terça-feira, 27 de dezembro de 2016
O ano novo de que necessitamos
Lamento, mas não será 2017. Talvez seja 2018, se por acaso algumas precondições forem cumpridas. O País está sem fôlego para dar saltos audaciosos e a cada momento se vê diante do risco de só alcançar mais do mesmo. O mundo também não ajuda, há problemas e mal-estar por onde quer que se olhe.
É impossível ter ano novo se o quadro atual se prolongar. Se liberais e parte da esquerda continuarem a culpar o PT e se os petistas e outra parte da esquerda continuarem a detonar Temer, o PMDB e os tucanos. Que futuro poderá haver com deputados e senadores hostilizando o Supremo Tribunal Federal (STF) e com ministros do Supremo fazendo carreira-solo e pressionando o Congresso como mal maior da Nação? Com diversos brasileiros entronizando juízes, promotores e procuradores como se fossem anjos redentores, justiceiros de políticos acanalhados, purificadores da sociedade, e outros tantos brasileiros vendo-os como arbitrários e parciais, personagens de um romance noir repleto de perseguições políticas seletivas?
Impossível ter ano novo com as ruas excitadas, mas sem rumo, iludidas ou com a “caça aos corruptos” ou com a denúncia dos males do “governo usurpador”. Um ano novo não virá com a generalização do denuncismo contra os políticos, contra a grande imprensa, contra o neoliberalismo, contra o PT e contra o que quer que seja. Precisamos virar a chave, sair do negativo, superar a raiva e o ressentimento. Temos de recompor muita coisa, refrear apetites corporativos, conter cálculos eleitorais e aparar a crista dos que se veem imbuídos da missão de refundar o País, como se tudo deles dependesse, homens providenciais, à esquerda e à direita.
O País precisa desesperadamente de uma bandeira para seguir, uma trilha que lhe permita sair da confusão e encontrar um eixo razoável.
Não será fácil. Primeiro, porque o quadro é grave e está congelado. Segundo, porque não há muitas lideranças políticas qualificadas nem organizações confiáveis (partidos, movimentos, associações, sindicatos), que juntem lé com cré e se disponham a articular Estado e sociedade, somando interesses e promovendo convergências de visões e valores a serem compartilhados por todos. Terceiro, porque faltam centros de coordenação e animação do coletivo.
Um cenário otimista apontaria para a melhoria da economia, que irradiaria melhorias para a política, esfriando ao mesmo tempo a exasperação social. Mas a própria economia é em boa medida uma instância determinada, reflexa. Há variáveis que não dependem dela e há coisas que não se alterarão repentinamente, assim como certos processos seguirão seu curso, indiferentes à retomada do crescimento. Ou alguém acredita que o mundo político vai se recuperar de repente, depois de ter chegado ao osso e ido além?
A Lava Jato tende a prosseguir lançando seus petardos sobre políticos e partidos. Para o bem e para o mal. Também o STF é uma variável independente, ainda que menos voluntariosa. Sua lentidão, sua maior ou menor disposição de funcionar como poder moderador e guardião da Constituição, seu maior ou menor ativismo são fatores difíceis de serem controlados. As divisões internas da Corte, o protagonismo de seus integrantes, a degradação das relações entre eles fazem com que o próprio Judiciário fique com menos poder, atritam seu relacionamento com os demais poderes e alimentam a crise institucional.
Olhemos para o governo. É vacilante, frágil, parece desorientado, não dispõe de apoio popular. Tenta construir um atalho na economia e nas contas públicas, mas a política o faz sangrar em praça pública. É um governo que não se coordena, não coordena suas políticas nem coordena suas relações com a sociedade. Funciona aos trancos, no vai-da-valsa, sem motorista. Foi assim que chegou ao final do ano. E é fácil de prever que, se não se reformular de forma abrangente e rápida, irá para o caos e levará o País consigo.
Olhemos para as oposições. Estão envoltas numa fase de histrionismo extremo, ressentimento e ausência de ideias, sem nenhum plano de voo a não ser “Fora Temer” e “Diretas Já”. Nem sequer se perguntam o que acontecerá se por acaso vierem eleições antecipadas, o que será oferecido à população, por quais candidatos.
A sociedade precisa se reencontrar com a política e o Estado. Agir como comunidade política. Ter uma plataforma de convergências. Somente assim será possível interromper o ciclo nefasto em que nos encontramos e sair do circuito de crises que se remetem umas às outras. É ingenuidade achar que haverá ano novo sem desprendimento, humildade e coragem para largar ao mar certos destroços e enterrar alguns mortos queridos. O norte tem de ser o futuro, o novo, não o passado, o velho.
Todas as partes políticas deveriam se dedicar a isto: definir o que desejam e com quem podem avançar, olhar para dentro de si mesmas, extirpar os pedaços podres que carregam no ventre, reduzir a animosidade em favor da paciência e da tolerância. Parar de amplificar artificialmente o poder dos Poderes. Trocar o conflito pela cooperação, ceder os anéis para não perder os dedos, fazer cálculos mais estratégicos do que táticos. Substituir a crítica das armas pela arma da crítica. Construir pontes para o presente, não só para o futuro.
A repactuação política se mostra como caminho virtuoso. Mas não se sabe quem poderá coordená-la e promovê-la, que passos terão de ser dados para viabilizá-la, se ela passará por eleições antecipadas, por uma Constituinte exclusiva ou por uma frente política de união nacional.
Sabe-se, porém, que aos democratas – liberais, socialistas, esquerda democrática – estará reservado o papel principal. Sem eles, sem seu ativismo e sem seu desprendimento, não surgirá alternativa viável, que trace um mapa para o País e dê referências às ruas, ao conjunto da sociedade. Esse o molde do ano novo de que necessitamos.
Difícil, mas não impossível.
Bom 2017 para todos.
É impossível ter ano novo se o quadro atual se prolongar. Se liberais e parte da esquerda continuarem a culpar o PT e se os petistas e outra parte da esquerda continuarem a detonar Temer, o PMDB e os tucanos. Que futuro poderá haver com deputados e senadores hostilizando o Supremo Tribunal Federal (STF) e com ministros do Supremo fazendo carreira-solo e pressionando o Congresso como mal maior da Nação? Com diversos brasileiros entronizando juízes, promotores e procuradores como se fossem anjos redentores, justiceiros de políticos acanalhados, purificadores da sociedade, e outros tantos brasileiros vendo-os como arbitrários e parciais, personagens de um romance noir repleto de perseguições políticas seletivas?
Impossível ter ano novo com as ruas excitadas, mas sem rumo, iludidas ou com a “caça aos corruptos” ou com a denúncia dos males do “governo usurpador”. Um ano novo não virá com a generalização do denuncismo contra os políticos, contra a grande imprensa, contra o neoliberalismo, contra o PT e contra o que quer que seja. Precisamos virar a chave, sair do negativo, superar a raiva e o ressentimento. Temos de recompor muita coisa, refrear apetites corporativos, conter cálculos eleitorais e aparar a crista dos que se veem imbuídos da missão de refundar o País, como se tudo deles dependesse, homens providenciais, à esquerda e à direita.
O País precisa desesperadamente de uma bandeira para seguir, uma trilha que lhe permita sair da confusão e encontrar um eixo razoável.
Não será fácil. Primeiro, porque o quadro é grave e está congelado. Segundo, porque não há muitas lideranças políticas qualificadas nem organizações confiáveis (partidos, movimentos, associações, sindicatos), que juntem lé com cré e se disponham a articular Estado e sociedade, somando interesses e promovendo convergências de visões e valores a serem compartilhados por todos. Terceiro, porque faltam centros de coordenação e animação do coletivo.
Um cenário otimista apontaria para a melhoria da economia, que irradiaria melhorias para a política, esfriando ao mesmo tempo a exasperação social. Mas a própria economia é em boa medida uma instância determinada, reflexa. Há variáveis que não dependem dela e há coisas que não se alterarão repentinamente, assim como certos processos seguirão seu curso, indiferentes à retomada do crescimento. Ou alguém acredita que o mundo político vai se recuperar de repente, depois de ter chegado ao osso e ido além?
A Lava Jato tende a prosseguir lançando seus petardos sobre políticos e partidos. Para o bem e para o mal. Também o STF é uma variável independente, ainda que menos voluntariosa. Sua lentidão, sua maior ou menor disposição de funcionar como poder moderador e guardião da Constituição, seu maior ou menor ativismo são fatores difíceis de serem controlados. As divisões internas da Corte, o protagonismo de seus integrantes, a degradação das relações entre eles fazem com que o próprio Judiciário fique com menos poder, atritam seu relacionamento com os demais poderes e alimentam a crise institucional.
Olhemos para o governo. É vacilante, frágil, parece desorientado, não dispõe de apoio popular. Tenta construir um atalho na economia e nas contas públicas, mas a política o faz sangrar em praça pública. É um governo que não se coordena, não coordena suas políticas nem coordena suas relações com a sociedade. Funciona aos trancos, no vai-da-valsa, sem motorista. Foi assim que chegou ao final do ano. E é fácil de prever que, se não se reformular de forma abrangente e rápida, irá para o caos e levará o País consigo.
Olhemos para as oposições. Estão envoltas numa fase de histrionismo extremo, ressentimento e ausência de ideias, sem nenhum plano de voo a não ser “Fora Temer” e “Diretas Já”. Nem sequer se perguntam o que acontecerá se por acaso vierem eleições antecipadas, o que será oferecido à população, por quais candidatos.
A sociedade precisa se reencontrar com a política e o Estado. Agir como comunidade política. Ter uma plataforma de convergências. Somente assim será possível interromper o ciclo nefasto em que nos encontramos e sair do circuito de crises que se remetem umas às outras. É ingenuidade achar que haverá ano novo sem desprendimento, humildade e coragem para largar ao mar certos destroços e enterrar alguns mortos queridos. O norte tem de ser o futuro, o novo, não o passado, o velho.
Todas as partes políticas deveriam se dedicar a isto: definir o que desejam e com quem podem avançar, olhar para dentro de si mesmas, extirpar os pedaços podres que carregam no ventre, reduzir a animosidade em favor da paciência e da tolerância. Parar de amplificar artificialmente o poder dos Poderes. Trocar o conflito pela cooperação, ceder os anéis para não perder os dedos, fazer cálculos mais estratégicos do que táticos. Substituir a crítica das armas pela arma da crítica. Construir pontes para o presente, não só para o futuro.
A repactuação política se mostra como caminho virtuoso. Mas não se sabe quem poderá coordená-la e promovê-la, que passos terão de ser dados para viabilizá-la, se ela passará por eleições antecipadas, por uma Constituinte exclusiva ou por uma frente política de união nacional.
Sabe-se, porém, que aos democratas – liberais, socialistas, esquerda democrática – estará reservado o papel principal. Sem eles, sem seu ativismo e sem seu desprendimento, não surgirá alternativa viável, que trace um mapa para o País e dê referências às ruas, ao conjunto da sociedade. Esse o molde do ano novo de que necessitamos.
Difícil, mas não impossível.
Bom 2017 para todos.
Boa vontade e coincidência
Sempre me impressionou a mensagem de Natal que os anjos trouxeram ao presépio. Além de glorificar Deus nas alturas, desejavam paz na terra aos homens de boa vontade. Uma clara restrição — os de má vontade ficavam de fora, que se guerreassem à vontade. Nesta data festiva, podemos nos lembrar disso e ter um pouquinho de boa vontade geral. Faz bem ao país. Pode ajudar na paz e na harmonia. Até mesmo porque, como lembrou a ministra Cármen Lúcia, a sociedade não pode correr o risco de descrer do Estado: “Ou a democracia ou a guerra”.
Seria bom substituir a cultura do confronto pela prática da conversa e a busca do entendimento. Buscar fatos e dados, tanto na memória histórica quanto na experiência alheia. Como são as coisas em outros países democráticos? Por que são diferentes? Com que efeito? Reflexões assim despertadas podem ajudar a entender melhor a reforma da Previdência, a do ensino, a flexibilização de leis trabalhistas e tanto mais. Disposição para aprender pode levar a saídas. Neste ano que se encerra, tivemos a oportunidade de aprender lições importantes. Como constatar que pressão pode funcionar. Ou que a irresponsabilidade tem consequências — seja no campo fiscal, seja na estupidez de querer voar com pouco combustível.
Nos últimos dias, um vazamento de delação da Odebrecht nos revoltou e exacerbou a má vontade geral, a juntar todas as revelações, como farinha do mesmo saco. Talvez não seja sábio compactuar com essa ideia de que é todo mundo igual e ninguém presta. Ou que toda doação para campanha eleitoral é sempre criminosa, sendo melhor que os financiamentos sejam públicos, por meio de um fundo partidário que cresce sem parar a cada novo orçamento e será distribuído pelos que controlam cada partido. Talvez seja preferível uma reforma política a baratear campanhas e fiscalizar financiamentos privados, exigindo transparência e punindo severamente qualquer irregularidade, sem possibilidade de anistias fajutas. Até lá, é melhor examinar de perto o que se relata e delata.
Até há pouco, doação de empresa para campanha era legal. Para candidatos individuais ou para partidos. Nesse caso, alguém era encarregado de receber e encaminhar à conta oficial. Mas tinha de ser declarado ao TSE. Então é só cotejar. Foi doação declarada? Nenhum problema. Mas se o que se delata como doado não bate com o que se declarou ao tribunal, há que investigar. Se o delator mente, é crime a ser castigado (infâmia, calúnia, difamação, sabe-se lá). Se há indícios de recebimento, é outro caso. No mínimo, recai em evasão fiscal e crime eleitoral. Para quem doou por fora, é sinal de que pretendia favores e queria corromper. Para quem recebeu, há pena de multa e risco de cassação.
Outro caso é de quem recebeu fora de campanha. Nada justifica, é preciso apurar com rigor. Tudo indica compra de votos no Congresso. Ou troca de favores. Ou tráfico de influência. O que se deu em troca? Projetos beneficiando quem pagava? A inserção de jabutis (que não sobem em árvore) nas forquilhas de medidas provisórias?
Pelo que surge nos primeiros relatos, muitos casos de pagamento se destinavam a comprar decisões legislativas e apoio para alguma MP especialmente concebida para beneficiar a empresa que pagava adiantado. Torna-se então imprescindível examinar a origem dessa MP. E aí se chega ao Palácio do Planalto, de onde vêm todas elas. Não dá para querer limpar a área sem chegar ao Executivo, o ninho em que foram concebidas e chocadas as MPs que beneficiavam as empreiteiras corruptoras. Fica inevitável examinar as digitais presidenciais bem como de ministros e altos assessores presidenciais. Só após redigidas é que elas batiam asas em direção ao Congresso. Já que essas medidas valiam tanto, como engolir a hipótese de que brotavam por geração espontânea, em coincidente identidade de propósitos entre a empreiteira e o Planalto? A corrupção só se exerceria na reta final? Não sejamos ingênuos, algo havemos de aprender quando pensamos. Se pensarmos, claro.
Em algum lugar sem mancha, reúnem-se às gargalhadas o Delegado Espinosa, o criminalista Mandrake, os detetives Hercule Poirot, Sam Spade, Philp Marlowe e Sherlock Holmes, e mais Arsene Lupin, Miss Marple, o Comissário Maigret, o inspetor Dalgliesh e todos os investigadores famosos dos romances policiais. Rolam de rir ao constatar que um país inteiro se contenta com essa hipótese ridícula, que lhe é servida diariamente a conta-gotas, até vencer pelo cansaço e se transformar em indiferença. Supõe imaginar que centenas de criminosos toparam cometer o mesmo crime de se vender, no mesmo modelo, no mesmo governo, para apoiar medidas que brotavam do mesmo nada, servindo a interesses muito específicos, vindas da mesma origem e criadas a partir de alguém que não tinha nada a ver com esse crime, mas ia tendo ideias em série, por iluminação súbita. Não é coincidência demais? Ou confusão de boa vontade com cegueira? A que projeto servia esse crime?
Ana Maria Machado
Seria bom substituir a cultura do confronto pela prática da conversa e a busca do entendimento. Buscar fatos e dados, tanto na memória histórica quanto na experiência alheia. Como são as coisas em outros países democráticos? Por que são diferentes? Com que efeito? Reflexões assim despertadas podem ajudar a entender melhor a reforma da Previdência, a do ensino, a flexibilização de leis trabalhistas e tanto mais. Disposição para aprender pode levar a saídas. Neste ano que se encerra, tivemos a oportunidade de aprender lições importantes. Como constatar que pressão pode funcionar. Ou que a irresponsabilidade tem consequências — seja no campo fiscal, seja na estupidez de querer voar com pouco combustível.
Nos últimos dias, um vazamento de delação da Odebrecht nos revoltou e exacerbou a má vontade geral, a juntar todas as revelações, como farinha do mesmo saco. Talvez não seja sábio compactuar com essa ideia de que é todo mundo igual e ninguém presta. Ou que toda doação para campanha eleitoral é sempre criminosa, sendo melhor que os financiamentos sejam públicos, por meio de um fundo partidário que cresce sem parar a cada novo orçamento e será distribuído pelos que controlam cada partido. Talvez seja preferível uma reforma política a baratear campanhas e fiscalizar financiamentos privados, exigindo transparência e punindo severamente qualquer irregularidade, sem possibilidade de anistias fajutas. Até lá, é melhor examinar de perto o que se relata e delata.
Outro caso é de quem recebeu fora de campanha. Nada justifica, é preciso apurar com rigor. Tudo indica compra de votos no Congresso. Ou troca de favores. Ou tráfico de influência. O que se deu em troca? Projetos beneficiando quem pagava? A inserção de jabutis (que não sobem em árvore) nas forquilhas de medidas provisórias?
Pelo que surge nos primeiros relatos, muitos casos de pagamento se destinavam a comprar decisões legislativas e apoio para alguma MP especialmente concebida para beneficiar a empresa que pagava adiantado. Torna-se então imprescindível examinar a origem dessa MP. E aí se chega ao Palácio do Planalto, de onde vêm todas elas. Não dá para querer limpar a área sem chegar ao Executivo, o ninho em que foram concebidas e chocadas as MPs que beneficiavam as empreiteiras corruptoras. Fica inevitável examinar as digitais presidenciais bem como de ministros e altos assessores presidenciais. Só após redigidas é que elas batiam asas em direção ao Congresso. Já que essas medidas valiam tanto, como engolir a hipótese de que brotavam por geração espontânea, em coincidente identidade de propósitos entre a empreiteira e o Planalto? A corrupção só se exerceria na reta final? Não sejamos ingênuos, algo havemos de aprender quando pensamos. Se pensarmos, claro.
Em algum lugar sem mancha, reúnem-se às gargalhadas o Delegado Espinosa, o criminalista Mandrake, os detetives Hercule Poirot, Sam Spade, Philp Marlowe e Sherlock Holmes, e mais Arsene Lupin, Miss Marple, o Comissário Maigret, o inspetor Dalgliesh e todos os investigadores famosos dos romances policiais. Rolam de rir ao constatar que um país inteiro se contenta com essa hipótese ridícula, que lhe é servida diariamente a conta-gotas, até vencer pelo cansaço e se transformar em indiferença. Supõe imaginar que centenas de criminosos toparam cometer o mesmo crime de se vender, no mesmo modelo, no mesmo governo, para apoiar medidas que brotavam do mesmo nada, servindo a interesses muito específicos, vindas da mesma origem e criadas a partir de alguém que não tinha nada a ver com esse crime, mas ia tendo ideias em série, por iluminação súbita. Não é coincidência demais? Ou confusão de boa vontade com cegueira? A que projeto servia esse crime?
Ana Maria Machado
Cosa Nostra
Na terça-feira 17 de janeiro começa o julgamento do ex-presidente de El Salvador Mauricio Funes. Acusado de corrupção, ele foi intimado na véspera do Natal na Nicarágua, onde vive em autoexílio. O processo inclui sua ex-mulher, Vanda, e um de seus filhos, Diego.
Funes chegou ao poder em 2009 pela Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional, nascida da fusão de cinco organizações guerrilheiras que protagonizaram a guerra civil de El Salvador, no final do século passado.
Vanda Pignato, ex-primeira-dama, é brasileira, antiga militante do PT. Ela garantiu o apoio do governo Lula ao marido desde a campanha eleitoral, paga pelo grupo Odebrecht, cujos contratos somaram US$ 50 milhões no mandato de Funes.
Desde a semana passada, ele e outros 14 líderes políticos nas Américas e na África estão no centro das investigações em seus países sobre propinas pagas pela empreiteira brasileira.
É o caso do ex-presidente do Panamá Ricardo Martinelli, que embolsou um dólar para cada três que a Odebrecht lucrou durante seu governo. Guardou US$ 59 milhões.
Na vizinha República Dominicana quem está em apuros é o presidente Danilo Medina, reeleito em maio. No primeiro mandato, Medina fez contratos que proporcionaram à empreiteira lucros de US$ 163 milhões. Ela retribuiu com generosos US$ 92 milhões em subornos, o equivalente a 56% dos ganhos acumulados desde 2012. A taxa paga ao lado, na Guatemala, foi um pouco menor: 52%, isto é, US$ 18 milhões para US$ 34 milhões em contratos.
Em Quito, no Equador, a polícia apreendeu na sexta-feira arquivos eletrônicos na sede local da Odebrecht. Rafael Correa, no poder há nove anos, demonstra temor com a revelação de que a Odebrecht pagou US$ 35 milhões em subornos, 28% dos seus lucros equatorianos. Em 2008, Correa expulsou a empreiteira, acusando-a de corrupção. Acertaram-se, sob as bençãos de Lula em 2010.
Em Bogotá, Colômbia, investiga-se a rota da propina de US$ 11 milhões, pagos entre 2009 e 2014, no governo Álvaro Uribe. Rápido no gatilho, ele ontem se lembrou de uma reunião “suspeita” entre o atual presidente Juan Manuel dos Santos e diretores da Odebrecht no Panamá.
No Peru a confusão é grande: acusam-se os ex-presidentes Alejandro Toledo (2001-2006), Alan García (2006-2011), Ollanta Humala e a ex-primeira dama Nadine (2011-2016). Eles apontam para o atual presidente Pedro Pablo Kuczynski, primeiro-ministro na época em que a Odebrecht começou a distribuir US$ 29 milhões — 20% dos lucros no país em 11 anos.
Nada disso, porém, se compara aos lucros e ao propinoduto em Angola e Venezuela. As relações com os governos do angolano José Eduardo Santos e do venezuelano Hugo Chávez (sucedido por Nicolás Maduro) chegaram a proporcionar US$ 1 bilhão em lucros anuais. Sustentaram o caixa no exterior, estimado em US$ 500 milhões, voltado para pagamentos a políticos, principalmente brasileiros.
Capturados pelos bolsos, líderes que se apresentavam como revolucionários nos anos 80 começam a ser expostos como sócios de uma rede internacional de corrupção, operada a partir do Brasil pela Odebrecht. Fizeram da coisa pública uma cosa nostra.
José Casado
Funes chegou ao poder em 2009 pela Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional, nascida da fusão de cinco organizações guerrilheiras que protagonizaram a guerra civil de El Salvador, no final do século passado.
Vanda Pignato, ex-primeira-dama, é brasileira, antiga militante do PT. Ela garantiu o apoio do governo Lula ao marido desde a campanha eleitoral, paga pelo grupo Odebrecht, cujos contratos somaram US$ 50 milhões no mandato de Funes.
É o caso do ex-presidente do Panamá Ricardo Martinelli, que embolsou um dólar para cada três que a Odebrecht lucrou durante seu governo. Guardou US$ 59 milhões.
Na vizinha República Dominicana quem está em apuros é o presidente Danilo Medina, reeleito em maio. No primeiro mandato, Medina fez contratos que proporcionaram à empreiteira lucros de US$ 163 milhões. Ela retribuiu com generosos US$ 92 milhões em subornos, o equivalente a 56% dos ganhos acumulados desde 2012. A taxa paga ao lado, na Guatemala, foi um pouco menor: 52%, isto é, US$ 18 milhões para US$ 34 milhões em contratos.
Em Quito, no Equador, a polícia apreendeu na sexta-feira arquivos eletrônicos na sede local da Odebrecht. Rafael Correa, no poder há nove anos, demonstra temor com a revelação de que a Odebrecht pagou US$ 35 milhões em subornos, 28% dos seus lucros equatorianos. Em 2008, Correa expulsou a empreiteira, acusando-a de corrupção. Acertaram-se, sob as bençãos de Lula em 2010.
Em Bogotá, Colômbia, investiga-se a rota da propina de US$ 11 milhões, pagos entre 2009 e 2014, no governo Álvaro Uribe. Rápido no gatilho, ele ontem se lembrou de uma reunião “suspeita” entre o atual presidente Juan Manuel dos Santos e diretores da Odebrecht no Panamá.
No Peru a confusão é grande: acusam-se os ex-presidentes Alejandro Toledo (2001-2006), Alan García (2006-2011), Ollanta Humala e a ex-primeira dama Nadine (2011-2016). Eles apontam para o atual presidente Pedro Pablo Kuczynski, primeiro-ministro na época em que a Odebrecht começou a distribuir US$ 29 milhões — 20% dos lucros no país em 11 anos.
Nada disso, porém, se compara aos lucros e ao propinoduto em Angola e Venezuela. As relações com os governos do angolano José Eduardo Santos e do venezuelano Hugo Chávez (sucedido por Nicolás Maduro) chegaram a proporcionar US$ 1 bilhão em lucros anuais. Sustentaram o caixa no exterior, estimado em US$ 500 milhões, voltado para pagamentos a políticos, principalmente brasileiros.
Capturados pelos bolsos, líderes que se apresentavam como revolucionários nos anos 80 começam a ser expostos como sócios de uma rede internacional de corrupção, operada a partir do Brasil pela Odebrecht. Fizeram da coisa pública uma cosa nostra.
José Casado
O Brasil é de lascar o cano
O Brasil é de estarrecer, assustava-se Dilma Rousseff, aquela mesma que hoje se diverte adotando o codinome de Janete ao atender a telefonemas de desconhecidos, uma rotina muito desagradável de brasileiros comuns, a cujo coletivo ela se associou, após ter deixado de ser a rainha de paus para virar carta fora do baralho. Brasileiro é de lascar o cano, diriam Antônio Barros e Cecéu num dos mais celebrados clássicos do cancioneiro junino nos sambas do sertão do Semiárido.
O melhor exemplo disso é a emenda constitucional que limita os gastos públicos. Diante do estado lamentável em que o socialismo de fancaria do populismo lulopetista largou a ossada para o “depois de mim, o deserto”, não o dilúvio, qualquer economista de bom senso diria que o elementar a fazer só poderia ser adotar a lei do só gastar o que tiver ganhado. No entanto, um bando de devotos semialfabetizados de maus decifradores de Thomas Piketty resolveram vender à Nação a teoria estapafúrdia de que essa adoção da regra mais elementar das ciências econômicas não passa de uma forma matreira de concentrar renda. Concentrar o quê? Que renda? Só se for renda de bilro.
A lei econômica virou norma constitucional em quóruns qualificados de três quintos em quatro turnos de votações na Câmara dos Deputados e no Senado Federal. No entanto, a ladainha estúpida continua percorrendo os quatro cantos do País, uma mentira nefasta que engana todos e não ajuda ninguém. Henrique Meirelles, o ministro da Fazenda egresso da presidência mundial do Bank of Boston, exagerou ao dizer que foi uma revolução social similar ao Plano Real, hoje um responsável mancebo de mais de 20 anos. Pode ser que não. A moeda forte e o fim da inflação, sob a égide do presidente Itamar Franco e do ex-ministro da Fazenda Fernando Henrique, promoveram a maior revolução social da História do País. No entanto, seus efeitos desmancharam-se sob a ação corrosiva de 13 anos, 5 meses e 12 dias de desmanche da Lei de Responsabilidade Fiscal.
Certo é que, tendo a irresponsabilidade fiscal voltado à voga, era mister adotar uma imposição constitucional para garantir o óbvio. No entanto, militantes de aluguel, armados de pneus queimados, paralisam o trânsito das metrópoles, mas não o País, pois este já está estagnado pelo desmazelo da nova matriz econômica, fazendo o diabo para tornar o ajuste necessário uma espécie de missa satânica. Arre égua, com mil e seiscentos diabos!, diria meu avô Chico Ferreira. Na marcha insensata rumo ao futuro (apud Barbara Tuchman), os pregoeiros da insânia insistem em antecipar o juízo final para inculpar quem luta para evitar que venha logo o dia em que não haja recursos suficientes para cobrir toda a despesa pública.
No rastro dos pneus queimados, estudantes profissionais e militantes radicais do neoanarquismo vândalo e sem causa invadem escolas para atrapalhar a realização do Enem, exame de avaliação para entrada na Universidade de massas de candidatos, para combater uma tentativa de reformar o ensino médio. Este ano, apesar dos pesares, 5.848.619 estudantes se submeteram às provas, apesar das invasões. E, quando estas pareciam fadadas ao oblívio, o operoso procurador-geral da República, Rodrigo Janot, interveio para salvá-las declarando ser inconstitucional a Medida Provisória que autoriza a reforma, porque, em sua opinião, o assunto, debatido no País desde o final dos anos de 1990, precisa ser mais discutido no Congresso, exigindo, então, a aprovação de uma lei.
Entre 2009 e 2015, a média brasileira em Matemática caiu de 391 para 377 pontos, na edição de 2015 do Pisa, exame realizado trienalmente pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), entidade que reúne países desenvolvidos. A média dos países da entidade nesta disciplina é de 490. Isso é trágico, segundo o ministro da Educação, Mendonça Filho. E quem ousa discordar dele?
O dia fatal em que o Estado como um todo não tiver mais como pagar as despesas públicas aproxima-se à medida em que o rombo previdenciário aumenta em forma exponencial. Em 2017, alcançará a cifra impressionante de R$ 200 bilhões. Para evitá-lo há que aumentar a idade limite para a aposentadoria e o total de anos de contribuição. A opção é o sistema ruir. A reforma da Previdência não é mais uma decisão política, mas uma questão primária de necessidade, como definiu muito bem Meirelles. Além disso, urge corrigir injustiças insuportáveis: A aposentadoria pública devora R$ 62 bilhões por ano para 1 milhão de aposentados. No regime geral da previdência social, pelo qual 24 milhões de beneficiários recebem aposentadorias e pensões pelo INSS, o déficit chegou a R$ 50 bilhões. Cada aposentado do setor privado recebe, em média, 30 vezes menos que aposentados do setor público. No entanto, para ver aprovada sua proposta para corrigir tais distorções na Câmara, o governo teve de assumir o compromisso de só começar a discuti-la no ano que vem. Como adiar o inevitável?
A popularidade de Temer tem índices de pré-sal (10% no Datafolha e 13% no Ibope), mas os agentes da produção aplaudem seus esforços, menos por sua agenda positiva de momento e mais pelas reformas anunciadas. Caso das mudanças das relações trabalhistas, prevendo a jornada não contínua e a primazia do negociado sobre o estatuído. A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) é uma setentona pouco respeitável, mas a oposição sem eleitor a defende, como o faz a hiena com sua carniça.
No meio desse ambiente surrealista, em que a necessidade é negligenciada pela utopia que produziu o pesadelo, só não faltam oportunistas do casuísmo com suas fórmulas para substituir o presidente constitucional e outros delírios momescos. As prioridades são por fim à quebradeira das empresas e arranjar trabalho para 12 milhões de desempregados. A hora é de suar, e não de sonhar.
José Nêumanne
O melhor exemplo disso é a emenda constitucional que limita os gastos públicos. Diante do estado lamentável em que o socialismo de fancaria do populismo lulopetista largou a ossada para o “depois de mim, o deserto”, não o dilúvio, qualquer economista de bom senso diria que o elementar a fazer só poderia ser adotar a lei do só gastar o que tiver ganhado. No entanto, um bando de devotos semialfabetizados de maus decifradores de Thomas Piketty resolveram vender à Nação a teoria estapafúrdia de que essa adoção da regra mais elementar das ciências econômicas não passa de uma forma matreira de concentrar renda. Concentrar o quê? Que renda? Só se for renda de bilro.
A lei econômica virou norma constitucional em quóruns qualificados de três quintos em quatro turnos de votações na Câmara dos Deputados e no Senado Federal. No entanto, a ladainha estúpida continua percorrendo os quatro cantos do País, uma mentira nefasta que engana todos e não ajuda ninguém. Henrique Meirelles, o ministro da Fazenda egresso da presidência mundial do Bank of Boston, exagerou ao dizer que foi uma revolução social similar ao Plano Real, hoje um responsável mancebo de mais de 20 anos. Pode ser que não. A moeda forte e o fim da inflação, sob a égide do presidente Itamar Franco e do ex-ministro da Fazenda Fernando Henrique, promoveram a maior revolução social da História do País. No entanto, seus efeitos desmancharam-se sob a ação corrosiva de 13 anos, 5 meses e 12 dias de desmanche da Lei de Responsabilidade Fiscal.
Certo é que, tendo a irresponsabilidade fiscal voltado à voga, era mister adotar uma imposição constitucional para garantir o óbvio. No entanto, militantes de aluguel, armados de pneus queimados, paralisam o trânsito das metrópoles, mas não o País, pois este já está estagnado pelo desmazelo da nova matriz econômica, fazendo o diabo para tornar o ajuste necessário uma espécie de missa satânica. Arre égua, com mil e seiscentos diabos!, diria meu avô Chico Ferreira. Na marcha insensata rumo ao futuro (apud Barbara Tuchman), os pregoeiros da insânia insistem em antecipar o juízo final para inculpar quem luta para evitar que venha logo o dia em que não haja recursos suficientes para cobrir toda a despesa pública.
No rastro dos pneus queimados, estudantes profissionais e militantes radicais do neoanarquismo vândalo e sem causa invadem escolas para atrapalhar a realização do Enem, exame de avaliação para entrada na Universidade de massas de candidatos, para combater uma tentativa de reformar o ensino médio. Este ano, apesar dos pesares, 5.848.619 estudantes se submeteram às provas, apesar das invasões. E, quando estas pareciam fadadas ao oblívio, o operoso procurador-geral da República, Rodrigo Janot, interveio para salvá-las declarando ser inconstitucional a Medida Provisória que autoriza a reforma, porque, em sua opinião, o assunto, debatido no País desde o final dos anos de 1990, precisa ser mais discutido no Congresso, exigindo, então, a aprovação de uma lei.
Entre 2009 e 2015, a média brasileira em Matemática caiu de 391 para 377 pontos, na edição de 2015 do Pisa, exame realizado trienalmente pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), entidade que reúne países desenvolvidos. A média dos países da entidade nesta disciplina é de 490. Isso é trágico, segundo o ministro da Educação, Mendonça Filho. E quem ousa discordar dele?
O dia fatal em que o Estado como um todo não tiver mais como pagar as despesas públicas aproxima-se à medida em que o rombo previdenciário aumenta em forma exponencial. Em 2017, alcançará a cifra impressionante de R$ 200 bilhões. Para evitá-lo há que aumentar a idade limite para a aposentadoria e o total de anos de contribuição. A opção é o sistema ruir. A reforma da Previdência não é mais uma decisão política, mas uma questão primária de necessidade, como definiu muito bem Meirelles. Além disso, urge corrigir injustiças insuportáveis: A aposentadoria pública devora R$ 62 bilhões por ano para 1 milhão de aposentados. No regime geral da previdência social, pelo qual 24 milhões de beneficiários recebem aposentadorias e pensões pelo INSS, o déficit chegou a R$ 50 bilhões. Cada aposentado do setor privado recebe, em média, 30 vezes menos que aposentados do setor público. No entanto, para ver aprovada sua proposta para corrigir tais distorções na Câmara, o governo teve de assumir o compromisso de só começar a discuti-la no ano que vem. Como adiar o inevitável?
A popularidade de Temer tem índices de pré-sal (10% no Datafolha e 13% no Ibope), mas os agentes da produção aplaudem seus esforços, menos por sua agenda positiva de momento e mais pelas reformas anunciadas. Caso das mudanças das relações trabalhistas, prevendo a jornada não contínua e a primazia do negociado sobre o estatuído. A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) é uma setentona pouco respeitável, mas a oposição sem eleitor a defende, como o faz a hiena com sua carniça.
No meio desse ambiente surrealista, em que a necessidade é negligenciada pela utopia que produziu o pesadelo, só não faltam oportunistas do casuísmo com suas fórmulas para substituir o presidente constitucional e outros delírios momescos. As prioridades são por fim à quebradeira das empresas e arranjar trabalho para 12 milhões de desempregados. A hora é de suar, e não de sonhar.
José Nêumanne
2016 vai invadir 2017!
O passado não reconhece o seu lugar: está sempre presenteMario Quintana
Até a cronologia anda meio abilolada. 2016 vai acabando e no mundo todo as pessoas de bem desejam um Ano Novo melhor, trocando generosas aspirações. Mas... todas temem que algumas tragédias e problemas do ano que finda voltem a acontecer! A esperança é uma plantinha que morre à míngua? Aliás, o mesmo Mario Quintana, sempre mordaz, dizia que “esperança é um urubu pintado de verde”.
Não exageremos no ceticismo. Tudo tem, pelo menos, dois lados. E o que dá pra rir dá pra chorar.
Muitos até então “intocáveis” ficarão vulneráveis. Isso tem um lado positivo: o capitalismo de compadrio e a política do tráfico de influência, do toma lá dá cá, estão com os dias contados no Brasil. O sentimento antipolítica vai crescer, o que é péssimo. Mas expressa a negação da forma demagógica e mercantil de se fazer política no Brasil.
O desemprego continuará elevado, e isso não tem qualquer aspecto positivo: “sem o seu trabalho, o homem não tem honra, e sem a sua honra se morre, se mata: não dá pra ser feliz”, cantou o saudoso Gonzaguinha. Arranco positividade, mesmo no plano da utopia: quem sabe a gana de lucros das empresas diminui e elas demitem menos, para evitar convulsão social?
O capital financeiro continuará por cima, mas nesse ano de 2016 até os lucros dos grandes bancos reduziram um pouco, em relação a 2015. Que em 2017 caiam mais, nesse país que emenda a Constituição para limitar investimentos sociais mas não corta um centavo dos gastos financeiros, com juros (sempre estratosféricos) e amortização da dívida pública.
A violência, tanto física e direta, contra a vida e o patrimônio, como a cultural, do preconceito, do racismo, da homofobia, prosseguirá, mas o clamor contra ela também não cessará: a cada ponto um contraponto.
Um “ajuste” de precarização de direitos seguirá sendo tentado pelo governo, mas a resistência será grande. 2017 se anuncia como um ano de grandes mobilizações populares, e não haverá repressão policial que contenha o clamor justo das ruas.
O Brasil seguirá socialmente desigual, com sua renda per capita sendo a metade da que há na Grécia, um país com problemas semelhantes aos nossos. A quebradeira de estados e municípios será notícia, e drama para servidores públicos sem salários e povo sem os serviços de que necessita. Mas disso tudo emergirá um novo modelo de gestão, transparente, participativo e que fechará as torneiras da corrupção.
As festas desse fim de ano serão austeras, o que faz valorizar mais a presença do que os presentes. E as dificuldades de 2017 serão, para a cidadania,um desafio: só a luta muda a vida!
O peixe não vê a água
Jejuno em piscicultura, tomo como verdadeira a afirmação que faço no título deste artigo, reproduzindo um velho ditado espanhol. Quem o inventou certamente queria dizer algo sobre o comportamento das sociedades e de suas elites dirigentes em tempos de crise. Sugeriu, com efeito, que as instituições públicas e os agentes diretos do drama político perdem a capacidade de apreender os problemas com que se defrontam e seus possíveis desdobramentos numa perspectiva de conjunto e no longo prazo.
Tal ditado, no entanto, por instigante que seja, contém um defeito crucial. Quanto eu saiba, não ver a água jamais causou dano sério a algum peixe ou cardume. Na sociedade humana, perder a noção de conjunto e a capacidade de agir em função dele pode fazer a diferença entre uma situação muito ruim e um completo desastre.
Como é óbvio, o que desejo fisgar neste texto não são peixes, mas uma hipótese sobre a situação em que o Brasil se encontra. As causas iniciais da crise são de conhecimento geral, mas poucos analistas têm tentado decifrar o encadeamento que se estabeleceu a partir do impeachment de Dilma Rousseff ou prever como e quando terminará. Meu pressuposto, como antecipei, será o de que uma crise grave produz um estreitamento dramático do campo de visão das elites dirigentes, e tal estreiteza passa a atuar como um fator autônomo, retroalimentando a crise.
Para manter uma perspectiva abrangente e de longo prazo, os sistemas políticos dispõem basicamente de três mecanismos: 1) o amplo compartilhamento de cenários bem fundamentados, indicando relações de causa e efeito e projetando possíveis desdobramentos da situação existente – essa tarefa é normalmente desempenhada por políticos de grande tirocínio e por economistas, cientistas sociais e outros profissionais qualificados; 2) a existência de uma instância institucional incumbida de propor uma agenda macro (há quem prefira a expressão “projeto nacional”) – em nosso caso, essa instância é, evidentemente, a Presidência da República; 3) os momentos sucessórios, ou seja, eleições gerais e, em nosso caso, notadamente a sucessão presidencial, que funcionam como cortes políticos temporais capazes de forçar a revisão e eventual alteração das políticas em curso.
Sobre cenários amplamente compartilhados, não precisamos ir tão longe. Na virada dos anos 80 para os anos 90, na esteira de vários choques heterodoxos, o controle da inflação foi definido como a prioridade das prioridades e levado de forma eficaz ao centro do sistema decisório. Hoje, em contraste, não há imagens de futuro claramente delineadas – exceção feita ao debate sobre reformas estruturais, às quais retornarei adiante.
Claro, exercícios e projeções são continuamente elaborados, mas permanecem à margem dos acontecimentos, como uma arcana acadêmica, sem efeito estratégico no plano da política prática. Com as exceções de praxe, nossos senadores e deputados, nossas lideranças sindicais e nosso alto clero ignoram que, crescendo em média 3% ao ano, o Brasil precisará de uma geração inteira para igualar o produto interno bruto (PIB) per capita dos países mais pobres da Europa – da Grécia e de Portugal, por exemplo. E que lá chegaremos, provavelmente, com uma distribuição de renda muito pior que a dos países citados.
Por frágil que seja, o presidente Michel Temer tem proposto e conseguido aprovar medidas importantes no Congresso Nacional, com destaque para a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) do Teto de Gastos, já aprovada, e as reformas da Previdência e da legislação trabalhista, em fase inicial de tramitação. Mas numerosos analistas têm afirmado que o presidente dificilmente chegará a bom porto sem um começo razoável de recuperação da economia. Sinais de debilitação de seu governo têm sido captados pelas pesquisas de opinião pública.
O risco, evidentemente, é o círculo vicioso que parece estar se constituindo. A não ocorrência rápida da recuperação debilita o presidente da República. As investigações da Operação Lava Jato, que no atacado devem ser vistas de forma altamente positiva, produzem desgastes no varejo, de um lado, por terem chegado à soleira do Planalto, de outro, por manter a corrupção nas manchetes, turbinando o azedume da sociedade contra todo o sistema político. A própria advertência da crônica política – no geral bem intencionada – quanto à debilitação do governo pela crise econômica pode alimentar uma self-fulfilling prophecy (uma profecia que se autorrealiza), dificultando a percepção dos acertos do governo.
Por último, mas não menos importante, a eleição de 2018. Diferentemente de 1989, quando o restabelecimento da eleição direta para presidente foi saudado como uma fórmula mágica para a redenção do País, hoje poucos se animam a especular sobre a sucessão presidencial. Um evento previsto para daqui a um ano e dez meses parece um corpo celeste, situado nos confins do universo. É outro claro indício do encurtamento do horizonte temporal a que antes me referi. Mas essa distância sideral não impede que a chamada conexão eleitoral opere a todo vapor. A prioridade de todo político eletivo é se reeleger, ou se posicionar adequadamente para a próxima eleição. Daí Rodrigo Maia, o presidente da Câmara dos Deputados, ter acenado aos governadores com a dispensa das contrapartidas estaduais na negociação da ajuda federal. O triunvirato tucano não faz por menos: Aécio Neves e José Serra mexem suas peças e Geraldo Alckmin reage ameaçando sair do PSDB.
Bolívar Lamounier
Miró |
Como é óbvio, o que desejo fisgar neste texto não são peixes, mas uma hipótese sobre a situação em que o Brasil se encontra. As causas iniciais da crise são de conhecimento geral, mas poucos analistas têm tentado decifrar o encadeamento que se estabeleceu a partir do impeachment de Dilma Rousseff ou prever como e quando terminará. Meu pressuposto, como antecipei, será o de que uma crise grave produz um estreitamento dramático do campo de visão das elites dirigentes, e tal estreiteza passa a atuar como um fator autônomo, retroalimentando a crise.
Para manter uma perspectiva abrangente e de longo prazo, os sistemas políticos dispõem basicamente de três mecanismos: 1) o amplo compartilhamento de cenários bem fundamentados, indicando relações de causa e efeito e projetando possíveis desdobramentos da situação existente – essa tarefa é normalmente desempenhada por políticos de grande tirocínio e por economistas, cientistas sociais e outros profissionais qualificados; 2) a existência de uma instância institucional incumbida de propor uma agenda macro (há quem prefira a expressão “projeto nacional”) – em nosso caso, essa instância é, evidentemente, a Presidência da República; 3) os momentos sucessórios, ou seja, eleições gerais e, em nosso caso, notadamente a sucessão presidencial, que funcionam como cortes políticos temporais capazes de forçar a revisão e eventual alteração das políticas em curso.
Sobre cenários amplamente compartilhados, não precisamos ir tão longe. Na virada dos anos 80 para os anos 90, na esteira de vários choques heterodoxos, o controle da inflação foi definido como a prioridade das prioridades e levado de forma eficaz ao centro do sistema decisório. Hoje, em contraste, não há imagens de futuro claramente delineadas – exceção feita ao debate sobre reformas estruturais, às quais retornarei adiante.
Claro, exercícios e projeções são continuamente elaborados, mas permanecem à margem dos acontecimentos, como uma arcana acadêmica, sem efeito estratégico no plano da política prática. Com as exceções de praxe, nossos senadores e deputados, nossas lideranças sindicais e nosso alto clero ignoram que, crescendo em média 3% ao ano, o Brasil precisará de uma geração inteira para igualar o produto interno bruto (PIB) per capita dos países mais pobres da Europa – da Grécia e de Portugal, por exemplo. E que lá chegaremos, provavelmente, com uma distribuição de renda muito pior que a dos países citados.
Por frágil que seja, o presidente Michel Temer tem proposto e conseguido aprovar medidas importantes no Congresso Nacional, com destaque para a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) do Teto de Gastos, já aprovada, e as reformas da Previdência e da legislação trabalhista, em fase inicial de tramitação. Mas numerosos analistas têm afirmado que o presidente dificilmente chegará a bom porto sem um começo razoável de recuperação da economia. Sinais de debilitação de seu governo têm sido captados pelas pesquisas de opinião pública.
O risco, evidentemente, é o círculo vicioso que parece estar se constituindo. A não ocorrência rápida da recuperação debilita o presidente da República. As investigações da Operação Lava Jato, que no atacado devem ser vistas de forma altamente positiva, produzem desgastes no varejo, de um lado, por terem chegado à soleira do Planalto, de outro, por manter a corrupção nas manchetes, turbinando o azedume da sociedade contra todo o sistema político. A própria advertência da crônica política – no geral bem intencionada – quanto à debilitação do governo pela crise econômica pode alimentar uma self-fulfilling prophecy (uma profecia que se autorrealiza), dificultando a percepção dos acertos do governo.
Por último, mas não menos importante, a eleição de 2018. Diferentemente de 1989, quando o restabelecimento da eleição direta para presidente foi saudado como uma fórmula mágica para a redenção do País, hoje poucos se animam a especular sobre a sucessão presidencial. Um evento previsto para daqui a um ano e dez meses parece um corpo celeste, situado nos confins do universo. É outro claro indício do encurtamento do horizonte temporal a que antes me referi. Mas essa distância sideral não impede que a chamada conexão eleitoral opere a todo vapor. A prioridade de todo político eletivo é se reeleger, ou se posicionar adequadamente para a próxima eleição. Daí Rodrigo Maia, o presidente da Câmara dos Deputados, ter acenado aos governadores com a dispensa das contrapartidas estaduais na negociação da ajuda federal. O triunvirato tucano não faz por menos: Aécio Neves e José Serra mexem suas peças e Geraldo Alckmin reage ameaçando sair do PSDB.
Bolívar Lamounier
A política do cidadão narcisista é a negação do constrangimento do desejo
Vivemos um momento suicida. O projeto contemporâneo é realizarmos todos os nossos desejos sozinhos e deixar como herança três latas de lixo reciclável como prova de que nosso suicídio foi sustentável. A espécie optou pelo suicídio como forma de felicidade. Que viva o indivíduo, mas desapareça a espécie. Sim, digo isso com votos de feliz ano novo.
Será que a espécie sobrevive a esse surto de felicidade individual? Entenda-me: não acho que haja retorno a formas "regressivas" (como gostam de falar os deleuzianos) de convívio. Só aconteceria isso se a riqueza acabasse. O momento suicida é fruto dessa riqueza. Justamente por isso suspeito que o projeto esteja em curso de forma irreversível e travestido de uma obsessão incontrolável pelo direito ao narcisismo como modo empoderado de autonomia. O vazio de afeto como um exemplo tardio de direitos humanos. Nunca desconfiamos tanto uns dos outros como nessa era dos "coletivos de arte".
A cultura do narcisismo atingiu seu estágio propositivo, isto é, não se trata mais de um comportamento patológico, mas sim de um estilo que não tem medo de dizer seu nome. É uma forma de cidadania.
Fincado na ideia de que o centro da vida é a realização de projetos individuais sem limites no mundo real, o cidadão do narcisismo assume que seu imaginário pessoal é o propósito cósmico da Criação –aviso aos inteligentinhos que uso "Criação" como metáfora aqui.
Engana-se quem pensa que ele não tenha uma política. Ele tem. A política da negação de qualquer constrangimento do desejo. Engana-se quem acredita que ele não tenha projetos sociais. Principalmente aqueles que servem à própria vaidade sem oferecer qualquer forma de risco concreto, como apoiar os refugiados sírios na Europa, uma vez que esses refugiados não morarão na casa dos cidadãos do narcisismo. Cidadãos do narcisismo adoram crianças da África, principalmente porque estão longe delas.
A arte desse cidadão é qualquer coisa, contanto que ele tenha um gozo anal em fazê-la. A "libertação da forma", em si um debate estético consistente, acabou servindo bem a esta forma de cidadania.
A ética do cidadão do narcisismo tem seu imperativo categórico cunhado no culto da forma do eu e do corpo, jamais na condição de quem se perde num afeto. Aliás, a afetividade desse cidadão é chorar com os próprios bons sentimentos.
Há psicanalista por aí que afirma mesmo que esse cidadão é um avanço, na medida em que não sofre do imaginário de amor que o neurótico sofria. O cidadão livre do contrato narcísico não ama. Superou esta forma primitiva de neurose em favor da circulação livre de afetos desconexos. Por isso é tão sensível aos animais, que nunca põem em xeque o amor.
Formas "pós-modernas" de psicoterapias surgem no mercado dos consultórios na zona oeste de São Paulo oferecendo novas definições de psicopatologia. A saúde mental nessa nova forma de cidadania é se amar acima de tudo e se levar muito a sério sempre.
O cidadão do narcisismo leva a sério afirmações como "procurar a si mesmo para sempre". Ou "direito à inveja e ao ressentimento como formas de autonomia". É o cidadão do narcisismo que está por trás das "revoluções" geradas pelas mídias sociais, paraíso do narcisismo. Risco zero, como ver a própria morte pela Netflix.
E por que um "momento suicida"? Porque, até ontem, sabia-se que o narcisismo é uma síndrome de pessoas incapazes de viver por si mesmas, vampiros da saúde mental alheia, inaptos ao afeto. Sorrisos desatentos confessam o projeto suicida sem a mínima noção.
Santo Agostinho (354 d.C.-430 d.C.) dizia que a única forma de liberdade que existe é quando se ama, porque assim saímos da condição de vaidade em que nos encontramos por conta do pavor do vazio que nos corrói. A consciência de sermos filhos do nada se impõe na mais tenra infância. O medo infantil é o olfato deste nada.
Pois então. O momento suicida é aquele em que cidadãos conscientes dos riscos pelos quais passa o planeta optam pelo narcisismo como forma avançada de estar no mundo. Esses cidadãos perderam o olfato do nada.
Luiz Felipe Pondé
Será que a espécie sobrevive a esse surto de felicidade individual? Entenda-me: não acho que haja retorno a formas "regressivas" (como gostam de falar os deleuzianos) de convívio. Só aconteceria isso se a riqueza acabasse. O momento suicida é fruto dessa riqueza. Justamente por isso suspeito que o projeto esteja em curso de forma irreversível e travestido de uma obsessão incontrolável pelo direito ao narcisismo como modo empoderado de autonomia. O vazio de afeto como um exemplo tardio de direitos humanos. Nunca desconfiamos tanto uns dos outros como nessa era dos "coletivos de arte".
Ricardo Cammarota |
A cultura do narcisismo atingiu seu estágio propositivo, isto é, não se trata mais de um comportamento patológico, mas sim de um estilo que não tem medo de dizer seu nome. É uma forma de cidadania.
Fincado na ideia de que o centro da vida é a realização de projetos individuais sem limites no mundo real, o cidadão do narcisismo assume que seu imaginário pessoal é o propósito cósmico da Criação –aviso aos inteligentinhos que uso "Criação" como metáfora aqui.
Engana-se quem pensa que ele não tenha uma política. Ele tem. A política da negação de qualquer constrangimento do desejo. Engana-se quem acredita que ele não tenha projetos sociais. Principalmente aqueles que servem à própria vaidade sem oferecer qualquer forma de risco concreto, como apoiar os refugiados sírios na Europa, uma vez que esses refugiados não morarão na casa dos cidadãos do narcisismo. Cidadãos do narcisismo adoram crianças da África, principalmente porque estão longe delas.
A arte desse cidadão é qualquer coisa, contanto que ele tenha um gozo anal em fazê-la. A "libertação da forma", em si um debate estético consistente, acabou servindo bem a esta forma de cidadania.
A ética do cidadão do narcisismo tem seu imperativo categórico cunhado no culto da forma do eu e do corpo, jamais na condição de quem se perde num afeto. Aliás, a afetividade desse cidadão é chorar com os próprios bons sentimentos.
Há psicanalista por aí que afirma mesmo que esse cidadão é um avanço, na medida em que não sofre do imaginário de amor que o neurótico sofria. O cidadão livre do contrato narcísico não ama. Superou esta forma primitiva de neurose em favor da circulação livre de afetos desconexos. Por isso é tão sensível aos animais, que nunca põem em xeque o amor.
Formas "pós-modernas" de psicoterapias surgem no mercado dos consultórios na zona oeste de São Paulo oferecendo novas definições de psicopatologia. A saúde mental nessa nova forma de cidadania é se amar acima de tudo e se levar muito a sério sempre.
O cidadão do narcisismo leva a sério afirmações como "procurar a si mesmo para sempre". Ou "direito à inveja e ao ressentimento como formas de autonomia". É o cidadão do narcisismo que está por trás das "revoluções" geradas pelas mídias sociais, paraíso do narcisismo. Risco zero, como ver a própria morte pela Netflix.
E por que um "momento suicida"? Porque, até ontem, sabia-se que o narcisismo é uma síndrome de pessoas incapazes de viver por si mesmas, vampiros da saúde mental alheia, inaptos ao afeto. Sorrisos desatentos confessam o projeto suicida sem a mínima noção.
Santo Agostinho (354 d.C.-430 d.C.) dizia que a única forma de liberdade que existe é quando se ama, porque assim saímos da condição de vaidade em que nos encontramos por conta do pavor do vazio que nos corrói. A consciência de sermos filhos do nada se impõe na mais tenra infância. O medo infantil é o olfato deste nada.
Pois então. O momento suicida é aquele em que cidadãos conscientes dos riscos pelos quais passa o planeta optam pelo narcisismo como forma avançada de estar no mundo. Esses cidadãos perderam o olfato do nada.
Luiz Felipe Pondé
Em férias, blog busca uma saída pós-Odebrecht
Pegou muito mal. Não foi um sujeito qualquer. Foi o nosso presidente, o próprio Emílio Odebrecht, quem disse. Em autodelação à Lava Jato, ele contou que vinha governando o Brasil há décadas. Mantinha todos os pró-homens da República na folha do Departamento de Operações Estruturadas da Odebrecht. A revelação expôs a incompetência da imprensa. E o blog, que sempre imaginou que as ordens partissem do Palácio do Planalto, decidiu fazer uma reciclagem.
Em férias a partir desta segunda-feira, o repórter se dedicará nas próximas duas semanas a sondar o abismo, que é o outro nome do Brasil pós-Odebrecht. Para evitar novos erros, convém responder rapidamente a grande indagação: o que será do país sem o Departamento de Propinas da Odebrecht? Em meio a tanta esculhambação, é preciso reconhecer que a única coisa que funcionava bem no Brasil era o Departamento de Operações Estruturadas. O grande erro foi a tentativa de dissimulação.
Se a Odebrecht tivesse se apropriado abertamente do governo, não estaria agora sendo acusada pela força-tarefa da Lava Jato de comprar o governo dos outros. Um governo escancaradamente da Odebrecht substituiria o regime constitucional brasileiro com muitas vantagens. Os políticos teriam que justificar o dinheiro recebido batendo o ponto. Os congressistas precisariam molhar a camisa de segunda a sábado, em horário comercial. Exatamente como a peãozada nos canteiros de obras, em meio à lama e ao movimento de máquinas pesadas.
Durante as férias, o repórter pretende reunir elementos capazes de demonstrar que a alternativa ao abismo talvez seja converter a nação brasileira, oficialmente, numa imensa Odebrecht. Se o Departamento de Operações Estruturadas fez e desfez por tanto tempo, alguma coisa há de ter feito —ou desfeito— de bom para os políticos. E poderia fazer o mesmo pelo povo brasileiro.
Bem verdade que haveria o inconveniente de ter que revogar a República. Mas quem conseguiu implantar uma cleptocracia com tanta facilidade não teria dificuldade para comprar um projeto de lei restaurando a monarquia no Brasil. Marcelo Odebrecht, o príncipe herdeiro, está na cadeia. Entretanto, se o ministro Teori Zavascki homologar o acordo de delação premiada, a cana será revogada no final de 2017. Aguardem. O blog volta em duas semanas com a solução para livrar o Brasil do abismo a partir de 2018.
Tentemos em 2017
Há décadas, intelectuais e políticos alertam para a necessidade de reformas estruturais, sem as quais a nação brasileira continuaria carecendo de forças de coesão e de dinamismo. Fomos forjados sob o signo da escravidão e da exclusão, da concentração de renda e da segregação educacional, usando políticas fisiológicas e patrimonialistas de uma aristocracia que sobrevive ao Império. Não somos ainda uma República com coesão nacional. Por falta de coesão, usamos inflação e endividamento público para atender interesses divergentes. Quando isso se esgotava, usamos ditaduras, para impor coesão forçada.
Basta olhar ao redor para ver que há um clima de desagregação no ar: corrupção endêmica; violência urbana generalizada como uma guerra civil sem ideologias, nem religiões; partidos sem propostas, nem identidades; políticos sem credibilidade; decisões judiciais precipitadas, legislando no lugar do Congresso e sendo desrespeitadas por parlamentares. Some-se a isto, a baixa produtividade e baixa propensão à poupança, a permanência da desigualdade social, a recessão econômica, o desemprego catastrófico, o endividamento do Estado, das famílias e das empresas; a miséria do quadro educacional. Sobretudo, um país dividido em corporações, sem preocupação com os interesses nacionais de longo prazo, e um quadro ideológico de sectarização dogmática, sem debate em busca de alternativas. Um país sem amálgama de longo prazo, perdido no imediatismo de promessas impossíveis para o futuro e sem qualquer aceitação para os necessários sacrifícios no presente.
Mas o Brasil não pode continuar adiando sua coesão. Deve entender e querer superar o risco da desagregação, abrir diálogo entre o que ainda resta de líderes, independente de terem votos e serem políticos, reconhecer e convocar o país para enfrentar as dificuldades imediatas: levar adiante e com todo rigor as operações da luta contra a corrupção; realizar as reformas que o país precisa para liberar seu futuro: fiscal, progressista e sem as brechas que beneficiam aos ricos, trabalhista, previdenciária, propondo também as necessárias reformas estruturais sempre adiadas: garantia de terra para quem dela ainda precisa no campo; eficiência da máquina do Estado para dar-lhe baixo custo e para servir com qualidade aos usuários dos serviços públicos; transformação educacional, para assegurar a toda criança escola com a mesma qualidade que o Brasil precisa para aglutinar e desenvolver sua sociedade e economia.
Esta é a proposta que podemos tentar em 2017: barrar o atual rumo da decadência e da desagregação, iniciando um novo rumo para o Brasil. Cabe aos atuais líderes convocar a população para uma aglutinação em torno aos sacrifícios de hoje, com esperança nos benefícios futuros. Sem isso, que é difícil de realizar, vamos cair na desagregação ou antecipar eleições gerais, para todos os cargos federais, na tentativa de fazer a necessária aglutinação por novos líderes com credibilidade.
Cristovam Buarque
Basta olhar ao redor para ver que há um clima de desagregação no ar: corrupção endêmica; violência urbana generalizada como uma guerra civil sem ideologias, nem religiões; partidos sem propostas, nem identidades; políticos sem credibilidade; decisões judiciais precipitadas, legislando no lugar do Congresso e sendo desrespeitadas por parlamentares. Some-se a isto, a baixa produtividade e baixa propensão à poupança, a permanência da desigualdade social, a recessão econômica, o desemprego catastrófico, o endividamento do Estado, das famílias e das empresas; a miséria do quadro educacional. Sobretudo, um país dividido em corporações, sem preocupação com os interesses nacionais de longo prazo, e um quadro ideológico de sectarização dogmática, sem debate em busca de alternativas. Um país sem amálgama de longo prazo, perdido no imediatismo de promessas impossíveis para o futuro e sem qualquer aceitação para os necessários sacrifícios no presente.
Esta é a proposta que podemos tentar em 2017: barrar o atual rumo da decadência e da desagregação, iniciando um novo rumo para o Brasil. Cabe aos atuais líderes convocar a população para uma aglutinação em torno aos sacrifícios de hoje, com esperança nos benefícios futuros. Sem isso, que é difícil de realizar, vamos cair na desagregação ou antecipar eleições gerais, para todos os cargos federais, na tentativa de fazer a necessária aglutinação por novos líderes com credibilidade.
Cristovam Buarque
O 'fumei, mas não traguei' na Lava Jato
“Guardei e nunca usei, porque eu uso outro tipo de relógio. Mas, se o cara me deu de presente, vou fazer o quê?” A fala, um monumento à desfaçatez, é do ex-ministro-chefe da Casa Civil da presidente cassada Dilma Rousseff Jaques Wagner (PT). Diante da revelação de que recebeu de presente de um lobista da Odebrecht um relógio que custa a bagatela de US$ 20 mil, o petista achou que adaptando o “fumei, mas não traguei” de Bill Clinton estaria se eximindo de culpa.
Para qualquer um soa grotesco, além de ofensivo. Mas o estarrecedor é que uma versão institucional desse tipo de desculpa está sendo costurada por representantes dos três Poderes e deverá ser transformada em tese jurídica em 2017 para tentar separar quem vai ser ceifado e quem sobreviverá à Operação Lava Jato.
Como a delação conjunta de 77 pessoas ligadas à Odebrecht, a maior empreiteira do País, ameaçava tragar indistintamente políticos de todos os matizes políticos e ideológicos, de diversos partidos e diferentes graus de participação nos esquemas da Petrobrás, tratou-se de criar uma distinção entre o caixa 2 “romântico”, “moleque”, e aquele nefasto, fruto de corrupção e destinado, veja só o leitor que indignidade, ao enriquecimento pessoal do beneficiário.
A tese encontra ressonância entre ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), ecoa nos corredores da Câmara dos Deputados e do Senado Federal e encontra abrigo acolhedor na Esplanada dos Ministérios e no Palácio do Planalto.
Há que se distinguir, dizem ministros do Supremo, parlamentares e auxiliares de Michel Temer, o que “sempre se praticou” para financiar campanhas eleitorais no Brasil, e era “culturalmente aceito”, de casos aberrantes como o do ex-ministro Antonio Palocci (PT) e do ex-governador do Rio Sérgio Cabral (PMDB), que experimentaram extraordinário enriquecimento à custa de propina, corrupção, lavagem de dinheiro, tráfico de influência e outras delinquências.
Os teóricos da tese do “caixa 2 limpinho” tentaram anistiar em lei o que foi feito até a delação da Odebrecht, mas a grita da sociedade impediu. Então, a ideia é que a tese prevaleça no STF quando – e se um dia – forem julgados os políticos envolvidos no petrolão.
Para qualquer um soa grotesco, além de ofensivo. Mas o estarrecedor é que uma versão institucional desse tipo de desculpa está sendo costurada por representantes dos três Poderes e deverá ser transformada em tese jurídica em 2017 para tentar separar quem vai ser ceifado e quem sobreviverá à Operação Lava Jato.
Como a delação conjunta de 77 pessoas ligadas à Odebrecht, a maior empreiteira do País, ameaçava tragar indistintamente políticos de todos os matizes políticos e ideológicos, de diversos partidos e diferentes graus de participação nos esquemas da Petrobrás, tratou-se de criar uma distinção entre o caixa 2 “romântico”, “moleque”, e aquele nefasto, fruto de corrupção e destinado, veja só o leitor que indignidade, ao enriquecimento pessoal do beneficiário.
Há que se distinguir, dizem ministros do Supremo, parlamentares e auxiliares de Michel Temer, o que “sempre se praticou” para financiar campanhas eleitorais no Brasil, e era “culturalmente aceito”, de casos aberrantes como o do ex-ministro Antonio Palocci (PT) e do ex-governador do Rio Sérgio Cabral (PMDB), que experimentaram extraordinário enriquecimento à custa de propina, corrupção, lavagem de dinheiro, tráfico de influência e outras delinquências.
Os teóricos da tese do “caixa 2 limpinho” tentaram anistiar em lei o que foi feito até a delação da Odebrecht, mas a grita da sociedade impediu. Então, a ideia é que a tese prevaleça no STF quando – e se um dia – forem julgados os políticos envolvidos no petrolão.
O discurso de que é preciso distinguir o “joio” (caixa 2 ingênuo) do “trigo” (enriquecimento pessoal) é o de que todo mundo que tenha feito campanhas políticas no Brasil desde a redemocratização sabe como elas eram financiadas.
“Nem os políticos nem as empresas eram bandidos. Sei o quanto de dinheiro era necessário para se fazer uma campanha. Não sou um criminoso. Nenhuma empresa tirava dinheiro do bolso. Elas doavam tendo a expectativa de obter contratos. O que vai-se condenar é esse modelo, que não é mais admitido. Mas quem o praticou anteriormente não pode ser punido da mesma forma que quem fez fortuna”, diz, de forma reservada, um ministro citado nas delações da Odebrecht.
E a quem caberá separar os grãos? Ao Supremo. “Já há um grupo de ministros convencido de que a Corte tem de ser a instância última para tirar o País da convulsão institucional”, confia o ministro delatado.
“Nem os políticos nem as empresas eram bandidos. Sei o quanto de dinheiro era necessário para se fazer uma campanha. Não sou um criminoso. Nenhuma empresa tirava dinheiro do bolso. Elas doavam tendo a expectativa de obter contratos. O que vai-se condenar é esse modelo, que não é mais admitido. Mas quem o praticou anteriormente não pode ser punido da mesma forma que quem fez fortuna”, diz, de forma reservada, um ministro citado nas delações da Odebrecht.
E a quem caberá separar os grãos? Ao Supremo. “Já há um grupo de ministros convencido de que a Corte tem de ser a instância última para tirar o País da convulsão institucional”, confia o ministro delatado.
O roteiro condiz com as palavras do ministro Gilmar Mendes, que disse com todas as letras que nem sempre caixa 2 é fruto de corrupção, assim como a Lava Jato também mostra que a doação legal a campanhas não é sinônimo de legalidade, uma vez que muitas propinas eram pagas dessa maneira.
A Segunda Turma do STF, que julga os casos de políticos encrencados na Lava Jato, é composta por cinco ministros: o relator, Teori Zavascki, o decano Celso de Mello, Gilmar Mendes, Dias Toffoli e Ricardo Lewandowski. Pode vir dali o novo alinhamento que permitirá tirar do foco muitos dos citados em delações – da Odebrecht e anteriores.
Afinal, assim como Jaques Wagner, muita gente recebeu presentes de empreiteiras, mas não usou para desfilar por aí, não é mesmo?
A Segunda Turma do STF, que julga os casos de políticos encrencados na Lava Jato, é composta por cinco ministros: o relator, Teori Zavascki, o decano Celso de Mello, Gilmar Mendes, Dias Toffoli e Ricardo Lewandowski. Pode vir dali o novo alinhamento que permitirá tirar do foco muitos dos citados em delações – da Odebrecht e anteriores.
Afinal, assim como Jaques Wagner, muita gente recebeu presentes de empreiteiras, mas não usou para desfilar por aí, não é mesmo?
Assinar:
Postagens (Atom)