Há mais de 30 anos, a cada semestre recebo uma nova turma de alunos de 20 e poucos anos. Sou professor de comunicação política e, como a realidade tem sido nosso melhor laboratório, discutimos frequentemente a turbulenta e alucinada política nacional.
Em uma dessas conversas, sobre a radicalização do debate político no país, uma estudante reagiu com ceticismo ao meu julgamento, indagando com sinceridade: "Mas política não é sempre guerra e polarização?". Como outros alunos imediatamente concordassem, comecei a explicar que não é bem assim.
As sociedades democráticas são, sim, espaços de divergência, mas não de conflito aberto. A política envolve negociação e compromisso, e certo grau de consenso é essencial para projetos políticos comuns. O nível de intolerância, polarização e dogmatismo que atingimos recentemente não é inevitável, mas resultado de escolhas que fazemos como sociedade.
Como olhos e sorrisos, entre céticos e surpresos, acompanharam a minha explicação, o surpreendido fui eu. Como é que jovens, que estão apenas começando a entender a política de forma madura, mas já mais engajados do que gerações anteriores, normalizaram atitudes que praticamente inviabilizam o país e tornam nossa democracia mais vulnerável?
A resposta é simples, basta fazer as contas. Em 2013, quando o Brasil entrou em surto político, esses alunos tinham entre oito e nove anos. Quando a extrema direita começou a crescer no mundo, eles tinham 11 ou 12. Quando Bolsonaro assumiu, completavam 15 anos. Como poderiam ter outra noção de normalidade política se, desde que se entendem por gente, só viram conflitos abertos entre grupos que se comportam como facções, sectarismo, dogmatismo, ódio autorizado e a luta pela superioridade moral?
São pelo menos 11 anos em que a mensagem política dominante é: "Estamos em guerra, escolha um lado e lute pela sua sobrevivência". Formamos uma geração inteira de guerreiros e depois queremos que eles negociem democraticamente diferenças, usem razão e boa vontade para mediar divergências, entendam que chegar a compromissos com adversários e engolir alguns sapos em nome da tolerância são valores da democracia?
Meninos e meninas mal acordam para a política e extremistas de direita, progressistas identitários e radicais de esquerda lhes enfiam um fuzil na mão: "Vocês agora são guerreiros da justiça, identifiquem seus inimigos, atirem primeiro, argumentem depois". E, claro, todo o conhecimento de que precisam será entregue por transfusão digital, já mastigadinho por líderes e influenciadores tribais; é só engolir. Não é muito: dez dogmas condensam toda a crença necessária para formar um bom soldadinho político ou, com tintas mais nobres, um ativista empenhado em fazer do mundo um lugar melhor.
Além da fragmentação ideológica e do ódio entre grupos, a nova geração logo descobre que o slogan dos anos 60, "o pessoal é político", se materializou por completo. Todas as dimensões da vida são consideradas questões políticas em pé de igualdade com as discussões sobre políticas públicas ou questões de Estado. A distinção moderna entre o íntimo, o privado e o público desapareceu. Tudo voltou a ser público, até a intimidade. Principalmente ela.
Se tudo é política e política é guerra, todo mundo é militante e todo militante é um combatente. Se for militar, que venha armado.
Em um quadro como esse, como esperar que tolerância, pluralismo e respeito ao melhor argumento ainda sejam valores para essa nova geração?
Vocês não imaginam a aflição dos alunos quando proponho que o Brasil político seja visto como uma sala de aula, onde metade da turma não suporta a outra metade e aprendeu que precisa odiá-la do fundo do coração, mas, mesmo assim, ninguém vai sair. E agora? É possível conviver com quem você considera fascista, transfóbico, machista, gayzista, feminazi, comunista, ultraconservador ou esquerdista?
Para alguns, isso soa como o inferno, mas é o início da democracia. Mas como convencê-los desse fato se até agora aprenderam que o lado que tem razão, o próprio lado, tem o direito de ficar sozinho na sala e que o mundo não será justo até que isso aconteça?
Como ensinar essa geração a sair do abismo em que a colocamos se a litania que aprenderam a recitar todos os dias repete, como prece: "O inimigo não se normaliza, se odeia", "o outro lado deve ser convertido ou destruído", "se temos razão, não há que escutar o outro lado", "se ameaça a minha existência, eu serei resistência"?
Formamos guerreiros políticos, não democratas.
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Katharsis, Orozco |
Para satisfazer otimistas e pessimistas, podemos concluir dizendo que estamos no limiar do céu e do inferno, movendo-nos nervosamente dos portões de um para a antessala do outro. A história ainda não se decidiu sobre nosso destino, e uma série de coincidências ainda pode nos colocar em uma ou outra direção.Yuval Noah Harari, "Sapiens: uma breve história da humanidade"
Um relatório do Banco Mundial divulgado nesta terça-feira afirma que, prevalecendo as tendências atuais, o mundo levará mais de três décadas para melhorar as condições de vida de quase 700 milhões que vivem em situação de pobreza extrema no mundo.
No relatório Pobreza, prosperidade e planeta 2024, o Banco Mundial avalia que os grandes revezes dos últimos anos – guerras, crise climática, endividamento e a pandemia de covid-19 – tornaram inatingíveis as metas das Nações Unidas de pôr fim à pobreza extrema até 2030. É considerado em pobreza extrema quem vive com menos de 2,15 dólares (R$ 12,14) por dia.
A taxa de pobreza global caiu de 38% em 1990, para 8,5% em 2024, em grande parte devido ao rápido crescimento econômico na China, Por outro lado, , a taxa de progresso está estagnada desde 2019. A expectativa é que até 2030 esse dado diminua apenas modestamente, para 7,3%.
A pobreza extrema permaneceu concentrada em países com crescimento econômico historicamente baixo e altos níveis de fragilidade, muitos dos quais na África Subsaariana.
"A redução da pobreza global diminuiu até quase parar, com o período entre 2020 e 2030 prestes a se tornar uma década perdida", revela o relatório.
O diretor-gerente chefe do Banco Mundial, Axel van Trotsenburg, observou que, após décadas de progresso, o mundo enfrenta "graves retrocessos na luta contra a pobreza global, devido aos desafios interligados que incluem crescimento econômico lento, pandemia, dívida alta, conflitos e fragilidade, e choques climáticos."
"Precisamos de um manual de desenvolvimento fundamentalmente novo, se quisermos realmente melhorar a vida e os meios de subsistência humana e proteger nosso planeta", disse Trotsenburg.
De acordo com o estudo, seria necessário mais de um século para o mundo atingir o objetivo ainda mais ambicioso de aumentar as rendas para mais de 6,85 dólares por dia, considerados como o limite de pobreza para países de renda média alta como Brasil, Argentina e China, cuja renda per capita está entre 4.466 e 13.845 dólares por ano.
Quase a metade da população mundial – 3,5 bilhões ou 44% – vive com menos de 6,85 dólares por dia. Segundo o relatório, o contingente nesse patamar de pobreza pouco mudou desde 1990, em razão do crescimento populacional.
Pobreza, prosperidade e planeta 2024 ressalta que também houve poucos avanços em termos de redução da desigualdade. Ao mesmo tempo que o número de países com diferenças particularmente grandes entre ricos e pobres havia diminuído de 66 para 49 na última década, dos habitantes de países com alto nível de desigualdade permaneceu inalterada, em 22%. A maior parte de deles estão na América Latina, Caribe e África Subsaariana.
"Quase uma em cada cinco pessoas no mundo está propensa a enfrentar um impacto climático grave em sua vida, do qual teria dificuldade para se recuperar. Na África Subsaariana, quase todos os expostos a eventos climáticos extremos estarão sob risco de sofrer perdas de bem-estar devido a sua vulnerabilidade", afirma o Banco Mundial.
Além disso: "A futura redução da pobreza demanda um crescimento econômico menos intensivo em termos de emissões de carbono do que no passado."
Retomo a reflexão com que terminei a newsletter da última semana: para um crente das teorias da conspiração, perdido nas suas paranoias, a maquinação que realmente se desenrola à frente dos seus olhos será a última em que irá reparar.
Pensemos num cenário digno da mais distópica obra de ficção científica. O homem mais rico do mundo controla a maior constelação de satélites do planeta, capaz de enviar e receber dados dos locais mais recônditos do globo. De caminho, está também cada vez mais perto de ter uma posição monopolista no acesso ao espaço, através da sua empresa aeroespacial.
Cá por terra, outra empresa sua fabrica e comercializa automóveis elétricos conectados à Internet, opera a sua própria rede de abastecimento, aventura-se na exploração do futuro dos transportes coletivos e promete agora robôs humanoides, capazes de substituir um trabalhador, para daqui a um par de anos.
Outra companhia sua explora o tão promissor quanto intrigante mundo da inteligência artificial. E outra das suas empresas desenvolve e testa já implantes em cérebros humanos.
O homem mais rico do mundo controla também a rede social mais influente do mundo (não a das dancinhas virais, mas aquela que políticos de todo o mundo privilegiam para chegar ao público), manipulando-a para elevar vozes amigas, censurando notícias e tópicos desagradáveis, e transformando-a no seu megafone particular, forçando quem o segue e quem não o segue a ler os seus escritos e piadas. É que o homem mais rico do mundo é também o mais sedento de atenção e elogio.
Por vezes, um qualquer país chateia-o porque alguém escreveu na sua rede social uma daquelas coisas que são desagradáveis, e pede-lhe para apagar o escrito e denunciar o seu autor. O homem mais rico do mundo, que quer ser conhecido como um corajoso combatente pela liberdade de expressão, começa por fazer um número de indignação em público mas acaba sempre por ceder discretamente aos pedidos nacionais, sejam de países vagamente democráticos ou de ditaduras descaradas. Há que pensar na abertura ou manutenção de importantes mercados para as suas empresas.
Mas todo este poder não basta ao homem mais rico do mundo, que se atira agora à conquista da capital do país mais rico do mundo. Nascido fora do dito país, está constitucionalmente impedido de o presidir. Decide então apoiar um candidato presidencial, aparecendo com ele em palco num comício financiando comités que por ele fazem campanha, e transformando a tal rede social num permanente tempo de antena a seu favor. E o candidato, esse, até já lhe prometeu um lugar no Governo, num oportunamente abstrato comité de controlo da despesa, porque não há almoços grátis.
Na rede social do homem mais rico do mundo, a realidade é manipulada para ajudar o seu candidato a vencer as eleições. Diz-se que a economia do país está muito má, quando não está assim tão má. Que nunca houve tanto crime, quando este até está em queda. E que quase todos os males da nação são culpa dos estrangeiros, quando a verdade é sempre mais complexa. O homem mais rico do mundo também veio do estrangeiro, mas transformou-se, entretanto, num xenófobo no país que o acolheu.
Diz-se muitas outras coisas incríveis nessa rede social, como que os estrangeiros andam a roubar cães e gatos para os comer, ou que os socorristas que tentam auxiliar as populações atingidas por furacões gastaram o dinheiro todo com os imigrantes. Ou, pior ainda, que os socorristas estão a prender e a matar pessoas para as impedir de votar.
Diz-se também que o candidato do homem mais rico do mundo, também ele bastante rico, é o candidato dos trabalhadores, dos desfavorecidos, das vítimas dos outros ricos e poderosos. E partilham-se imagens e vídeos gerados por ferramentas de inteligência artificial para dar vida ao que não existe, para ilustrar a narrativa.
Na rede social do homem mais rico do mundo, quem tenta desmentir ou corrigir os disparates é atacado por uma turba de crédulos – que até podem não acreditar sempre no que leem, mas que dizem que se não aconteceu, caramba, podia muito bem ter acontecido. É que o homem mais rico do mundo avisou que não se pode confiar nos políticos, nos jornalistas, nos cientistas, nos meteorologistas, nos médicos ou em qualquer outra figura outrora investida de alguma autoridade. Só ele e os seus amigos é que são de confiança.
Uma história assim, sobre dinheiro e poder, sobre implantes cerebrais, 7000 satélites, robôs humanoides, algoritmos manipulados e uma eleição comprada, podia ter tudo para ser um sucesso entre os amantes das conspirações. Mas falta-lhe um ingrediente-chave: o secretismo, o fator “aquilo que eles não querem que se saiba”, o friozinho na barriga de quem julga ter desvendado um mistério nas profundezas do YouTube.
É que esta história acontece às claras. Tão às claras que escapa a quem vive de rosto mergulhado no visor do celular e prefere acreditar em cabalas de canibais pedófilos, em chips injetados por vacinas, em antenas 5G que matam pessoas, em elites que nos querem obrigar a comer insectos e em minorias que nos querem substituir por estrangeiros.
Vendo bem, até parece que essas historietas foram criadas para distrair alguém, não é?