onde cada um se isola em seu mundo, acabando com o contato pessoal.:
Por aí, o Facebook vira uma usina atômica de inverdades, ao mesmo tempo que proporciona carícias virtuais no ego das multidões. Uma coisa (as inverdades) e a outra (as carícias virtuais) se apoiam reciprocamente. A dinâmica do Facebook atropela os fatos exatamente para aplacar as carências afetivas e suas multidões de cativos. Dá o que eles desejam, não o que é fato. Cria suas bolhas infladas de sorrisos, elogios e juras de amor eterno exatamente para abrir as portas por onde entram as inverdades. A economia do afeto virtual se confunde com a economia da inverdade.

Como consequência, quem está dentro de uma bolha quase não enxerga direito quem está dentro da outra. Muros de desamor se levantam, partindo a sociedade. A propósito, o maior problema de Trump não é o muro que ele quer construir na fronteira do México, mas o muro que já corta seu próprio país. Foi esse muro que impediu os institutos de pesquisa e boa parte da imprensa americana de enxergarem a bolha imensa onde se aglomeravam, confiantes, os eleitores de Trump. Foi patético, mas a imprensa americana se deixou aprisionar por uma das bolhas.

Por fim, a Facebookracia corrói um dos principais denominadores comuns da democracia: a verdade dos fatos. Na ordem democrática, a política funciona bem quando a verificação dos fatos é a base da tomada de decisões. Quando entregue aos likes instantâneos dos carentes afetivos, a política se esvazia, perde seu sentido. Mais um pouco e – fique de olho – alguém vai propor a substituição do Congresso Nacional por um superalgoritmo (e outro alguém vai dar risada, dizendo que não seria má ideia).

Fora tudo isso, o Facebook é apenas um negócio desleal, em que os usuários são os operários, a matéria-prima e a mercadoria, tudo ao mesmo tempo e tudo de graça. Como escravos sorridentes, os usuários entregam à grande empresa (um monopólio mundial) suas fotos familiares, suas memórias sensuais e suas piores indiscrições. Depois, têm seus olhos vendidos para o mercado anunciante e ainda se sentem valorizados, amados, desejados e amparados.

Por certo, não foi Mark Zuckerberg o inventor da carência afetiva e da mentira na política. Ele apenas aprendeu a lucrar (mais) com elas. O saldo é claro: ele ficou mais rico e a democracia ficou mais pobre.